Nota: 60 anos depois e este continua a ser um problema bem atual.
Por J. Pecegueiro
Poliedro (Nº 27-Maio-1959)
Edição Braille em 1960, vol. III da referida revista
«Quando se olha para uma laranja—dizia um professor de Psicologia dos meus tempos de estudante — percepciona-se, através desta visão, a forma, a cor, a rugosidade, o cheiro, o sabor, até um certo peso, frescura, etc.; tudo dado como um todo imediato e único».
Tenho de confessar que, embora isto então me parecesse espantoso, o Mestre tinha razão. De facto, não só pode cheirar-se ou saborear-se com a vista como pode verse com o olfacto, o ouvido e principalmente com o tacto.
Os cegos — no que ao tacto se refere —sabem muito bem que assim é e, por isso, nada mais incorrecto do que classificá-los de invisuais.
Em primeiro lugar, o termo é ininteligível do ponto de vista linguístico. Invisual é palavra composta de visual e do prefixo in, que implica negação, e não pode significar outra coisa diferente de «não relativo à vista», o que é sem sentido quando aplicado a pessoas.
Se fosse lícito substantivar visual e fazê-lo sinónimo de «pessoa que vê» (o que fundamenta o emprego de invisual como sinónimo de «cego»), deveria também ser lícito substantivar auditivo, fonador, táctil, etc., e fazê-los sinónimos de pessoa que ouve, que fala, que apalpa, — o que fundamentaria por sua vez o emprego de inauditivo, infonador, intáctil, etc., para designar o surdo, o mudo, o que não tem ou não usa o tacto, etc..
Os indivíduos que vêem mas que raramente utilizam os dedos para conhecer seja o que for, ou os mutilados das mãos, seriam assim logicamente chamados intácteis; os cegos,
ao contrário, poderiam apelidar-se de tácteis; os que fossem ao mesmo tempo cegos, surdos e mudos designar-se-iam invisuais-inauditivos-infonadores!
Às pessoas que empregam os termos invisual e visual, como sinónimos de «cego» e «não cego», fazemos a justiça de acreditar que não reflectiram sobre estes disparates e se deixam simplesmente levar pelo inédito sem curarem do que nele há de inconsequente.
Em segundo lugar, os cegos são, na sua grande maioria, indivíduos de imaginação tipicamente visual.
O que se entende vulgarmente por sensação, isto é, conhecimento da existência de objectos através dos órgãos dos sentidos, é fenómeno psíquico muito mais complexo. Verdadeiramente, não existem sensações puras:
Se entrarmos numa sala mobilada e aí permanecermos escassos minutos, obteremos uma percepção de conjunto em que figuram informações provenientes dos diversos órgãos dos sentidos—vista, ouvido, tacto, olfacto, etc. Se no dia seguinte voltarmos à mesma sala, a nossa percepção enriquecer-se-á não só com as novas informações ou sentires obtidos mas com combinações que o intelecto fizer entre esses sentires e as imagens ou resíduos da percepção do dia anterior. E não só entre os novos sentires mas entre estes e as ideias e juízos que àcêrca do objecto — sala — o nosso espírito formulou.
Por isso se diz que toda percepção é uma análise entre duas sínteses.
A percepção visual, por exemplo, é conjunto de sensações provenientes não só da vista mas também do ouvido, do tacto, do olfacto, etc.. E tudo isto estruturado num todo onde entram ideias e juízos.
A percepção apresenta-se como totalidade em permanente construção e enriquecimento. Os indivíduos poderiam classificar-se, quanto ao desenvolvimento da inteligência, consoante a maior ou menor riqueza das suas percepções.
No que se refere aos cegos, a única coisa que pode dizer-se é que se trata de indivíduos impossibilitados, ou desde o nascimento ou a partir de certa idade, de obterem informações do chamado mundo exterior através dos órgãos sensoriais da vista. Nem por isso pode afirmar-se que não tenham percepções de tipo predominantemente visual.
Pelo que respeita aos que cegaram a partir de certa idade, o simples facto de conservarem imagens visuais da experiência passada mostra claramente que a toda percepção presente podem agregar um mundo mais ou menos rico de imagens visuais — e tenderão, quase diríamos ansiosamente, a fazê-lo.
«O espaço visual é uma combinação de extensão visual e de extensão táctil, talvez com predomínio da primeira, mais cómoda que a outra», escreve Cuvillier no seu «Manual de Filosofia». E acrescenta, citando Pierre Villey; que «o cego dispõe duma verdadeira visão táctil».
Independentemente destes dados experimentais, a própria génese e diferenciação fisiológica dos órgãos dos sentidos mostra relação tal entre o tacto e a vista, que permitiu considerar esta última como aperfeiçoamento daquele, como verdadeiro «tacto a distância».
Tudo isto está em oposição com a opinião vulgar de que só as pessoas que vêem podem ter percepções de tipo predominantemente visual. Para que assim fosse, tornar-se-ia necessário admitir a existência de sensações puras, o que é contraditado pelo mais elementar dos conhecimentos de psicologia. De facto, não existem sensações puras, porque sensação é conceito-limite e a experiência psíquica, ao nível sensorial, apresenta-se sempre sob forma de percepção.
Tiremos agora as conclusões que para o nosso caso interessam: O cego pode também ser visual. Se não o é de nascença, torna-se óbvio que a toda a percepção dum objecto presente poderá agregar o mundo de imagens de natureza visual que constitua a sua experiência passada. Além disso, se a sua mentalidade for a de um imaginativo do tipo de esquematização visual, ele organizará necessariamente a experiência segundo as «formas a priori da sua sensibilidade» — como diria Kant. Mesmo que o quisesse, talvez não conseguisse libertar-se desse tipo de esquematização, ainda que, em virtude da cegueira adquirida, a experiência
sensorial não volte a fornecer-lhe imagens visuais. Estas formar-se-ão, no entanto, por sinestesia.
Quanto ao cego de nascimento, cuja cegueira for completa, é errado outrossim julgar que não possa conceber imagens do tipo visual. Sabido que toda a percepção visual se reduz em última análise a uma forma localizada espaço-temporalmente — se dessa forma se abstrair a cor, que é a sensação que só a vista fornece — a mesma forma pode obter-se com toda a exactidão possível através do tacto. E admissível defender a tese de que, pela invenção criadora, o intelecto supra com um produto da sua autoria aquilo que o sentido lesionado não lhe pode fornecer.
Não, decididamente, não. É absurdo lógico, gramatical e psicológico, considerar o cego um invisual. Ao contrário, existem muitos cegos que são visuais e muitas pessoas que vêem que o não são. Como dizia Heraclito, «há uma harmonia invisível mais bela que a harmonia visível».
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