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Castigo suave

por Lerparaver

Por José Fernandes da Silva

Estava muito bonito aquele fim de Maio, com um deslumbrante sol a aureolar a florida e odorífera Natureza. Inumeráveis botões e variadas flores enfeitavam o vale, o plaino e a serra. As aves pipilavam despreocupadas: umas, já com os ninhos feitos e outras, atarefadas na sua meticulosa confecção. As árvores eram estupendos asseios de andores alcandorados e coloridos. Ainda outras, já exibiam minúsculos frutos, a pedir que as boas condições climatéricas os deixassem desenvolver e amadurar...

Um pouco distante das casas da pequena aldeia, numa propriedade isolada e num local quase ermo, uma cerejeira, copada e vaidosa, estava repleta de vistosas e rosadas cerejas, ditas da Santa Cruz, e que convidavam, mesmo os mais tímidos e pouco gulosos, a perderem a cabeça e realizar um assalto ao alheio!

Dois miúdos, com uns 13 anos de idade, ao regressarem da escola, pelo fim da tardinha, depararam, estupefactos, com o soberbo espectáculo!? Mas que belas cerejas!? Desabafou o mais atrevido e gulotão. E acrescentou, salivando, antecipadamente, a ingestão do precioso manjar: Quem não sente desejos de trepar à fruteira e comer, à medida da barriga!?? Não, não, porque praticaremos um roubo. Apressou-se a retorquir o recatado amigo.

O interlocutor, todavia, excitado, sem desistir do desafio, incitava:

- Aproveitemos a ocasião e subamos sem demora!

- Não, isso não - Sustentava o companheiro, sério e medroso - É feio e pode acarretar-nos nefastas consequências, ao mexermos naquilo que doutrém é pertença. O dono pode surgir de repente e reclamar os seus legítimos direitos...

- Agora!, ele mora longe e nem sonha que nós subimos e que nos regalámos. Além disso, repara bem: a cerejeira está carregadinha até à coroa e a vergar com tamanho peso!

- Tudo isso está certo, mas é um furto que vamos praticar e eu não alinho. - Prosseguiu o outro, firme, consciente e cada vez menos persuadido.

- Pois se não queres arriscar uma aventura agradável e proveitosa, arrisco eu e vou-me fartar. Ora essa é que é essa! - Rematou, como um furacão, o afoito rapaz.

E mais não disse: Como um felino trepou e sentou-se num ramo a satisfazer a gula.

- Caramba!, sobe, sobe! Olha que madurinhas, carnudas e gostosas! Deixa-te de ser medricas e não te faças de parvo: salta para cima e depressinha! Olha que eu não te apanho nenhumas: as que levar, vão no papo!

E, pensando apenas no prazer que lhe proporcionava a inesperada e consoladora aventura, galhofava cheio de delícias.

E, absorvido e sorridente, apanhava cerejas às mãos-cheias e comia, comia, baloiçando-se no frágil ramo em que se tinha empoleirado.

De súbito, porém, soltou um estridente e aflitivo grito: O ramo, embora ele fosse leve, com o peso e o balouçar, quebrou-se e, como um pára-quedas, descia velozmente. Firmando-se bem e montado nele, o fanfarrão e intemerato, mas alvoroçado menino, num ápice, encontrava-se estatelado no chão.

Acorreu, pressuroso e preocupado, o fiel conviva. Ao chegar junto do parceiro verificou que o aparatoso incidente não tinha passado de um susto...

- Podia ter sido uma desgraça e o desfecho ser trágico! ? Alvitrou o sensibilizado e sensato colega.

- Mas não houve azar! - Rematou, agora mais sossegado, satisfeito e convicto, o lambareiro, concluindo: E quando tudo tem um fim feliz há que dar graças a Deus!

Tomaram o carreiro de regresso a casa e deixaram o local, desta feita, apressadamente.

Já um pouco distantes, caminhando em silêncio e cabisbaixos, de soslaio, remiravam a frondosa cerejeira e os magníficos frutos, sedutores, e cada qual, segundo ópticas diferentes, cismava e extraía impensadas hilações...

Primavera de 2003