Na passada Segunda feira, 3 de Outubro de 2011, passou uma reportagem intitulada ver para contar cegos, reportagem essa inserida no programa mudar de Vida, da RTP 1.
A jornalista Rosário Salgueiro andou uma semana com os olhos vendados, e aparece na reportagem a ter aulas de mobilidade, e algumas aulas de actividades da vida diária.
No final deste artigo, faculto a ligação directa para este programa.
Antes porém, quero transmitir aos caros leitores a minha opinião sobre a forma como decorreu a reportagem.
Apesar de a opinião generalizada ter sido positiva, eu penso que a senhora jornalista acabou por passar uma imagem redutora.
Quando a jornalista pergunta coisas como: E agora como é que eu vou beber, e usa a mão que tem disponível para procurar a boca, Imagino a ideia com que as pessoas que estão a ver a reportagem ficam das pessoas com deficiência visual.
Gostei muito da resposta do Peter colwell da Acapo que disse à senhora jornalista que tinha de beber com a boca, mas era perfeitamente escusado este discurso da santa Luzia.
Aquela viagem que o Albano fez acompanhado com o seu cão-guia foi muito pedagógica, mas infelizmente até aí, a senhora jornalista desempenhou um papel muito triste.
Então não ela que ela ficou muito admirada pelo facto de o cão saber distinguir a direita da esquerda?
Que diabo. A senhora jornalista não sabe que existem cães polícias que descobrem droga? Que descobrem a existência de odor humano? E isso não exige mais perícia do que distinguir a direita da esquerda?
Sinceramente chego a pensar se tudo isto é ignorância, ou intenção de fazer espectáculo com a cegueira.
Creio que uma reportagem, que passa em horário nobre, deveria ser melhor preparada, e sobre tudo, deveria passar uma ideia da cegueira muito mais moderna, muito mais real, pedagógica e construtiva, e deixar definitivamente para traz aquela ideia monstruosa que faz dos cegos seres anormais.
Louvo o esforço daqueles que quiseram fazer algo de construtivo. A esses dou-lhes os meus parabéns. Sei que não é nada fácil lidar com o facto de termos coisas importantes e pedagógicas para dizer e para fazer, e depois o nosso interlocutor estar mais interessado em saber como é que o cão sabe que é a direita, ou como consegue beber um copo de água, como se os cegos não fossem capazes de fazer isso autonomamente.
É por isso que eu por princípio sou frontalmente contra a que um normovisual se mascare de cego, a não ser obviamente em situações excepcionais, como por exemplo cursos de orientação ou mobilidade.
Também não duvido das boas intenções de quem pensou num programa neste formato. A questão é que quem tenha perdido a visão recentemente precisa é de estímulos, quanto muito tomar contacto com exemplos de sucesso, de pessoas que perante a sua cegueira tentam fazer uma vida o mais normal possível.
Aqueles que decidem ficar sem ver durante alguns momentos, já mais ficam com uma verdadeira noção da forma como um cego pode fazer a sua vida.
E como não sabem como fazer as coisas, acabam por mostrar uma imagem muito diferente da realidade. E o pior é que essa imagem é muito mais sinistra, muito mais monstruosa e limitativa, do que na verdade é a vida de um cego. Aquilo que temos de dizer a quem perdeu a visão recentemente, é que felizmente temos muitas pessoas na mesma situação, que fizeram o seu processo de reabilitação, e que hoje já conseguem desempenhar as tarefas do dia a dia autonomamente.
Resta-me desejar que aqueles que estão neste momento a cegar, e que viram a reportagem, ponham os olhos nestes casos de sucesso, e tentem na medida das suas possibilidades seguir estes bons exemplos.
Deixo então o link para verem este programa.
http://www.google.pt/url?sa=t&source=web&cd=2&ved=0CCoQFjAB&url=http%3A%...
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Comentários
cegueira para ver em televisão
Caro Filipe, obrigado por ter tecido considerações que reflectem o que também eu penso. Costumam ser claras e judiciosas e acompanhadas sempre do meu sincero apreço. Se escrevesse para um periódico, eu seria seu leitor inveterado. As suas reflexões têm a qualidade de não presumirem toda a verdade, mas antes esgrimi-la com a honestidade intelectual de quem desafia e rejeita o senso comum.
Isto para dizer que subscrevo o seu comentário sobre a reportagem simulada com a jornalista da RTP. Tratou-se dum conjunto de situações mais ou menos pré-concebidas com o objectivo de passar uma imagem que, não pretendendo questionar estereótipos arreigados no público, também acaba por não obter o efeito desejável: - promover uma nova mentalidade sobre a problemática abordada, aliás, não problematiza. Afinal, como peça jornalística de televisão que é, pretende, sobretudo, estimular a curiosidade e a surpresa de quem assiste, mais do que o seu esclarecimento. Senão, verifique-se a opção: (casal de cegos) para protagonizar o papel de anfitreões da jornalista imolada à cegueira fictícia. Provavelmente, também o público em geral esperaria que a esposa do Albano fosse, como ele, também cega.
Apetece repetir aqui a mais profunda frase de incontornável inspiração divina de que o senso comum é capaz: - É a vida!
Pois é, uma má idéia...
Oi, Muito bom o artigo, fico admirada com pessoas que conseguem transmitir um feedback negativo sem recorrer a falta de educação.
Pra mim, esse tipo de reportagem parece uma previsão do tempo que o apresentador só conta qual vai ser a temperatura mínima.
Abraços
Devia ser melhor, mas foi globalmente positiva
Creio que globalmente a reportagem foi positiva, até pela generalidade das intervenções positivas das pessoas cegas que participaram. Quanto à a jornalista, realmente passou uma imagem de como reage uma pessoa que acabou de ficar cega, o que obviamente não corresponde a um cego que fez um processo de reabilitação e que já se adaptou a essa realidade. Claro que nós gostamos sempre que as reportagens sejam o mais pedagógicas possíveis e que passem a melhor imagem possível, contudo não sei se é essa a função do jornalismo.
Algumas observações e perguntas da jornalista podem não fazer sentido para nós, contudo representam muito do que pensam os normovisuais, pelo que o facto de serem questionadas e respondidas pelos outros intervenientes pode ter um aspecto pedagógico, penso que foi este um dos objectivos/estratégias da jornalista.
Em suma, apesar dos vários aspectos menos conseguidos, penso que passou uma imagem positiva para o público em geral, as pessoas também sabem distinguir as diferenças entre o comportamento que teve a jornalista como cega recente, e o comportamento dos outros cegos já adaptados à cegueira.
Poderia ser melhor mas tomara a muitas!
Julgo que, para não variar, os cegos estão também sempre prontos a criticar. Obviamente que a reportagem teve pontos negativos e todos sabemos quais foram. Agora tomara, e reprito: tomara, que todas as reportagens sobre os ceguinhos deste país fossem como esta. Claro que a jornalista nunca poderá ter a real sensação como é deixar de ver e ter essa condição como permanente, mas ao menos tentou. Lembram-se de outra reportagem nestes termos? Ela mostrou exemplos de autonomia, inclusão, etc. Este "bota-abaixismo" (que não é, obviamente, exclusivo dos cegos) nunca trouxe nada de bom. Pá... Enquanto houver pontos positivos há que aproveitar! Tirando o comentário do Daniel, poucos referiram realmente a diferença que esta reportagem fez em relação a muitas outras.
Just my 2 cents.
Olá Tixa!
Olá amiga!
Como estás? Há séculos que não sei nada de ti...!
Mas voltando ao tema aqui abordado...
Ontem eu e o Marco estávamos exactamente a falar desta reportagem e fui eu que sugeri ao Marco para a comentar. Acho que foi uma grande reportagem e é absolutamente normal para um normovisual ou alguém que tenha ficado de repente cego duvidar das suas capacidades e sentir-se complertamente perdido! É um redescubrir de nós mesmos e do mundo que nos rodeia, reaprender a viver!
Beijinhos, Céu!
A ignorância de quem é normovisual
Caro Filipe,
Como deficientes visuais não gostamos de ser olhados pelos normovisuais como "debéis mentais", mas penso que o objectivo da reportagem não foi passar uma imagem negativa dos cegos, mas sim mostrar a grande ignorância de quem enxerga e não imagina como é a vida de uma pessoa cega.
O que eu penso é que a jornalista ao fazer aquelas perguntas sobre como bebemos ou como o cão-guia sabe distinguir a direita da esquerda estava a fazer as mesmas perguntas que muitos normovisuais fazem. Ela não estava a pensar nos cegos, mas sim no que os normovisuais pensam do que é ser cego.
Foi muito bem ter mostrado como há tanta coisa que os normovisuais não sabem, e isso não é razão para nós, cegos, ficarmos ofendidos.
Realmente, teríamos gostado que a jornalista se tivesse focado nos sucessos de pessoas cegas que, por meio da reabilitação, têm uma vida normal. Eu acho que a ideia da reportagem foi mostrar como pessoas que perderam recentemente a visão vivem as dificuldades que a jornalista experimentou.
Cumprimentos
Pois então... ainda acho que foi uma má idéia
Olá, após ler alguns comentários muito bem postos, tentei reavaliar minha perspectiva, mas continuo achando que a informação foi passada de maneira incompleta.
É sempre bom saber que comunicadores se interessam em esclarecer as pessoas a respeito da cegueira, a iniciativa foi boa, a intenção admirável. Mas a chamada do programa no site diz que a matéria mostraria as dificuldades pelas quais o cego passa, quando mostrou as dificuldades pelas quais quem acabou de cegar passa.
Talvez seja apenas uma questão de semântica...
Abraços.
comentário de Filipe.
Meus caros amigos.
Quero agradecer sinceramente os vossos comentários.
Fico muito satisfeito por perceber que foram expressos vários pontos de vista, e acreditem que é com muito agrado que leio todas as opiniões, porque quando se consegue estabelecer um debate sério, sem preconceitos, sem limitações de ordem ideológica, e essencialmente com elevação e educação, é algo muito positivo, porque como diz o nosso caríssimo companheiro Nidros, creio que nenhum de nós tem a pretensão de ser o dono da verdade.
O Daniel levantou uma questão curiosa. Se bem percebi aquilo que ele defende é que a jornalista estava a representar uma pessoa que tinha acabado de cegar, e que não tinha necessariamente de ser pedagógica, apenas tinha de ser verdadeira, e tentar mostrar a reacção de um cego recente.
Até aceito esta tese. A questão no meu ponto de vista é que este trabalho não foi uma simples peça jornalística. Foi uma reportagem informativa, que deveria também ter a componente pedagógica. E aí é que eu penso que o caminho seguido deveria ser outro, porque realçar o comportamento de uma pessoa que acaba de cegar, não me parece relevante, e não espelha nem pouco mais ou menos, aquilo que pode ser a vida da pessoa quando se reabilitar.
Se formos por aí, também podemos começar a mostrar a reacção daqueles que acabam por ficar tetraplégicos, amputados etc. Não faria sentido! Porque seja qual for a limitação, ela exige sempre um tempo de adaptação, preparação, habilitação e reabilitação.
Também fiquei muito sensibilizado com o testemunho da Patrícia, ainda para mais vindo ele na primeira pessoa. Não duvido nada que a maioria das reacções à reportagem tenha sido positiva. No entanto, creio que o feedback podia ser ainda melhor se a personagem central da reportagem não fosse a jornalista que se mascarou de cega, mas sim as pessoas reabilitadas, e que podem e devem ser encaradas como exemplos a seguir.
E sinceramente não acho que isto seja o tradicional bota abaixo. Parece-me que é tempo de os cegos neste caso serem protagonistas das coisas, demonstrarem aquilo que querem, e de uma vez por todas começarmos a olhar para a cegueira como algo natural, como olhamos para outro tipo de patologias.
Verifico que só em relação à cegueira, é que há a necessidade de vendar os olhos, não sei muito bem para quê. Só se for para maximizar e criar ainda mais preconceitos sobre a cegueira na cabeça daqueles que não convivem diariamente com pessoas cegas.
Não vejo ninguém a simular outras deficiências, para encarnar a pele do deficiente. Só vejo isso com a deficiência visual. Provavelmente dará que pensar!
Não me digam que a deficiência visual é diferente de todas as outras. Naturalmente é diferente, mas todos sabemos que em muitos casos até pode ser menos limitativa, logo tudo o que se faz em torno da cegueira para mim é meramente espectáculo para todos verem, menos os próprios interessados que são os cegos!
Mais uma vez muito obrigado pelos vossos comentários, e agradeço do coração as palavras muito amáveis e simpáticas do nosso caríssimo Nidros.
Um abraço para todos.
Filipe.
Caro Filipe, Concordo
Caro Filipe,
Concordo contigo que seria mais interessante que os cegos fossem as "personagens principais". Mas para isso não precisamos necessariamente de jornalistas. Existe o Youtube, e se o "sai da frente guedes" é visto, porque não? Basta arranjar quem filme e produza a coisa (e há-de haver um amigo do amigo de alguém para isso), e nós decidimos os conteúdos. Eu não me importaria de entrar numa coisa dessas. Se achamos que deveria ser de outra forma, porque não mostrá-lo nós mesmos?
resposta a Rui Baptista.
Viva Rui.
Destes uma óptima ideia. gostei mesmo dela. Podíamos mesmo estruturar conteúdos para umaa série de vídeos. Uns seriam digamos assim mais pedagógicos, outros poderiam ser para chamar a atenção dos problemas que infrentamos no dia a dia.
Quando eu falo em pedagogia, estou a pensar em vídeos informativos. Por exemplo técnicas de guia, vídeos que mostrem e expliquem diferentes actividades profissionais desempenhadas por cegos etc. Por acaso vou pensar mesmo a sério nesta possibilidade. Havemos certamente de falar nisto.
Um abraço.
+Filipe Azevedo