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O pior de não ver é a forma como somos vistos

por Lerparaver

Passaram-me a palavra para poder dizer algo sobre a experiência de não ver. Tarefa complicada para este pequeno espaço. Complicada também porque não ver é simplesmente não ver e poderíamos ficar por aí se a forma como se vê quem não vê não estivesse tão corrompida de confusões transmitidas durante séculos devido à falta de conhecimento e de tecnologia que deixava quem não via à margem da Sociedade.

A própria Igreja contribuiu para perpetuar imagens de desgraça em torno da falta da visão, por confundir a deficiência sensorial com a falta de certos atributos intelectuais e espirituais, associando-a a sinónimos tais como ignorância, desorientação na vida, incapacidade para a compreensão, trevas, pecado, falta de fé. É tempo de mudar este discurso e de aproveitar o papel formativo da Igreja para clarificar estas realidades.

Mas voltando à minha tentativa de explicar o que é não ver, digo-vos que não é necessariamente viver na escuridão, mas é não ter percepção de luz ou, como no meu caso e da maior parte das pessoas consideradas cegas, é ter apenas a percepção dela e de algumas cores e de alguns vultos mal definidos; não é ter dons especiais,mas ter dons e defeitos; não é ter os outros sentidos mais desenvolvidos, é prestar mais atenção aos outros sentidos; não é fazer parte de um grupo com características muito semelhantes, é ter em comum com outros que não vêm apenas a limitação mais ou menos grave do sentido da visão; não é ser mais feliz por não poder ver as misérias do Mundo, é ter alegrias e frustrações como qualquer ser humano, até porque há muitas mais coisas bonitas do que feias para ver e a miséria conhece-se de muitas formas; não é ser digna de piedade, é ser digna de respeito; não é ser fantástica por conseguir concretizar objectivos que outros conseguem, é ter dificuldades diárias por resolver e ter de arranjar estratégias para continuar a viver saudável ou então desistir e, aí sim, merecer toda a piedade.

É importante ainda que vos explique que a deficiência visual, tal como qualquer outra, pode ser total ou parcial e, neste caso, o que se consegue ver varia muito de pessoa para pessoa. Há muita gente que tem uma visão bastante reduzida que prefere continuar a passar anónima, arriscando-se a acidentes ou a parecer o que não se é, para não ser confundida com os cegos que tanta misericórdia despertam nos outros.

Também vos devo dizer que nem todas as pessoas com deficiência visual querem ser vistas da forma que vos transmito. Preferem ser vistas como fantásticas, ou como coitadinhas, ou como dotadas de poderes, porque isso pode ajudá-las a conseguir algo que pretendam.

Não sei porque Deus permite que eu e tantas outras pessoas não vejamos, assim como desconheço porque Deus permite tantas desgraças no Mundo que criou. Acredito que Ele pode dar-me avisão como pode dar a todos os homens o que eles desejam. A minha pouca fé não permite que seja feito em mim um milagre. Mas mais do que um milagre, anseio por uma mudança de visão da Sociedade perante esta realidade que é não ver, para que o acesso a quase tudo o que a vida tem para nos oferecer seja possível mesmo com um sentido a menos.

• texto escrito para o jornal do Centro Académico de Braga

Sandra Estêvão Rodrigues

Comentários

adorei o teu texto, olha que eu fiquei batante emocionada.
espero que continues a fazer textos que mostrem ao mundo e ás pessoas como é o dia-a-dia de pessoas com dificuldades.
vai em frente e ultrapassa as tuas dificuldades que eu acredito em ti.
beijos

Adorei os textos. Continue o excelente trabalho