SOCIOCOMUNICABILIDADE E INCLUSÃO *
SOCIOCOMMUNICABILITY AND INCLUSION*
Augusto Deodato Guerreiro
(Professor Universitário/Ensaísta
Resumo
Face aos desafios da diferença e à política para a inclusão, história e evolução destes conceitos, recorremos ao Plano de Acção para a Integração das Pessoas com Deficiência ou Incapacidade, aprovado e publicado em 2006, para conferir com o leitor o que pensamos sobre os efeitos da imagem humana na sociocomunicabilidade inclusiva, do condicionamento sociocomunicacional INCLUSIVO mediante a obesidade mental sobretudo nos media, comunicabilidade, cultura e corresponsabilidade em estratégias científicas para a inclusão, cultura digital e biblioinclusão. Consideraremos o poder e a determinação da cultura da partilha, da responsabilidade/responsabilização/corresponsabilização, da cultura da cultura, e a necessária sensibilidade, no encaminhamento estratégico e resolução das prementes questões que condicionam ou impedem a inclusão principalmente sociocomunicacional de cerca de um milhão de cidadãos em Portugal.
A sociocomunicabilidade, como capacidade que temos para nos socializarmos e para comunicarmos, é o móbil, a intencionalidade operante em cada momento, a motricidade humana inorgânica e orgânica, inteligente, que nos faz existir e viver, e nos incita a fazer acontecer e a fazer existir e viver.
A cultura da mediatização constitui uma força evolutiva irreversível para alcançar a inclusão sociocomunicacional de todos, desde que a comunicação (o comportamento mediático) se processe de forma acessível a todos os cidadãos, para todos e com todos.
Abstrat
Sociocommunicability And Inclusion Considering the difference challenges and the inclusion policy, the history and development of such concepts, we take the Action Plan for Integration of the Disabled, approved and published in 2006, as a starting point for a reflection on the effects of the human image on the inclusive socio-communicability, on the INCLUSIVE socio-communicational conditioning through a mental obesity, mainly in the media, on communicability, culture and co-responsibility in scientific inclusion strategies, digital culture and biblio-inclusion. We reflect on the power and the determination of a sharing, responsibility/accountability/co-responsibility culture, of the culture of culture and on the necessary sensitiveness for dealing with the urgent issues that condition or hinder, mainly, the socio-communicational inclusion of about one million citizens.
The mediatization culture is an irreversible development process towards the socio-communicational inclusion of all people, provided that media is accessible and addressed to every citizen.
INTRODUÇÃO
Alcança quem não cansa (Aquilino Ribeiro). Uma frase que nos parece traduzir institucional e pessoalmente o empenho, a determinação e os consequentes resultados, certamente como frutíferos desse mesmo empenho e determinação, sobretudo dos cidadãos portadores dos diferentes desafios, designadamente físicos, sensoriais, cognitivos. Poderíamos falar especificamente sobre os desafios da diferença e uma política propriamente para a inclusão, da história e evolução destes conceitos, pois existe um plano de acção para a integração das pessoas com deficiência ou incapacidade, recentemente aprovado e publicado no Diário da República em 21 de Setembro de 2006, mas pretendemos antes conferir com o estimado leitor o que pensamos sobre os efeitos da imagem humana na sociocomunicabilidade, o poder e a determinação da cultura da responsabilidade e da responsabilização, da corresponsabilização, e a necessária sensibilidade, no encaminhamento estratégico e resolução das prementes questões que condicionam ou impedem a inclusão principalmente sociocomunicacional de cerca de um milhão de cidadãos em Portugal.
Dando cumprimento ao imperativo constitucional, a Lei nº 38/2004, de 18 de Agosto, que aprovou as bases da prevenção, habilitação, reabilitação e participação dos cidadãos com deficiência, definiu como grandes objectivos neste domínio a promoção da igualdade de oportunidades, de oportunidades de educação, trabalho e formação ao longo da vida, a promoção do acesso a serviços de apoio e a promoção de uma sociedade para todos através da eliminação das barreiras e da adopção de medidas que visem a plena participação destes cidadãos. Cabe ao Estado a responsabilidade de adoptar as medidas necessárias para garantir às pessoas com deficiência o pleno reconhecimento e o exercício dos seus direitos num quadro de igualdade de oportunidades, tendo ainda em particular atenção os factores de discriminação múltipla em razão do sexo, das condições físicas, intelectuais, sociais, étnicas e culturais.
Nos nossos dias, a cultura da mediatização, em todos os suportes e formatos, pode constituir uma força evolutiva irreversível até se alcançar com o êxito desejável a inclusão sociocomunicacional de todos os cidadãos com desafios especiais, desde que a comunicação se efectue, na realidade, acessível a todos os cidadãos, para todos e com todos.
OS EFEITOS DA IMAGEM HUMANA NA SOCIOCOMUNICABILIDADE
Há aspectos ligados à imagem humana e à cultura da aparência que é preciso encarar com coragem, firmeza, rebeldia, eloquência no vencer essas dificuldades que temos em ser iguais a nós mesmos. A sociocomunicabilidade, como capacidade que temos para nos socializarmos e para comunicarmos, é o móbil, a intencionalidade operante em cada momento, a motricidade humana inorgânica e orgânica, inteligente, que nos faz existir e viver, e nos incita a fazer acontecer e a fazer existir e viver . Walter Benjamin (1892-1940) sustentou que O mais esquecido de todos os estranhos é o nosso corpo - o nosso próprio corpo. De facto, o ser humano, em contextos muito diversos, é apenas o sujeito que se vê e que é ou não o nosso interlocutor, sem nos interrogarmos sobre a indissociabilidade que somos nos planos psicológico, mental e espiritual, cultural e cívico, bio-sócio-comunicacional. Somos, em geral, a imagem que representamos aos olhos dos outros e da sociedade, ignorando-se ou negligenciando-se que, intrinsecamente, podemos ser muito diferentes, mesmo o oposto daquilo que realmente se vê na nossa imagem física. Da Vinci (1452-1519) asseverou que O corpo é o que tem altura, largura, comprimento e profundidade. Afirma Paulo Cunha e Silva que A profundidade constitui a mais-valia de indecidibilidade em torno da qual se constrói qualquer corporologia, [
] o corpo contemporâneo perdeu densidade e profundidade, tornou-se etéreo e superficial: ao transportarmos a profundidade para a superfície, na tentativa de visualizarmos um interior, a espessura do corpo passou a ser a da película que suporta a sua imagem. Defende Agostinho Ribeiro que Entre as mudanças culturais ocorridas nas últimas décadas do século XX - e que já imprimiram marcas indeléveis na história da cultura ocidental - avulta a emergência do corpo com um estatuto e uma omnipresença de todo imprevisíveis ainda em meados do século. O movimento irrompeu imparável nos anos 60 e 70, com a reivindicação do direito do indivíduo ao uso livre do seu corpo, despido dos tabus em que se cristalizara o controlo social dos prazeres corporais. Depois, nos anos 80 e 90, foi a tomada de consciência de que o corpo é a face visível da própria pessoa, que com ele subjectivamente se identifica e por ele socialmente se apresenta .
E é a nossa imagem, na película que a suporta, que promove a nossa aceitação ou exclusão na sociedade, sendo pela importância e pelo marketing que imprimirmos ao nosso corpo que nos conseguiremos sentir incluídos, tolerados ou excluídos socialmente e em todos os domínios. Sublinham a nossa personalidade, em regra, o rosto e a silhueta como cartão de visita, o corte de cabelo, o penteado, os óculos, os sapatos e a indumentária que exibimos, o que também pode servir, se necessário, para encobrir dos outros o desconforto do nosso corpo, sendo adicionais que marcam eventualmente o nosso carácter. Disfarçamos ou evidenciamos algo que se prende com a nossa imagem, assumindo ou não o corpo que temos, com todas as formas bem ou mal definidas, funcional ou disfuncional, mascarando, inclusive, a amplitude de humores com que acordamos ou convivemos. Sentindo-nos livres, condicionados ou mesmo escravizados com a relação que temos com o nosso corpo, a roupa que vestimos e a maneira como a usamos revela sempre uma linguagem própria que tem a ver com o nosso estado de espírito, bem como, em geral, com os códigos sociais vigentes, assinalando um estilo através das cores e dos padrões dos tecidos com que nos ataviamos.
Claro que, neste domínio, cabe à mulher uma tarefa mais delicada na escolha e exibição de roupas, atendendo à performance mais elaborada que nós, homens, lhe exigimos. De resto, o que usamos em casa, na rua ou no emprego responde sempre a um código social, seja ele qual for, dos mais novos aos mais velhos, prevalecendo sempre diferenças notórias em função da classe social a que cada um pertence. E nesta acepção, por necessidade e num secreto desejo de agradar, vestimos a roupa mais adequada ao dia e às circunstâncias, procurando iludir ou esconder dificuldades ou especificidades íntimas com o nosso corpo, com a vida ou com as relações que estabelecemos à nossa volta, legitimidade que, aliás, devemos alimentar de uma forma saudável e sem excessos narcísicos. Isto porque, em função do parece bem e do parece mal, chegamos até a suportar fazes de rejeição parcial ou total do nosso corpo, não conseguindo evitar, em certas situações, determinados e angustiantes comportamentos patológicos.
O sentimento e o conceito de beleza é o que mais nos inspira, e que por vezes nos martiriza, numa certa obsessão com a nossa aparência. O nosso corpo tem o direito de ser embelezado e há um dever de beleza, da nossa parte, para com ele, o que justifica o tempo que por vezes demoramos ao espelho a compor a imagem, a estudar a roupa e os gestos, a articulação da palavra e a consequente moldagem do rosto, o semblante e a postura convenientes, o cuidado exercício na bipedeestação moldando e alindando determinadas zonas anatómicas mais sensuais e sensualizantes, preocupações que revelam muito sobre o nosso mundo interior e o relacionamento com os outros. Todos reconhecemos que vivemos atraídos pelo belo, em permanente julgamento estético sobre nós e tudo o que nos rodeia, pessoas, objectos, paisagens, obras de arte... Sabemos que a beleza e a feminilidade são indisociáveis e que se exige às mulheres que sejam bonitas, cuidadas, inteligentes, eternamente jovens e também muito sexy. Aos homens, em que a beleza e a masculinidade também não podem dissociar-se, é-lhes exigido que sejam, sobretudo, viris e cuidados, perspicazes e surpreendentes, inteligentes, galantes.
Não obstante todas as civilizações terem exaltado a beleza, sobretudo a partir do Renascimento, e o corpo ter desempenhado sempre um papel importante nos valores sociais, nunca o corpo, ao longo da história, foi tão idolatrado como nos nossos dias. A cada vez maior obsessão pela aparência tem vindo a revelar-se uma das principais causas de stress e ansiedade, tornando infelizes e deprimidos todos aqueles que não conseguem alcançar os padrões de beleza impostos pela sociedade ou por eles próprios ansiados. E é esta lógica, irracional tantas vezes, que acaba por conduzir jovens e adolescentes a uma vida completamente vivida em função da desejada aparência dos seus corpos, potenciando casos de anorexia e bulimia.
Durante séculos sucessivos muito se tem tentado encontrar, através de artistas, filósofos, cientistas e outros pensadores, uma definição para o conceito de beleza, existindo sobre a questão diferentes respostas em todas as épocas, com recurso a critérios de mutabilidade constante. Nos nossos dias, quando nos referimos à beleza física, o que em geral se valoriza são os corpos jovens, magros e silhuetas esguias, cuja configuração, há alguns anos atrás, seria desinteressante aos olhos, significando até falta de saúde e má nutrição, só se considerando as mulheres bonitas e sensuais aquelas que tivessem formas acentuadas e arredondadas. Nesta acepção, o conceito de beleza tem variado ao longo da história e da cultura em que nos inserimos, sofrendo as naturais influências socioculturais, sendo a beleza diferentemente vista no mundo, variando as tendências e gostos conforme a latitude e as épocas, mas permanecendo sempre ao longo do tempo a ideia da beleza associada ao equilíbrio das formas, de certos conteúdos e coloridos. Em sintonia com Afonso de Albuquerque, por mais subjectiva que a beleza seja, estudos recentes demonstram a influência de determinados factores biogenéticos na sua definição. Têm vindo a encontrar-se algumas características definidoras da beleza de um rosto feminino ou masculino, sendo uma delas a simetria, segundo a qual se é mais belo quanto mais o lado direito for igual ao esquerdo, constatação que não se tem alterado consoante as épocas. A explicação deixa-nos depreender que as assimetrias no rosto seriam interpretadas como se equivalessem a malformações ou defeitos, não apenas no rosto mas na inteligência, nos ossos, nos órgãos, o que, ao nível da interpretação e do inconsciente, nos levaria a intuir que só seriam saudáveis as pessoas com rostos simétricos. Tal justificação parece revestir-se de algum significado, não sendo por acaso que ao fim de tantos anos da nossa evolução continue a existir este tipo de preferências, encerrando quiçá um valor de sobrevivência da nossa espécie, sendo as pessoas com assimetrias no rosto, por isso, entendidas como menos aptas a assegurar um desenvolvimento saudável do ser humano.
Será a beleza determinante na atracção física entre homem e mulher? Pensamos que, para além da problematização que o assunto sugere, não poderá reduzir-se a atracção entre sexos apenas ao aspecto físico, tendo em conta que a atracção é não só física, mas também psicológica, emocional, físico-química, existindo, neste caso, determinados elementos químicos, como o odor e as hormonas sexuais (feromonas) produzidas pela mulher e pelo homem, que, apesar de serem detectáveis só durante a actividade sexual, têm um claro efeito afrodisíaco e de beleza bio-psíquico-emocional. Estamos cientes da inequívoca determinância, nos cruciais momentos e oportunidades, do peso da beleza na atracção puramente física. Há duas zonas diferentes do cérebro que se activam quando existe atracção, estando uma ligada à atracção ou desejo sexual puro, e a outra ao aspecto emocional, do qual depende o enamoramento. Trata-se aqui do aspecto afectivo da atracção, em que os dois sexos se comportam de modo diferente. Ao que parece, estas duas zonas são claramente separadas no homem e mais coincidentes na mulher, o que talvez possa explicar a razão por que é mais fácil para o homem separar aspectos físicos de aspectos emocionais e românticos. Contudo, na sequência do que temos vindo a afirmar, a atracção não depende exclusivamente da beleza física, dado que a atracção entre duas pessoas implica, simultaneamente e às vezes muito mais do que determinados factores físico-químicos, outros ingredientes de beleza interior que tornam a mulher e o homem mais belos. Ainda segundo Afonso de Albuquerque,
a atracção física que sentimos numa primeira impressão, quando vemos alguém sem haver qualquer espécie de relação, é primária, vindo o amor depois, sendo o amor tão importante que, para alguém que ame uma pessoa objectivamente feia, a ache verdadeiramente bonita. O amor, esse mistério por vezes despótico, confuso ou indulgente, que se afigura pairar para além do Olimpo como uma substância invisível, insondável, mítica, cuja infinitude, de leveza superior ao do ar e profundidade abaixo do mais fundo dos mares, nem sempre se nos apresenta inteligível e acessível, provavelmente por razões bioquímicas e de sobrevivência humana na terra e na eternidade dos tempos. Mas a questão da beleza associada a uma imagem cuidada tem grande preponderância mesmo noutros domínios, pois sabemos que a aparência é importante não só na dimensão da atracção física, como em muitos outros aspectos da nossa vida. Aliás, em qualquer relação que estabelecemos, com a questão da aparência sempre presente, somos avaliados desde logo pela impressão que a mesma provoca. Estudos recentes sobre a importância da beleza e do cuidado com a imagem concluem que, em geral, as pessoas bonitas ou com uma imagem cuidada alcançam melhores empregos, maior sucesso social e profissional, maior credibilidade e até melhores honorários, embora, por vezes, cheguem a sentir-se injustiçados, quando conseguem triunfar servindo-se da beleza física como mais-valia, pelo facto de recearem que os outros se lhes dirijam só pela sua beleza e não, também, por outras qualidades que porventura possuam.
Parafraseando Bruno Remaury, o dever de beleza sempre esteve presente no espírito feminino, mesmo que de uma forma subliminar, o que gerou a multiplicação e a democratização das técnicas para o aperfeiçoamento ou a transformação do corpo, modificando-se o discurso alusivo à aparência, e sucedendo-se, ao dever social de ser bela, o dever moral de poder ser bela, o que significa que, a partir do momento em que tudo se modifica e tudo se pode transformar por intermédio da cirurgia ou da cosmética, a mulher tem a obrigação imperiosa de ser bonita, cabendo-lhe, só a ela, ser bela .
A explosão da indústria da moda da cosmética, assim como a terrível escalada das dietas, surgem como consequência da tendência universal para se admirar o que é, ou se convencionou achar belo. A criação de uma imediata panóplia de soluções mágicas garante tornar-nos mais belos, sedutores e irresistíveis. No entanto, inquestionavelmente, é a beleza interior que amplia e torna mais verdadeira a beleza exterior, sendo incontestável que uma boa aparência física tem sempre mais impacto social, não salvando, todavia, ninguém de angústias e tristezas, traduzindo-se muitas vezes o dever de beleza, feminino ou masculino, numa armadilha terrível, que origina uma auto-exigência desmedida, contraindo-se dívidas astronómicas para parecer bem na ansiedade que se cria à volta da imagem. Lendo o artigo de Maria Ana Luz, cujo conteúdo muito nos agradou e suscitou a ampliação deste contexto, "Assim como a inteligência racional precisa da inteligência emocional para vingar, também a beleza exterior só colhe frutos se conferir com a beleza interior" .
De nada adianta cuidar da imagem, se o essencial ficar esquecido, que é o bem-estar interior e o conforto que sentimos na relação connosco mesmos e com os outros à nossa volta. Mulheres ou homens privados de beleza exterior não ficam amputados de uma parte de si mesmos. Podemos jogar a nosso favor o dever de beleza pelas melhores razões. É fundamental que gostemos de nós, que acreditemos nas nossas capacidades e que assumamos um dever ainda maior e mais imperioso que nos obriga a rentabilizar potencialidades e capacidades, evidenciando os nossos inequívocos talentos. Tão importante como a roupa e outros ingredientes acessórios que ostentamos é a substancialidade com que vestimos o nosso coração, secundando Saint-Exupéry (1900-1940). E, como sustentaram David Hume (1711-1776), A beleza das coisas está no espírito de quem as contempla, e Einstein (1879-1955), A beleza reside no coração de quem a contempla.
Clarificando a nossa posição, a vivência da beleza não se mantém no plano exclusivamente sensorial, visto que a culminância do seu ponto máximo ocorre na inteligência, faculdade específica humana, sendo graças à actuação protagonista do intelecto que a experiência estética pode pertencer ao património vivencial de todo o ser humano, mesmo daqueles que não vêem nem ouvem (os surdocegos), dando-se a verdadeira compensação dessa dupla ausência sensorial através da utilização mais intensa do intelecto . Para uma pessoa surdocega que oriente a sua inteligência para o belo, o material que percepciona com o tacto pode ser suficiente para, por intermédio da elaboração imaginativa, penetrar no território da experiência estética .
Na verdade, tudo o que pode ajudar a transformar a vida numa perspectiva de inclusão começa num gesto mínimo, eivado do mais simples dos pensamentos, como o de nos colocarmos, uns segundos que sejam por dia, no lugar dos que vestem problemáticas complexas e difíceis de suportar. 2003 foi proclamado o Ano europeu das Pessoas com Deficiência. O termo deficiente, por si só, rotula, marginaliza, exclui... Seria preferível a adopção da terminologia: pessoas com diferentes graus de dificuldade ou, segundo o puritanismo americano, pessoas com um desafio físico, com toda a discutibilidade que a expressão encerra. Que 2003 não tivesse sido apenas mais uma boa intenção materializada nas habituais chorrilhantes sementeiras de palavras sonantes, mas que ainda possa vir a traduzir-se, pelo menos de algum modo, em mais uma oportunidade que ajude a contribuir para um sistemático avanço na erradicação da infelizmente tão persistente, cruel e silenciosa discriminação de largos milhões de cidadãos no Velho Continente e em todo o mundo (só na Europa cerca de trinta milhões), sobretudo por dificuldades de natureza funcional, que impedem ou condicionam a comunicabilidade, a visão, a mobilidade, e outras faculdades, votando-os a um completo e inadmissível segregacionismo. Foi proclamado 2007 como o Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades. Que mais este incentivo mobilize sinergias para evitar cansaços, que sedimente conquistas e alcance cada vez mais resultados que fortaleçam a caminhada inclusiva. Se cada um de nós, ao abrir os olhos após cada sono, for capaz de adoptar a higiene diária de pensar que, de um momento para o outro, pode acordar cego, surdo, surdocego, hemiplégico ou tetraplégico, talvez a interacção e intercompreensão humana passe a ser mais digna e mais frutuosa em favor do bem-estar de todos os cidadãos cuja imagem ou disfunções os excluem socialmente, talvez o mundo em geral se torne menos agressivo, mais humanizado, rumo à realização da socialização da esperança e paz no mundo, onde todos possam caber, independentemente da imagem sociocomunicacional que vestirem.
CONDICIONAMENTO SOCIOCOMUNICACIONAL INCLUSIVO SOBRETUDO PELA OBESIDADE MENTAL DOS MEDIA
Embora não tenhamos problemas de iliteracia e vejamos implícita a comunicação nos compromissos legislados com a deficiência, sentimos (e sabemos) que a questão da comunicabilidade, com os efeitos dela decorrentes, não tem sido suficientemente valorizada na política nacional de inclusão, e isso leva-nos a concentrar na sociocomuicabilidade como elemento imprescindível à inclusão, seja de que natureza for. É nosso sentimento e constatação de que é preciso cultura, persistência e espírito revolucionário de ideias para transformar mentalidades e promover mudanças para que os desafios da diferença passem a ser entendidos por quem de direito e a inclusão sociocomunicacional naturalmente aconteça. Mas não numa dimensão de revolta, limitando-nos a mexer socialmente com as pessoas, mas como revolução, transformando as pessoas e as instituições. Martin Luther King, Jr. (teólogo norte-americano, 1929-1968) sustentava que um movimento social que se limita a mexer com as pessoas não passa de uma revolta. Um movimento que transforma as pessoas e as instituições é uma revolução. E pensamos que a comunicação social, os órgãos de comunicação social, os media, poderão, quando se sentirem motivados para isso e quando o entenderem, participar de forma saudável e decisiva neste tipo de revolução conceptual e de transformação de mentalidades conducente à real interpretação dos mais diversos desafios e adequada solução dos seus problemas, em busca da inclusão sociocomunicacional para todos estes cidadãos que apresentam desafios especiais.
Somos inundados todos os dias por notícias propositadamente sensacionalistas, que nos perturbam; somos diariamente abalados por preocupações de variadíssima índole que nos afectam pretensões no sentido da concretização da equidade na capacidade de produzir e viabilizar mais-valias humanas que nos dignificam. Entre as muitas preocupações, temos por exemplo aquelas que se prendem com a imagem, com o visual quotidiano e de acordo com as várias circunstâncias, com a eliminação da obesidade física. Mas nestas inúmeras e imensas preocupações que todos os dias nos assaltam também começam a surgir umas que contemplam, e muito, a obesidade mental. É que a obesidade mental, como demonstra Andrew Oitke na sua tese, Mental Obesity, defendida em Harvard, é o pior problema da sociedade moderna, em que as pessoas se viciaram em estereótipos, juízos apressados, pensamentos tacanhos, condenações precipitadas, todos têm opinião sobre tudo mas ninguém sabe nada. E os cozinheiros desta magna fast food intelectual são os jornalistas e os comentadores, os editores de informação, filósofos, determinados romancistas e realizadores de cinema. Assevera Oitke que os telejornais e telenovelas são os hamburgers do espírito e as revistas e romances são os donuts da imaginação. Claro que tudo isto é discutível, dizemos nós, mas não há dúvida de que hoje o jornalismo se alimenta quase exclusivamente de cadáveres de reputações, de detritos de escândalos, de restos mortais das realizações humanas. Há muito que a imprensa deixou de informar para, em vez disso, seduzir, regredir e manipular. Parece que só a parte morta e apodrecida da realidade é que chega e cabe nos jornais. O conhecimento das pessoas aumentou, mas é feito de banalidades: todos sabem que Kennedy foi assassinado, mas desconhecem quem foi Kennedy; que Sadam é mau e que Mandella é bom, mas nem desconfiam porquê; que Descartes foi o primeiro homem moderno, mas ignoram o que isso significa; que Pitágoras tem um teorema, mas não sabem o que é um cateto. As grandes realizações do espírito humano estão em decadência, sendo a família contestada, a tradição esquecida, a religião abandonada como princípio que deveria ajudar à promoção da intercompreensão humana, a cultura banalizada. Afirma o próprio Oitke que o folclore entrou em queda, a arte é fútil, paradoxal ou doentia, floresce a pornografia, o cabotinismo, a imitação, a sensaboria, o egoísmo. O egoísmo gera sempre injustiça, havendo todavia a necessidade de assegurarmos, para defesa da nossa integridade e protecção pessoal, o culto de uma pontinha de inócuo egoísmo ajustado às circunstâncias e inofensivo para os outros. O que temos é que estar cientes, sempre, parafraseando D. Hélder Câmara (que viveu entre 1909 e 1999), que o egoísmo é o pilar de todas as opressões e a injustiça a mãe de todas as violências. Mas não se trata de uma decadência, uma idade das trevas, ou o fim da civilização como tantos apregoam. É só uma questão de obesidade mental, o homem moderno está adiposo no raciocínio, gostos e sentimentos. Segundo Andrew Oitke, o mundo não precisa de reformas, desenvolvimento, progressos, precisa sobretudo de dieta mental.
COMUNICABILIDADE, CULTURA e CORRESPONSABILIDADE EM ESTRATÉGIAS CIENTÍFICAS PARA A INCLUSÃO
O binómio comunicabilidade/cultura (sobretudo a cultura da responsabilidade e da corresponsabilidade) tem um peso e um incremento determinantemente fundamental e decisivo na aplicação e frutificação das políticas de inclusão, no nosso caso da política nacional para a inclusão. E no caso concreto da força determinante que reconhecemos à comunicação, já Aristóteles dizia que o objectivo principal da comunicação é a persuasão; isto é, a tentativa do orador de fazer com que as outras pessoas tenham o mesmo ponto de vista que o seu. Os media têm aqui um papel catalisador, promocional, decisivo na cultura da partilha, da solidariedade, da sensibilização pública e do esclarecimento, na cultura da parceria entre os agentes que queiram assumir-se como efectivamente de mudança, na cultura da cultura da inclusão. Os meios de informação e de comunicação são um poder indiscutível que é preciso motivar e conquistar com as estratégias certas para as questões da inclusão, sobretudo sociocomunicacional, porque sem comunicação e sem socialização, a palavra inclusão não tem sentido.
Vemos, ouvimos e lemos hoje por aí, em todo o nosso país, a palavra inclusão com um notável empenho político, e a menção de programas políticos para a protecção dos direitos de cidadania das pessoas com necessidades especiais e respectiva inclusão aos mais diversos níveis. Parece que começa a existir um potencial humano capaz de incomodar e de revolucionar os processos de inclusão social. O Governo anunciou, com base no prometido na última campanha eleitoral para as legislativas, uma política eficaz para a inclusão. O Roteiro para a Inclusão, da Presidência da República, que não exclui ninguém, nem oposições, nem sindicatos, nem Executivo... evidencia sucessos no combate às diferentes formas e origens de marginalização. No Primeiro Plano de Acção para a Integração das Pessoas com Deficiência ou Incapacidade para os anos 2006-2009, aprovado pelo XVII Governo Constitucional, é atribuído um particular relevo ao domínio da reabilitação das pessoas com deficiência, pretendendo levar à prática uma nova geração de políticas que promovam a inclusão social destes cidadãos, um dos segmentos da população que mais tem sofrido os efeitos da exclusão, impeditivos da sua participação activa na sociedade e comprometendo-lhes o exercício de uma cidadania plena. Mas as forças olíticas e sociais, principalmente os que sofrem na pele a exclusão e a própria sociedade civil têm em conjunto um papel fulcral a desempenhar na solução deste estado de coisas, procurando relembrar ao poder estabelecido do que prometera e que depressa protela ou anula com outras prioridades, ou que ainda não teve oportunidade de cumprir.
A comunicação (no sentido ético pleno) para todos e com todos (sem o que nunca haverá inclusão sociocomunicacional), entendida como fenómeno psicossociológico infinitamente complexo, móbil e edificação do progresso na mais ampla diversidade do engrandecimento humano, tem passado ao lado das necessidades educativas de um significativo número de cidadãos excluídos, uns pelos diferentes rótulos sociais, outros pelas diversas disfunções, outros mimados pelos efeitos da própria exclusão. Para obstar a este estado de coisas há que pensar e estruturar estratégias com o envolvimento das sinergias certas. Faltam em Portugal alicerçadas estratégias científicas, objectivos e boas práticas ao nível da investigação das desvantagens ou condicionantes comunicacionais das pessoas com desafios sensoriais e cognitivos, motores e outros, o que lhes impede ou dificulta a inclusão social, cultural e profissional, pois ninguém pode viver em incomunicação sob pena de se tornar num inepto e vegetante ser.
Os professores do ensino pré-escolar, básico e secundário, investigadores e técnicos que trabalham com as mais diversas tipologias da deficiência, sobretudo com as desvantagens comunicacionais, e que pretendam desenvolver investigações e práticas no campo dos estudos comunicacionais especiais e desenvolvimento sensorial e cognitivo precisam de formação profissional específica, assente numa investigação aprofundada, no desenvolvimento e aplicação das teorias, metodologias e práticas que alimentam:
- Os estudos comunicacionais especiais, a didáctica comunicacional e o desenvolvimento sensorial e cognitivo, bem como os estudos e estratégias que visam sensibilizar e capacitar a sociedade política e civil para a adequada comunicação com todos os cidadãos, independentemente das suas diferenças;
- Os estudos de gestão funcional e operacional para a inclusão dos diferentes graus de dificuldade comunicacional, criando possibilidades de investigação e aplicações bi-direccionais para melhorar o desempenho global dos planos educacional e profissional das escolas regulares e especiais e das várias instituições, organizações e empresas, quer estas se orientem para o mercado, para o serviço público ou para as questões da solidariedade social.
Para implementar esta mais-valia científica, técnica, cultural e de sensibilização pública, no sentido de que todos caibam condignamente na sociedade que todos constituímos e que somos, haverá necessidade de:
- Estudar as questões relacionadas com as complexas problemáticas comunicacionais de pessoas que evidenciam dificuldades ou sobredotação nesses domínios, e estruturar estratégias para a viabilização de novos objectivos e de novas abordagens em comunicação aumentativa e alternativa e em tecnologias de apoio, promovendo o saber-fazer adequado a essa complexidade na vida social, privilegiando a língua gestual e respectiva aplicação aos diversos ramos do saber, as escritas alternativas na palma da mão (com recurso a meios alternativos de comunicação, como os métodos VAN DIJK, LORM, TADOMA, MALOSSI, escrita em caracteres comuns na palma da mão, Escrita Braille na palma da mão), outros sistemas comunicacionais alternativos (disignadamente BLISS, MAKATON, PIC), as patologias neurogénicas da comunicação (como a afasia, patologia da linguagem quer compreensiva quer expressiva, e disartria, patologia da fala), o Braille aplicado à língua portuguesa e a outras línguas, e às diferentes grafias científicas.
- Suprir as imensuráveis carências nacionais em referência, com base em disciplinas laboratoriais, experimentais e teóricas, sob a responsabilidade de especialistas de reconhecida competência científica e pedagógica na matéria.
- Promover o necessário investimento, através das instituições nacionais que se ocupam das problemáticas da deficiência e da inclusão social, no acesso à informação, bases digitais e redes multimédia, com a comunicação aumentativa e alternativa e toda a especificidade tecnológica, incidindo no design web nacional, política e estratégias para a universalização de conteúdos digitais, organização e sistemas de informação inclusivos, adequando serviços e equipamentos com necessidades especiais a quem não possa falar, escrever ou ler, ampliando-lhes, inclusive, o grau de autonomia e independência.
Os números do INE não deixam ninguém indiferente, se tivermos em conta que, pelos últimos censos de 2001, éramos uma população residente de 10.356.117, incluindo 636.059 portadores de deficiência, sendo 163.569 com deficiência visual, 156.246 com deficiência motora, 84.172 com deficiência auditiva, 70.994 com deficiência mental, 15.009 com paralisia cerebral e 146.069 com outras deficiências.
No plano da tão aludida política nacional para a inclusão, gritam as prementes necessidades comunicacionais destes cidadãos. Reivindica a dignidade humana o alargamento do horizonte comunicacional a todos eles, numa natural política de inclusão incentivadora da cultura da partilha e da parceria com a envolvência dos principais agentes de mudança, mesmo numa dimensão ciberuniversal.
Considerando a significativa importância que a comunicação tem na ajuda à resolução de respostas ajustadas a estas questões, assume relevo científico-pedagógico e promocional de mudança neste enquadramento um comprometimento científico-pedagógico, com caráter nacional e europeio, o Mestrado em Comunicação Alternativa e Tecnologias de Apoio (aprovado pela Portaria nº 324/2006, de 5 de Abril e acreditado pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua, em Braga, como Curso de Formação Especializada, com o registo CCPFC/CFE/1457/06, na Área A (Especialização no domínio Comunicação e Linguagem, modalidade Mestrado), que está em funcionamento em horário pós-laboral, com a duração de dois semestres, desde Novembro de 2006, no Departamento de Ciências da Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Entendendo-se que comunicar é, antes de tudo, a permutabilidade de conhecimentos e de saberes, reciprocidade intercompreensiva de mensagens apresentadas sob vários aspectos, legitimando o sentido e a condição de toda a vida social, processo essencial da socialização e formação do indivíduo, que assim adquire consciência de si próprio, consolidando valores nas trocas significacionais com os seus semelhantes e mesmo com outros seres vivos, sentimos que, neste mundo multicultural e multiétnico, neste mundo da vida também multi-religioso, a cultura, seja no sentido lato, seja qual for a tipologia a que nos reportemos, a paciência tem mais poder do que a força (Plutarco). A permissibilidade e a autoridade têm que andar de mãos dadas para que a solidariedade se sobreponha aos egoísmos, a desejável e justa intercompreensão aconteça e a vida seja o produto feliz dos grandes valores humanos (Augusto Deodato Guerreiro, 2006.03.15). O horizonte intelectual cultiva-se, sustenta-se e defende-se com o arsenal que habilmente se conquista e se treina (Augusto Deodato Guerreiro, 2006.03.26). A saúde do desenvolvimento global depende da solidez das essências e da proficuidade das particularidades que promovem esse desenvolvimento (Augusto Deodato Guerreiro, 2006.05.25). E há virtudes que não nos podem faltar e que temos que cultivar: humildade e inteligência, argúcia e oportunidade, persistência e sensibilidade, coragem e generosidade, cultura e solidariedade, as virtudes que dão ao civismo, à emoção e à tolerância mais poder e mais força para gerar mais cultura da responsabilidade e da correponsabilização, mais desenvolvimento e mais progresso (Augusto Deodato Guerreiro, 2006.07.08). Já Victor Hugo dizia que a tolerância é a melhor das religiões. Não obstante essa constatação, Confúcio já sustentara que se agires sempre com dignidade não melhorarás o mundo; mas uma coisa é certa: na terra haverá menos um canalha. Bem, mas se calhar... a comunicabilidade, a sociabilidade, a cultura e a sensibilidade ajudarão a melhorar o mundo onde todos possam caber sem os infortúnios sociais da exclusão. Defende Eduardo Lourenço que difícil é atravessar os muros invisíveis de que os reais são feitos.
CULTURA DIGITAL E BIBLIOINCLUSÃO
O mundo inexaurível do ciberuniverso da comunicação e da cultura, proporcionado pela vertiginosa evolução info-tecnológica da Internet, apresenta-se-nos asfixiante nas suas múltiplas dimensões, promovendo e consolidando a cultura digital nos nossos dias. Pois bem, o tempo tem múltiplas asas, e as que mais proficientes e perpetuantes se nos apresentam podem ser, entre outras, o livro e a imprensa escrita, independentemente do tipo de suporte e formato em que viajam. As nossas memórias e murmúrios também se inscrevem nestas asas do tempo e nos já desmedidos patrimónios digitais. A memória é o que inequivocamente está visível e/ou escrito/digitalizado; os murmúrios são as nossas intenções. Memória, em biologia e em psicologia, é a faculdade que temos para reter experiências vividas anteriormente, bem como a capacidade para recordar essas experiências. No domínio da informática, entendemos por memória a capacidade de dados disponíveis num determinado momento que um software e um hardware podem registar, gravar e restituir. Neste caso, distingue-se ROM (Read Only Memory memória só para leitura, também designada memória morta), aquela que não pode ser apagada nem modificada, RAM (Randon Acces Memory memória de acesso aleatório ou memória viva), aquela que pode ser apagada ou modificada. No âmbito deste artigo, a memória ROM guarda registos de variadíssima natureza, que os tempos e a história transportam nos nobres lugares dos signos que são, entre outros, os livros, a imprensa escrita/digital. A memória RAM é constituída pelos novos tempos com vontades e determinações alicerçadas nas momentâneas conveniências do presente, dissipando, substimando ou ignorando o histórica e cientificamente inextinguível ou inanulável.
Têm aqui função importante os nossos murmúrios, as nossas intenções, no sentido de rentabilizar de forma adequada a informática, as novas tecnologias, em favor das pessoas com necessidades especiais.
Cultura digital implica sentir, investigar, estudar, cultivar e promover a implementação de contributos científicos e pedagógicos para a universalização de sistemas info-tecnológicos acessíveis, essencialmente no que se refere à facilitação e promoção da autonomia e independência das pessoas com os mais diversos desafios; dar corpo a esta atitude na adequação (em termos de usabilidade e de acessibilidade) da Internet e das novas tecnologias às problemáticas da deficiência em geral; consagrar na comunicação a exacta significação das palavras, apesar de, segundo David K. Berlo, nós aprendermos significados, acrescentarmo-lhes algo nosso, distorcermo-los, esquecermo-los, modificarmo-los. Não podemos encontrá-los. Eles estão em nós, não nas mensagens. De resto, o que existe de mais terrível na comunicação é o inconsciente da comunicação (Pierre Bourdieu). Apesar destes contornos vagos e indefinidos que por vezes caracterizam a comunicação, que é o mais recente instrumento mobilizador para provocar efeitos de consenso, legitimação de discursos, comportamentos e acções, de usos estratégicos para diferendos e conflitos, imperativo ético e urgência política, caleidoscópio nas pluralidades técnico-científicas e posturas anti-racionalistas, cada um de nós tem que ser efectivamente a mensagem, numa dimensão de arauto missionário, que a filosofia da felicidade na deficiência precisa. É que as pessoas não podem só existir, têm que existir e viver. Para além do que cada um de nós sente sobre o assunto, vários são os pensadores e autores que ao longo da história bem têm reflectido sistemática e fundamentadamente esta preocupação.
Estamos num enfoque de preocupações com a inclusão no sentido amplo do conceito e também do saber amplo e inclusivo, considerando-se as bibliotecas as verdadeiras universidades de uma nação (Carlyle), que deverão ter a função educativa e formativa da humanidade, e sendo a humanidade uma dignidade que se conquista (Jean Vercors, que viveu entre 1902 e 1991). Cientes da importância das bibliotecas na edificação humana, parafraseando Raul Proença (que viveu entre 1884 e 1941), hoje a biblioteca já não é um sarcófago do pensamento, mas um laboratório de ciência viva. Por isso é que começa a desabrochar o conceito de biblioinclusão, surgido formalmente pela primeira vez entre nós em 1999, como o processo de inclusão sociocomunicacional que consiste na utilização sistemática dos recursos biblioteconómicos oferecidos pelas biblilotecas, quer in loco quer on-line .
No seguimento do proclamado pela UNESCO e pela IFLA, com mais alguns contributos adicionais experienciais nossos, é nossa convicção de que o espelho de um país ou de um povo é o conjunto dos seus saberes, das suas sensibilidades e também o número e a qualidade das suas bibliotecas, arquivos e museus, entendidos como recurso básico do sistema educativo e da consequente cidadania, que, devidamente reflectido e fundamentado, ajudará a promover e a dinamizar a mudança de mentalidades rumo à natural inclusão humana. Não há inclusão sem que a sociocomunicabilidade se processe naturalmente, e sem categorizações marginalizantes.
Para que a sociocomunicabilidade e interacção humanas aconteçam, o corpo e a mente são realidades neuromotoras e psicossomáticas, indissociáveis e indispensáveis nesse processo. O nosso corpo, habitáculo temporário e visibilidade do nosso desenvolvimento neuropsicomotor e cognitivo, tem direitos e deveres a fruir como garantes da sua íntegra e digna sustentabilidade e sociocomunicabilidade, veiculando, interagindo e materializando as nossas emoções, preferências, os nossos desejos, amores e ódios, determinações e comportamentos, estratégias e projectos na interacção e intercompreensão humanas. Tem direito, mesmo que apresente dificuldades na interacção, a existir e a viver como reflexo ontogénico feliz de todas as nossas manifestações. As mazelas do nosso corpo não têm que nos molestar a mente, o espírito, a inteligência, a consciência... marginalizando-nos ou excluindo-nos aos mais diversos níveis, designadamente nos planos sociocomunicacional, cultural, profissional e intelectossocial. Será uma solução, para ultrapassar positivamente tudo isso, aquela solução que for imposta gradualmente pela cultura dos cidadãos, em geral, e das instituições sociopolíticas e de sensibilização, em especial, mas sempre com o necessário e elucidativo contributo dos cidadãos condicionados pelos diversos desafios, conceitos assimilados e incorporados na nossa identidade, na cultura da partilha e da dignidade, no comprometimento deontológico, na vontade individual, social e ético-política.
É que as estatísticas informam que em todo o mundo, pelo menos 10% dos elementos de qualquer sociedade nasce ou adquire uma deficiência, e que cerca de uma em quatro famílias tem um familiar com deficiência. Todos os dias, mais e mais crianças e adultos entram nestas estatísticas e engordam de modo assustador o número dos cidadãos portadores desses desafios especiais . Só no plano de acidentes profissionais ocorrem cerca de duzentos e cinquenta mil por ano em Portugal, o que é deveras preocupante, impondo urgentes soluções para prevenir fracassos originários e consequentes, de forma a conseguirmos, sem utopias, cultivar felicidade para todos. A felicidade que satisfaz verdadeiramente é acompanhada pelo completo exercício das nossas faculdades e pela compreensão plena do mundo em que vivemos (Bertrand Russel). Na realidade, a vida é fascinante. O que é preciso é vê-la com os óculos certos (Alexandre Dumas).
A realização de apelativos e promissores eventos, envolvendo sinergias, vontades e determinações sociopolíticas que querem a comunicação para todos e com todos, com um reforço bem ampliativo do paradigma comunicacional, sem intencionalidades de conveniência própria ou menos própria e que possam pôr em causa aquela dignidade que leva tempo a conquistar, mas que se conquista, a humanidade, pois, a forma mais segura de antecipar o futuro é compreender o presente (John Naisbitt).
CONCLUSÃO
O homem é uma constante fonte de comunicação e informação designadamente não-verbal, em que todos os seus gestos conscientes ou instintivos revelam o que de mais íntimo tenta guardar. Podemos inferir que as aparências iludem e também são importantes, havendo necessidade de cuidar com rigor idêntico dos lados interior e exterior, de forma a que a imagem interior, a que gere e amplia os grandes valores humanos, não se deixe amordaçar e anular pelos efeitos da exuberante e por vezes extasiante visibilidade da exterior. Segundo Aristóteles somos aquilo que fazemos consistentemente. Somos o que a força da nossa imagem incutir na sensibilidade do nosso interlocutor, promovendo naturalmente o seu acolhimento e permissividade num assentimento recíproco, o que melhorará a beleza e a imagem substanciais na mais larga acepção, e traduzindo-se sempre em desejável intercompreensão. O processo de inclusão sociocomunicacional deve ser promovido, materializado e sedimentado de corpo e alma, com exemplos e demonstrações que não cabem nas palavras, ensinado, treinado em convívio social, por teorização ou puro raciocínio, com a força de palavras que estão para além das próprias palavras e das ideias que as palavras ocultam. Não será necessário exaurir (como que antropofagicamente) tudo o que são determinados interlocutores nossos, mas seria bom que todos nos esforçássemos no exercício de alguma alquimia dos sentidos e de secretismos conservadoramente ancestrais, egoísticos, inexplicáveis à luz do crescimento, defesa e consolidação dos grandes valores humanos, e que, por não serem capazes de sobrepor a solidariedade aos egoísmos, nos impedem de ser felizes e inclusivos.
As nossas preocupações, no plano sígnico-comunicacional, visam alargar os fundamentos científicos da comunicabilidade sensorial com carácter interdisciplinar que se nos apresenta em caleidoscópio, como a imbricação de diversas áreas do saber, designadamente da motricidade humana e da teoria da comunicação e informação. O nosso corpo é um universo inexaurível de descoberta constante nos domínios informacional, interaccional, comunicacional, cultural, em que contribuímos para a ampliação da sua extraordinária sensorialidade comunicacional. De resto, para sobrevivermos como pessoas e comunidades, é fundamental que o poder político, as estruturas sociopolíticas, a sociedade, acreditem nas potencialidades humanas e que sejam capazes de construir projectos sociais que confiram sentido ao sonho e à esperança. Todos os cidadãos (caracterizados ou não por disfunções sensoriais, cognitivas, motoras ou outras) e todos os povos do mundo necessitam da auto-estima e auto-imagem, da auto-confiança e auto-conceito, para poderem vencer as agruras e intempéries sociais (ditadas por ignorância ou conveniências), incompreensões, marginalizações, exclusões, e prosseguir na construção do futuro, mediante o estabelecimento de princípios ético-políticos reguladores da conduta dos indivíduos, dos grupos sociais e instituições, evitando as injustiças e arbitrariedades que fragilizam ou anulam o sentido do mundo da vida e da nossa própria vida.
*Publicado em Cadernos Sociedade e Trabalho , VIII (Integração das Pessoas com Deficiência). Lisboa: Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social/Direcção Geral de Estudos, Estatística e Planeamento, 2007; P. 213-230.
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