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Deficiência: Do imaginário à realidade

por Lerparaver

Seminário “a representação da deficiência na comunicação social - boas e más práticas”

Barcelos, 10 de Julho de 2003

Vou partilhar convosco algumas ideias sobre aquelas que, do meu ponto de vista, são as dificuldades na abordagem das problemáticas da deficiência, por parte da Comunicação Social, bem como aqueles que poderão ser os seus contributos para a desmistificação e para a clarificação de falsas crenças que ainda existem em torno destas questões.

1. A deficiência dos conceitos

Todos reconhecemos a indiscutível importância que os meios de Comunicação Social têm para a informação e a formação das pessoas nos mais variados assuntos. No que diz respeito à deficiência, muitas vezes devido à impossibilidade de contacto directo com as pessoas ditas com deficiência, a Comunicação Social é o único meio ao dispor da população em geral para dar a conhecer estas realidades.

Daí que uma das primeiras questões que se levanta, seja precisamente qual a adequação dos termos e conceitos que habitualmente são utilizados no campo da deficiência. O próprio termo “deficiência” só por si tem ainda um carácter estigmatizante e discriminatório. Quantas vezes não acontece de alguém usar o termo “deficiente” como forma de agressão, para sugerir alguém que está fora da normalidade?

Por outro lado, este termo refere-se a uma ampla variedade de situações, que muitas vezes não estão bem especificadas nem compreendidas. Assim, há por exemplo quem acredite ter uma deficiência visual só porque usa óculos.

Se atendermos à definição da Organização Mundial de Saúde, Deficiências são problemas nas funções ou na estrutura do corpo, tais como, um desvio importante ou uma perda.

Tendo em conta esta definição, o termo “deficiência” engloba de facto uma multiplicidade de problemas, cada um com implicações diferentes para a vida dos sujeitos, mas que a maior parte da população desconhece. Assim, e de forma muito simples, este termo é geralmente usado para designar algum problema físico, sensorial ou mental que coloca dificuldades na vida das pessoas. Temos então pessoas com deficiências na visão, na audição, na comunicação, a nível motor, a nível intelectual...

Enquanto não se encontrar melhor designação, teremos que utilizar esta.

Contudo, a minha sugestão é que seja usada com cuidado, e não como se se tratasse de englobar uma parcela da população, marcada por um problema único e comum.

Outra questão que se levanta, é a variedade de termos que podemos encontrar dentro de um mesmo tipo de deficiência, para designar condições diferentes, como seja o grau em que essa deficiência está presente. Assim, para a deficiência visual, são usados por exemplo os termos “cego”, “ambliope”, “pessoa com baixa visão”, etc. A ambliopia, por exemplo, tem dois significados diferentes: um estritamente oftalmológico (de acordo com o qual se trata de uma redução na acuidade visual sem aparente lesão orgânica), e outro segundo o qual se trata de uma redução grave na visão, equivalendo ao conceito de “baixa visão”. Até há pouco tempo, o senso comum levava as pessoas a pensar que só existiam os cegos e os chamados normovisuais, e apesar de já se começar a falar das pessoas com baixa visão, ainda há alguma confusão sobre este assunto. De igual forma, os deficientes auditivos não são necessariamente pessoas que não recebem qualquer estímulo auditivo, verificando-se que a surdez pode estar presente em vários graus. E que dizer da deficiência física e da deficiência mental? Quão diversos podem ser os tipos e graus de problemas encontrados, e quão variados podem ser os termos e os conceitos empregues.

Também se verifica alguma confusão na utilização de determinados conceitos.
Por exemplo, é comum confundir-se deficiência mental e doença mental, embora uma não tenha necessariamente a ver com a outra. A deficiência mental refere-se a problemas no funcionamento intelectual e ao nível do comportamento adaptativo. A doença mental relaciona-se com perturbações psiquiátricas.

Outra confusão frequente diz respeito à utilização da designação surdo-mudo para designar um sujeito que não ouve. É importante salientar que os surdos não são necessariamente mudos, sendo que o contrário pode também ser verdade. O próprio termo “cego” é usado indiscriminadamente para referenciar pessoas que estão privadas da visão e para designar a ignorância, a estupidez.

Nesta medida, há que utilizar com cuidado estes termos, ainda que tenhamos em mente que o consenso nunca é de todo conseguido. A nível científico, conforme a área de onde são provenientes os profissionais que tratam destes assuntos, assim se verifica a aplicação que fazem dos conceitos. Também é sabido que o Português já de princípio é uma língua extremamente complexa.

Por outro lado, há sempre a opinião pessoal de cada um: uns gostam da designação de “pessoas com deficiência”, outros preferem “pessoas portadoras de deficiência”, outros ainda “pessoas com necessidades especiais”.

Tendo em atenção todos estes aspectos, o mais importante será com certeza tentar utilizar os termos de forma o mais clara, menos agressiva, e menos estigmatizante possível, e também sem complicações que só servem para confundir.

A propósito desta complexidade, há quem goste de se aventurar em trocadilhos que podem ferir os sujeitos directamente implicados. É o caso de um slogan que há já algum tempo um jornal resolveu utilizar na sua publicidade “quem não lê é como quem não vê”. Quereria este slogan sugerir que os cegos são ignorantes?

2. O problema das generalizações

Desta primeira reflexão, decorre naturalmente o problema que existe quando se generalizam dificuldades e necessidades, a partir de um único exemplo. É óbvio que existem algumas dificuldades em comum dentro de um determinado tipo de deficiência e mesmo entre várias deficiências, mas estes não se apresentam sempre da mesma forma nem ao mesmo nível. Quando o objectivo é criar medidas políticas de apoio, estes pontos comuns têm necessariamente que ser encontrados, para prever todo um conjunto de situações. Contudo, quando se trata de informar, é importante não abordar uma situação como se ela fosse totalmente representativa de todas as outras. Apesar de ser difícil especificar demasiado todas as situações, em função dos limites de tempo e espaço que são concedidos para esse trabalho, é importante salientar sempre a ideia que cada caso é um caso diferente. Assim, sabemos todos que dificuldades ao nível da visão conduzirão a limitações na mobilidade ou na leitura de um sujeito, mas a forma como isto se verifica na vida de cada um dependerá muito da visão que ainda lhe resta, do apoio social que tem para fazer face a essas dificuldades, e de todos os outros factores que fazem variar as condições de vida de todos os seres humanos: factores socio-económicos, educativos, o contexto cultural, factores da própria personalidade, etc. A mesma ideia se aplica, naturalmente a todos os outros tipos de deficiência.

O que também ocorre muito frequentemente é que as pessoas ao conhecer alguém com determinada deficiência, ou ao ouvir falar de um único caso, tendem a generalizar as dificuldades e as necessidades, sendo pois de grande importância alertar para essas falsas crenças.

O papel da Comunicação Social pode passar muito por alertar para esta multiplicidade de situações, e mostrar as várias facetas que uma situação pode assumir.

Como exemplo de algumas das confusões que tenho vindo a referir, vejamos um extracto de um artigo escrito por um jornalista brasileiro da Folha de S. Paulo, o qual foi intitulado como “o sorriso do cego”:

“Os três estavam lado a lado, paradinhos, bengala na mão e...sorrindo!
De volta à plataforma e, depois, dentro do trem do metrô, o rosto dos passageiros leva obrigatoriamente à comparação: tanta gente com a expressão carregada, tanta cara de preocupação, de tristeza, de infelicidade, de desalento, de desencanto...
E os três cegos, que teriam motivo de sobra para estar chorando, com aquele sorriso enigmático na face.
Penso que eles sorriem porque estão protegidos, não são obrigados a ver tudo de ruim, feio, detestável que os "normais" têm de encarar todo santo dia.
A vida vista através da alma é certamente muito mais bonita.”

Ora este tipo de comentários é absolutamente aberrante e digo até, humilhante. Em primeiro lugar, leva a confundir a cegueira física com o conhecimento, com esta ideia de que o mundo visto através da alma é mais bonito. Em segundo lugar, faz supor que os cegos estão alheados da realidade, por segundo o jornalista em causa, não terem de encarar as coisas más ou feias do mundo. Em terceiro lugar, apela à generalização, de que falei.

Ainda a propósito desta ideia de simpatia ou doçura das pessoas cegas, devo dizer que As pessoas que sofrem uma deficiência não são, nem têm de ser, mais simpáticas nem melhores que o comum dos mortais. No entanto, penso que as pessoas esperam que sejamos sempre simpáticos, apesar de, por vezes, nos colocarem questões intrusivas ou despropositadas. Daí que o meu desafio é também para que cada pessoa que sofra uma deficiência, faça esse trabalho constante de informar e “educar” os outros, ainda que por vezes o comentário seja tão absurdo que apeteça ser indelicado.

3. O sensacionalismo das curas milagrosas

Muitas vezes, quando surge um novo tratamento ou uma nova tecnologia adaptada a determinadas situações de deficiência, é apresentada com grande entusiasmo e de forma mais uma vez demasiado abrangente.

Felizmente, os avanços tecnológicos e científicos têm sido muitos, e existem cada vez mais equipamentos que facilitam o dia-a-dia das pessoas que têm uma deficiência, e são também cada vez melhores as possibilidades de adiar o agravamento dessa deficiência.

Contudo, e infelizmente, nem todos os problemas são resolvidos com o mesmo tratamento ou equipamento. Para causar cada deficiência, existe uma imensidão de quadros clínicos, pelo que devem ser postas algumas reservas na apresentação destas novidades.

Os cegos não vão deixar de existir só porque apareceu o sistema Dobell, apesar de ser inegável o avanço que um sistema como este representa, e o que a partir dele se poderá fazer para melhorar a visão de muita gente.

O melhor contributo da Comunicação Social neste sentido deverá ser o de informar os recursos tecnológicos e os que são oferecidos pela medicina para que, uma pessoa que se confronta com um problema inesperado de saúde, saiba onde pode recorrer, que serviços e que meios existem para a auxiliar.

Sem dúvida que tão ou mais importantes que estes avanços, é sentirmos que as pessoas estão receptivas a trabalhar e a conviver saudavelmente com o que chamamos deficiência.

Também por vezes somos confrontados com apelos vindos dos meios de comunicação social, para apoiarmos financeiramente alguém que pretende ir fazer um tratamento milagroso ao estrangeiro, ou determinada associação de pessoas com deficiência. Apesar de considerar que a solidariedade é o bem mais precioso que possuímos, e que muito pode ser conseguido graças a ela, é importante manter algum cuidado com esta questão. No primeiro caso, o que existe por vezes, mais uma vez, é grande falta de informação sobre todos os recursos que se encontram ao dispor das pessoas, até mesmo no próprio país. No segundo, o tipo de apelo que é feito, pode ajudar a manter uma imagem da pessoa com deficiência, como alguém incapaz. Em ambos os casos, o vosso contributo poderá ser mais uma vez notório.

4. O perigo dos extremos

Existe alguma tendência para apresentar as pessoas portadoras de deficiência sob dois pontos de vista extremos: aquelas que sofrem desmesuradamente devido a determinada condição física, que precisam de toda a ajuda, que têm uma série de dificuldades, e por outro lado aquelas que, apesar de apresentarem uma deficiência, conseguem fazer coisas aparentemente extraordinárias, como maquilhar-se, apesar da cegueira, para dar um exemplo ainda recente apresentado pela Comunicação Social.

Em primeiro lugar, importa salientar que há coisas que não são assim tão extraordinárias como parecem, basta que as pessoas reflictam no uso que podem dar a todas as suas potencialidades físicas. Como em geral há pouco conhecimento deste assunto, é importante que a informação continue a passar, mas sem um carácter espectacular que atribua a estas pessoas um estatuto demasiado diferente. Em segundo lugar, a exploração da imagem da pessoa com deficiência como sendo pessoas expostas a grandes sofrimentos, e portanto dignas de toda a piedade e compaixão, não contribui em nada para dignificar a imagem destas pessoas. As posturas extremas que acabo de mencionar, só servem para alimentar a imagem mítica do deficiente ou como um pobre desgraçado, ou como alguém dotado de capacidades compensatórias do tipo: se é cego, ouve melhor, tem mais olfacto...

Não é verdade que as pessoas sejam compensadas com outros sentidos ou com outra sensibilidade só porque têm uma deficiência. A diferença está em aproveitar as tais potencialidades de que falei acima.

Existem muitas estratégias que podem ser aprendidas, existem muitas capacidades que, com algum treino podem ser melhoradas, existe uma série de ajudas técnicas que podem ser usadas, mas também existem muitas dificuldades por ultrapassar, por exemplo, a forma de se lidar com a deficiência.

As pessoas que têm dificuldades motoras nunca conseguirão transpor determinadas barreiras arquitectónicas, por melhor que seja a ajuda técnica que usam, e portanto é necessário que as construções sejam pensadas e concretizadas tendo isso em conta. As pessoas com deficiências auditivas nunca poderão ter a mesma facilidade em compreender o que lhes está a ser transmitido oralmente, e é necessário, por exemplo, que cada um fale de frente para essa pessoa para facilitar a comunicação, e/ou que existam nos serviços públicos, quem domine a língua gestual portuguesa, de modo a servir de tradutor/intérprete.

As pessoas com deficiências mentais não poderão ter bom desempenho em tarefas que exijam o raciocínio, mas podem desenvolver boas competências noutro tipo de trabalhos, se essa oportunidade lhes for dada. Estes são apenas alguns exemplos, no meio de muitos outros que poderiam ser dados, mas que devido às limitações inerentes a esta exposição, terão de ficar para outra oportunidade.

5. Informar para desmistificar, desmistificar para incluir

Os meios de Comunicação Social deverão servir para informar, no sentido da desmistificação, de modo a dar a conhecer a realidade das chamadas pessoas com deficiência, de modo a derrubar grandes muros de falsas crenças que têm impedido a aproximação saudável entre todas as pessoas.

Felizmente, vai longe o tempo em que as pessoas com deficiência eram rejeitadas por todos, ao ponto de serem mortas à nascença. Está a ficar cada vez mais longe o tempo em que as pessoas com deficiência, pessoas apenas dignas da compaixão e da piedade, tinham como único recurso mendigar, dedicar-se a trabalhos pouco ou nada gratificantes, ou ainda viverem protegidas de todos os olhares em casa, quando as possibilidades económicas da família assim o permitiam.

Apesar desta evolução, ainda há muito trabalho a fazer. Verifico com satisfação que os mais jovens cada vez menos ficam parados na rua a ver um cego a passar, cada vez menos vêm a correr segurar no braço para ajudar, mas antes perguntam se é necessária ajuda. Cada vez menos se aproximam sem qualquer rodeio nem respeito para perguntar se é de nascença, se uns óculos não ajudariam, e para dizer tão lamentosamente, “coitadinha, que pena ter ficado assim”.

Hoje fala-se muito em inclusão. Diz-se que a sociedade deve deixar de ser integradora para passar a ser inclusiva, ou seja, deve ser ela própria a modificar-se para que as pessoas com deficiência se sintam membros plenos de uma sociedade para todos.

Esta inclusão pressupõe então que todos deverão ter acesso ao emprego, à cultura, ao lazer, ao amor.

Estamos no início daquele que me parece ser um trabalho de anos, mas quanto mais nos empenharmos nesta tarefa, melhores serão os resultados.

Fica então o desafio à Comunicação Social: continuem no vosso trabalho de informar, com vista a uma sociedade de pleno direito para todos, quer estes não vejam, não andem, não ouçam, não tenham tão bom desempenho na escola...

A vida inclui todas estas condições. Porquê continuar a alimentar uma imagem perfeita do ser humano como alguém que tem que ser belo, inteligente e bem sucedido em todas as áreas da sua vida?

Cada um de nós tem os seus êxitos, os seus fracassos, e quantas vezes estes não se vêm! Cada um de nós tem encantos a descobrir porque é diferente daquele que está ao lado.

Termino, com um apelo: com o vosso trabalho diário, colaborem para dignificar o papel e a função de cada pessoa que tenha uma necessidade especial na nossa sociedade.

Informem para que os empregadores tenham menos receios de apostar em pessoas que apresentam um problema físico ou mental. Informem para que as pessoas conheçam melhor os recursos que têm ao seu alcance. Informem para que o facto de alguém que não apresenta um problema físico escolher para seu companheiro(a) uma pessoa com uma deficiência deixe de surpreender.

Informem para que a deficiência não seja um estigma, um sinal que distingue aquela pessoa das que a rodeiam, e passe a ser uma dificuldade que tem de ser enfrentada como qualquer outra.

Sandra Estêvão Rodrigues