Por José Fernandes da Silva
(Pequenos contos)
Natal de 2003
Consoada
Ao José Pedro Pinto
Era uma humilde e pequena aldeia serrana, onde a civilização não tinha ainda chegado com os nefastos ruídos e a destruição do que de mais belo e repousante constitui a verdadeira existência das criaturas, plena de simplicidade, de paz, de harmonia, de fraternidade e de amor...
Lá, num tosco casebre de ruim acesso, pois apenas se podia ir a pé ou a cavalo, com quatro paredes levantadas, a suportar um telhado, que no período de calor tornava os cubículos num forno e, nos rudes meses de intempérie, deixava que a chuva tudo alagasse e que o vento ululante verrumasse os mais ínfimos buracos, orçando os 80 anos, a pobre proprietária vivia há longo tempo em funda solidão e férrea esperança...
Casara, nasceram dois rapazes e gozou, por cerca de 20 Primaveras, uma felicidade que muitos invejaram. Depois, por intrigas e calúnias, prenderam-lhe o companheiro que, sem julgamento, por vergonha e saudade da família, morreu atrás das grades de uma cadeia. Os filhos, então, porque as condições de vida eram precárias, resolveram deixar o rincão natal em busca de melhor sorte noutras paragens, prometendo à progenitora que, tão cedo quanto possível, lhe viriam fazer companhia e proporcionar dias mais alegres e mais fartos.
A verdade, todavia, é que nunca mais deles ouviu referências!
A cada hora os tinha no pensamento e nas sinceras e intermináveis orações. Assim foi o tempo decorrendo e mais ela se habituou à solidão e à ideia de que, se calhar, morreria com a esperança de um reencontro com os dois entes queridos.
No meio deste viver havia uma data que ela, por excelência, nunca esquecia e adoptava, ano após ano, meticulosamente, a mesma prática: Era a noite de Natal!
Nessa noite, sim, recordava o nascimento de Jesus em Belém, numa mísera gruta, e acreditava que o Pequenino viera ao Mundo, das entranhas de uma jovem Virgem, para salvar a Humanidade, para a todos trazer santa paz, para reconciliar as famílias, para que houvesse confraternização entre os povos, para que reinasse o Amor, muito Amor...
Lembrava-se sempre de que os filhos faziam um reduzido Presépio de musgo, com algumas figurinhas de barro, e que era o enlevo, ali pertinho da lareira crepitante, na noite de Consoada. E as batatas com bacalhau e couves. E as rabanadas e formigas. Mau grado tanta miséria e o peso dos anos, em cada 24 de Dezembro ela repetia o cerimonial e ficava horas esquecidas a mirar as iguarias, o Presépio, o canhoto a arder e os três pratos sobre a carcomida masseira, onde alvejava uma puída toalha de estopas de linho.
Três lugares postos, para quê? Ela ceava sempre sozinha e muito pouco! É que, bem no fundo do seu coração de mãe, fantasiava que, talvez numa qualquer noite de Natal, por entre coros de pastores e anjos, os seus rapazes aparecessem para juntos consoarem e comemorarem a solene data, como prémio e delícia dos tempos idos, que lhe povoavam o espírito cansado...
Dezembro de 1989
As prendas
Ao João Ricardo Pinto
A Natália e o Natalino eram duas crianças gémeas e nesse dia de Natal completavam doze anos. Viviam com os avós e eram amimados e queridos, talvez mais do que de filhos se tratasse. A mãe apenas a conheciam e veneravam através de fotografias, que se encontravam expostas nos lugares de maior destaque na casa.
Filha única, não conheceu privações, porque os pais viviam bem, procurando fazer-lhe todas as vontades e dar-lhe uma educação esmerada, que a preparasse para a vida. Ela, todavia, foi-se desviando desse trilho e levava uma vida desregrada, sem preconceitos e de contínuas noitadas até à exaustão.
Certa manhã, ainda sob a ressaca de mais uma noite de boémia e de prazer, acordou, nervosa, lívida, cabelos desalinhados e fundas olheiras. Parecia um pesadelo, mas era uma realidade: estava grávida!
Raivosa, contorceu-se no leito. Um turbilhão de pensamentos e de contradições lhe fervilhava na cabeça estonteada. Era impossível, aquilo não lhe podia acontecer, porque estava no auge da juventude, com uns tenros dezassete anos. Precisava de fazer qualquer coisa, pois não desejava gerar um fruto de sensualidade, de amores ilícitos e de quem desconhecia o pai! Enclausurou-se no quarto, gemendo e chorando, copiosamente.
A mãe, posta ao corrente, lamentou aquela situação embaraçosa, embora a compreendesse, já que, ao fim e ao cabo, também se sentia culpada, por pactuar com os desvarios da filha.
Por isso, senhora de uma profunda educação cristã, foi explicando à jovem os perigos a que se sujeitava e, docilmente, aos poucos, convenceu-a a deixar vir ao mundo quem não tinha culpa dos erros cometidos.
Decorrido o tempo de gestação, na madrugada do dia 25 de Dezembro nasceu um casalinho, que os avós baptizaram com nomes alusivos à solenidade da data.
A jovem progenitora, por vergonha, desgosto ou leviandade, um mês depois do parto, saiu de casa e nunca mais deu notícias. Envidaram-se todos os esforços para a localizar, mas perdeu-se-lhe o rasto.
Ficaram bem entregues, portanto, as crianças, ao cuidado e sincero afecto dos avós.
Nessa noite de Consoada, à volta da lareira, perto da qual colocaram um pequeno, mas bonito presépio e um pinheirinho com lâmpadas multicores, muitos enfeites e prendas penduradas, enquanto a avó dispunha na ampla mesa (onde se exibia uma antiga toalha bordada e de finas rendas, de alvo linho e que era uma relíquia herdada dos antepassados), as formigas, a aletria, as rabanadas, o bolo-rei, as nozes, os pinhões, as uvas passas e tantas outras iguarias que são um regalo para os olhos e para o paladar, dava-se início à narrativa do nascimento de Jesus que, agora, merecia os comentários dos netos. Estabeleciam-se diálogos e ficava-se com a impressão de se estar em presença de uma peça de teatro.
Desta vez foi o avô quem principiou:
"Há dois mil anos já, na cidade de Belém, veio ao mundo um Menino, a quem puseram o nome de Jesus. A Mãe era ainda muito jovem. O pai adoptivo, um humilde carpinteiro e homem bom, era bastante mais velho. Ela chamava-se Maria e ele José. Tiveram de efectuar uma longa viagem e Maria sentiu as dores do parto. O esposo procurou uma hospedaria por toda a parte, mas não arranjou lugar. Por isso, foram forçados a entrar numa gruta fria e escura, onde costumavam recolher os animais e, nesse desconforto, aproveitando uma manjedoura como berço e umas palhinhas para colchão, Maria deu à luz.
"Entretanto, os pastores que nos arredores guardavam os rebanhos, chegaram para visitar e adorar Jesus, enquanto uma multidão de corpos celestes entoava hinos de júbilo e de contentamento.
"Mais tarde, guiados por uma miraculosa e fulgente estrela, três Reis Magos, vindos do Oriente, vieram prostrar-se aos pés do Pequenino e, reverentes, renderam-lhe homenagem e ofertaram ouro, incenso e mirra.
"Esta Criança, que teve um nascimento e um berço tão pobres, é que veio a tornar-se num grande e nobre Rei espiritual..."
Atentamente, embora todos a soubessem ao pequeno pormenor, a história foi ouvida em silêncio.
"Nessa narrativa há tantos factos semelhantes ao percurso da nossa existência!", comentaram, comovidos, os pequenos.
"Mas o mundo é mesmo assim, meus queridos", acrescentou a avó.
"A nossa mãe também era muito jovem; nascemos a 25 de Dezembro; temos pais adoptivos, que são os queridos avós, que tanto nos amam e tudo fazem para que nada nos falte; estão sempre a oferecer-nos magníficos presentes, como os Reis Magos ao Menino; não sentimos a pobreza de Jesus, pois nascemos em boa casa e tivemos o conforto de uma cama; somos uns reis felizes, uma vez que habitamos num reino de ternura, dedicação e bem-estar..."
"Graças a Deus, graças a Deus!", balbuciou a avó, sensibilizada.
"Por tudo o que foi dito e de todo o coração, aquilo que mais desejamos e hoje pedimos a Jesus Menino é que ampare os nossos avós e lhes proporcione muita saúde e longos anos de vida, para prosseguirem e levarem até ao fim a obra que há doze anos começaram. E também que, por caridade, um dia, como grata e rica prenda, faça com que a vossa filha e nossa mãe, que há muito partiu e de quem nada sabemos, regresse ao lar e preencha o seu lugar vazio e tão triste..."
Já perto da meia-noite, de repente, devagarinho, quase a medo, alguém bateu à porta.
"Não contamos com ninguém. A esta hora, rasgando o cerrado negrume e divino silêncio da noite e a suportar tamanho gelo, quem será que nos vem visitar?", observou a avó, bastante admirada.
"Deve ser o Pai-Natal que se atrasou e nos vem trazer a consoada!", retorquiram, em coro, sorridentes, os netos.
Curiosos, todos se encaminharam para a entrada e, sem perguntar quem batia, o avô escancarou a porta...
Na frente deles, banhada pela luz intensa que irradiava do interior da casa, destacava-se uma mulher alta e magra, bem parecida, imóvel e com os olhos a jorrar lágrimas de comoção e de alegria, que, de imediato e estupefactos, todos reconheceram.
Ela, medrosa e tremente, mas decidida e quase inaudível, tartamudeou:
"Contava chegar mais cedo e cear convosco, mas não consegui, porque tive de realizar uma longa e cansativa viagem e os transportes não ajudaram. Venho trazer as prendas de Natal e de aniversário, pedir-lhes perdão e licença para ficar na vossa companhia, com a promessa de que jamais vos abandonarei!..."
Outono de 2000
O presépio
Ao António Pedro Capela
O Ricardo tinha 11 anos, frequentava o 6º ano de escolaridade e morava num lugar de uma bonita aldeia minhota, habitando, com os pais, uma irmã de 8 anos e os avós, uma casa soalheira e confortável, construída numa pequena e bela quinta, que o pai adquiriu com as economias de alguns anos de emigração. Excelente aluno, bom companheiro, disciplinado, atento, respeitador e solidário, por todos era estimado. Sabia conciliar as diversões com os deveres a cumprir e o tempo chegava-lhe para tudo. Ao invés, os amigos mais chegados, esqueciam as obrigações elementares, preferindo os jogos, as agradáveis brincadeiras, o comodismo e o descanso.
Certa vez, nos fins de Novembro, por uma tarde bastante fria, soprada por um leve gemer do vento outonal, quando brincavam, alegres e despreocupados, o Ricardo deu com os olhos num grande caixote de papelão, abandonado, ali perto, numa pequena e improvisada lixeira. Alertou os colegas e, sem demora, ávidos de curiosidade, precipitaram-se para o local e abriram-no. Depararam com um amontoado de cacos, tabuinhas, troncos mutilados, cabeças degoladas, braços, pernas, detritos de vária ordem, concluindo que se tratava dos restos de um presépio que, depois de desfeito, deitaram fora.
De imediato, o Ricardo foi assaltado por uma luminosa ideia: aproveitar os destroços, restaurar o que fosse possível e fazer ressurgir o antigo cenário. Revelou aos amigos os seus intentos, pedindo-lhes a opinião e ajuda para empreender a empresa que lhe fervilhava na mente:
- Encontra-se aqui quase tudo o que é preciso para realizarmos um lindo sonho. E se levássemos isto para o sequeiro da minha casa e aproveitássemos o que se puder, devolvendo as figuras ao fim para que foram criadas?
Todos, a uma só voz, excitados e com entusiasmo, votaram e aplaudiram a proposta.
- Boa ideia! Vamos a isso!...
- Quando tudo estiver pronto - prosseguiu o Ricardo - pedimos licença para montar o presépio na Sede da Junta de Freguesia, a fim de que todos o possam visitar.
- Boa!, boa! Toda a gente vai ficar espantada com essa surpresa maravilhosa! - Reforçaram os convivas.
Apoiado e contente, o líder inquiriu:
- Então quem vai ajudar-me a levar a cabo esta tarefa, aproveitando o que for possível deste monte de desperdícios?
Todos ficaram mudos. A intenção era muito nobre e extraordinária, mas trocar as sadias e reconfortantes diversões pelo trabalho não agradava a nenhum deles.
O Ricardo, decepcionado, mas resoluto, pediu ajuda à irmãzita e ao avô, lançando mãos à obra.
Colaram-se pernas, pés, braços, mãos, dedos, cabeças, orelhas, narizes, lábios, com pacientes e minuciosos retoques de barro e tinta; recuperou-se a manjedoura, o burrinho, o boizinho, os três Reis Magos, os pastores, um pequeno rebanho, os anjos, a estrela... Só da Sagrada Família (Nossa Senhora, S. José e o Menino Jesus) não apareceram vestígios. O avô alvitrou que talvez se tratasse de imagens de estimação, tendo-as os donos guardado para figurar noutros presépios. Portanto, a solução era moldá-las ou procurá-las nas casas da especialidade, a condizer com o material recuperado.
Delicadamente, o Ricardo informou os companheiros do andamento dos trabalhos e aludiu à recomendação do avô, para obterem as três figuras indispensáveis.
Cada um se foi desculpando com muitos afazeres. Por isso, mais uma vez, sem desânimo, o Ricardo ultrapassou o contratempo, arranjando o barro, amassando-o, moldando-o, cozendo-o, até surgirem os exemplares pretendidos que, depois de pintados, ficaram um primor e completaram o sortido de figuras necessárias para a ornamentação desejada.
Chegaram as férias e o Ricardo comunicou aos amigos que tudo estava pronto para iniciarem a montagem e que, como já só faltava uma semana para o dia de Nascimento, era urgente procurar e trazer serrim, musgo, ramos de azevinho, escolher pedrinhas para levantar a gruta, além de outras pequenas ninharias.
Ora, de novo, os colegas fingiram nada ouvir e, manhosos, em silêncio e devagarinho, se foram retirando.
Sem esmorecer, o persistente menino executou todos os trabalhos, de maneira que, ao fim da tarde do dia de Consoada, na sala nobre da Sede da Junta de Freguesia, era digno de se contemplar um cenário incomparável, fruto de delicadeza, perseverança, ternura, esforço, dedicação, amor, muito amor...
Terminada a tradicional Missa do Galo, o pároco e toda a multidão se dirigiram para o sítio onde estava implantado o evento. Foi um espanto geral ao depararem com tão amorosa obra-de-arte. O padre António, dotado de requintado bom gosto, embevecido e com uma leve expressão de propositada malícia, inquiriu:
- Quem é que arquitectou e produziu este cenário de ternura, de harmonia e de encanto?...
Bem na frente destacava-se o grupo de amigos e o Ricardo, humilde, com um olhar cândido e imensamente feliz, respondeu:
- Fomos nós! - E apontava os companheiros que, ainda daquela vez, se acovardaram e nada retorquiram.
Sabedor de toda a história, num misto de solene seriedade e brando sorriso, o sacerdote proferiu:
- Eu sei que o único mentor deste admirável espectáculo é o Ricardo, porque os colegas, embora se tivessem comprometido, em nada contribuíram para a execução de tão delicado projecto. Por isso, o esmerado Ricardo é que é o merecedor dos nossos aplausos, agradecimentos e admiração.
Estalou uma frenética salva de palmas, a premiar o laborioso trabalho do pequeno herói, inundado por um manto de serenidade...
Ao som de uma suave e apropriada música de fundo (lembrando as legiões, inumeráveis, de todos os espíritos celestes, que entoaram oratórias magníficas, em harmonias nunca ouvidas, propagadas de um extremo ao outro, glorificando o Reizinho que acabava de chegar ao Mundo), como os pastores e os Reis Magos, reverentes, os visitantes desfilavam, a contemplar aquele presépio, repleto de uma afável doçura, com a fulgente estrelinha a descer sobre a gruta, onde o Menino Jesus sorria, deitado em loiras palhinhas, sob o terno olhar da ditosa Mãe e de S. José...
Novembro de 2001
Consoada diferente
À Ana Miguel Capela
Há muito, muito tempo (contou-me a minha Avó materna, que da boca da sua, por certo, o ouvira já), um estudante de Medicina da Universidade de Coimbra, filho de uma nobre e abastada família minhota, resolveu fazer uma surpresa aos entes queridos, vindo passar com eles a quadra natalícia.
Já ao fim da tardinha do dia de Consoada, desembarcou na diligência. Mas, para chegar a casa, sem transportes, tinha pela frente uns quilómetros para palmilhar, desbravando caminhos sinuosos, desérticos e cobertos por extensos matagais e denso arvoredo.
O vento verrumava o mais ínfimo recanto, frio e gemente, soprado das alturas da serra, em cuja fralda estava implantada a ampla, soberba e confortável moradia.
Como não avisara, ninguém o aguardava e nunca imaginara deparar-se-lhe uma meteorologia assim. Se por um lado o cenário próprio da época o embevecia, por outro vedava-lhe a realização do projectado, uma vez que dificilmente chegaria a horas de confraternizar e trocar os presentes, que não se esquecera de comprar.
O breu da noite e leves flocos de branca neve principiavam a tombar.
Olhava em todas as direcções e não vislumbrava o itinerário certo a percorrer. Vieram-lhe à lembrança narrados episódios da aparição de lobos esfaimados que, diversas vezes, provocaram apreciáveis estragos. E, bem no fundo, reflectia na hipótese de, solitário por aquelas veredas, ser também ele atacado por uma alcateia, servindo assim de Consoada aos eleitos de S. Francisco de Assis que, como a todos os animais, ferozes ou não, considerava irmãos (e que pena os Homens não copiarem tão maravilhosa e humilde fraternidade)! Ele também meditou na possibilidade de se lembrar dele o Menino Jesus, que se preparava para nascer em milhões de presépios e de puros corações. No medo que o arrepiava da cabeça aos pés, ressurgia a esperança de um desfecho a seu contento.
A verdade é que não podia desperdiçar mais tempo: urgia prosseguir, ainda com a perspectiva, conquanto remota, de atingir a almejada mansão. E o escuro da noite e o tapete de neve alvacenta, que se adensavam cada vez mais assustadoramente? E sempre os maus presságios a lutar com a fé de que tudo acabaria da melhor forma!
Todavia, já começava a sentir-se fatigado física e moralmente, porque o caminho e distância andados tinham sido extenuantes...
Entretanto, cerrara-se de todo a noite e o manto de neve reluzia, servindo de alcatifa aos seus pés pisados pela dura marcha. Não queria desistir e não desistiria.
Num descampado, ao longe e quase em surdina, ouviu um rumor de chocalhos e enxergou, a tremeluzir, num determinado ponto e não longínquo, uma ténue claridade. Inundou-o, de novo, a confiança e a vontade férrea de vencer o surgido e prolongado contratempo.
Tomou a direcção da luminosidade promissora, mais convicto do que nunca de obter um abrigo, ao menos para pernoitar.
Por fim, imensamente débil mas radiante, alcançou o local redentor: chegara a uma pequena gruta, que servia de guarida a um velho pegureiro, responsável por um numeroso redil. Dois cães fiéis ladraram e romperam no seu encalço. De imediato, o dono se apercebeu e saiu a auscultar o que se passava. Ao ver que se tratava de um peregrino desorientado, assobiou pelos caninos e partiu ao encontro do pacífico intruso.
Levou-o para dentro da cabana e, paciente, acolhedor, benévolo (e se calhar agradecido aos Céus pela divina dádiva da inesperada e consoladora companhia para mais uma solitária noite de Consoada), fê-lo sentar bem perto do raizeiro de carvalho que, a um canto, crepitava, tudo iluminando e aquecendo.
- Ainda não ceei. - Falou, em voz baixa, mas serena e alegre, o bondoso hospedeiro. - Vai consoar comigo e, quando amanhecer e assim o pretenda, recomeça a viagem, para abraçar os seus e comungar com eles o dia de Nascimento, pois depressa lá chegará, atendendo a que o separa uma escassa légua de caminho.
- Muito lhe agradeço, santo homem, pela magnífica recepção e agasalho que me oferece.
Sobre uma tosca pedra, a servir de mesa, o pastor estendeu um pedaço de briosa zarapilheira, onde, meticulosamente, foi depondo um prato, duas malgas, um pote de batatas cozidas com a tona, uma garrafa com vinho, broa, presunto, chouriço, queijo, nozes, figos e maçãs vermelhas pequeninas.
Ambos comeram com redobrado apetite, reconhecendo o hóspede que jamais lhe soubera tão bem uma refeição e muito menos uma Ceia de Natal!
Não faltou um copo de cevada quentinha e um gole de bagaço para brindar.
Depois, cerca da meia-noite, o venerando ancião desejou as boas-festas ao forasteiro e este, num nobre gesto, sincero e comovido, ofertou-lhe e obrigou-o a aceitar as prendas que destinava aos familiares, formulando, também, francos votos de um amoroso e feliz Natal...
Conversou por largo espaço e animadamente, reconfortado pelas delícias dos manjares ingeridos e pelo suave calor, aspergido pelo canhoto, transformado em brasa viva, sem lamentar a ausência na lauta Consoada familiar e rememorando as peripécias experimentadas naquela noite, que jamais se lhe varreria dos sentidos!
Finalmente, estendido numa puída enxerga de palha e coberto por grossas mantas de lã, adormeceu resignado e satisfeito. E, durante o sono reparador, teve um belo e fantástico sonho: sonhou com um enorme e bonito presépio, onde as figuras se movimentavam, com uma fulgente estrela a descer sobre a lapinha escura, que albergava a sagrada Família de Nazaré, e viu aproximarem-se os pastores e os Reis Magos, carregados de ricas prendas, para oferendar e, prostrados por terra, adorarem o Menino Jesus que, sorridente e indescritivelmente afável, o olhava, ao som da harmonia de um coro angélico de vozes argentinas que, de lés a lés e incessantemente, entoava:
"Glória a Deus, glória a Deus, lá nas Alturas e reine a Paz por entre as Criaturas!!!"
Outubro de 2003
Um presente no dia de reis
Para a Maria Eugénia Capela e marido e para a Marta Maria Mimoso
Era um rapaz bem parecido e muito pobre, sem eira nem beira, embora com boas habilitações académicas e de fina educação. Não conhecera o pai, pois era filho de mãe solteira, tendo escutado rumores de que se tratara de um cavalheiro garboso e de muitos haveres, cuja família se opusera ao seu casamento e que sucumbiu de paixão pela mulher que o enternecia. A mãe, que tanto amava e de quem recebia igual e idolatrada correspondência, perdera-a quando adolescente, vítima de prolongada e dolorosa tuberculose. Órfão, com a sorte de Jó, na miséria e desgraça foi sobrevivendo, prosseguindo e completando os estudos numa instituição de caridade.
Apesar de simples, bom comportamento e educado, não havia jeito de arranjar quem lhe desse trabalho. Nunca, porém, esmoreceu. Ia gastando o interminável tempo a vaguear de lado para lado, procurando sempre não fazer mal e arranjar quem lhe fosse matando a fome. Quando se lhe deparava uma oportunidade para executar quaisquer tarefas, não se eximia e empenhava?se para ser agradável. Por isso, sempre ia aparecendo alguém que dele se compadecia.
Certa vez, por uma manhã bastante fria de Janeiro, (dia de Reis, por sinal), ao atravessar um monte desértico, a reluzir com o gelo formado durante a noite e que o sol nascente de Inverno ainda não lograra derreter, encontrou uma velhinha, muito corcovada e de longos cabelos de arminho, que carregava um feixe de lenha. Aproximou-se dela, gentilmente, e, pegando-lhe no feixe, indagou onde desejava que lho levasse.
- Ainda moro um pouco distante, bom moço, mas muito te agradeço a preciosa ajuda.
E puseram-se a caminho: ela tomou a dianteira e ele seguia-a, contente por poder ser-lhe útil.
De facto, percorreram estreitos carreiros, tortuosos e rodeados por imenso arvoredo e denso matagal.
Nunca deixou de falar a bondosa anciã, até que, por fim, chegaram a um casebre pequeno, bem conservado e acolhedor. Descarregou a lenha e ambos entraram.
A um canto, uma rude pedra a servir de lareira e uma panela, sobre uma trempe, no brasume, fervia e exalava um cheirinho apetitoso.
- Deixei a preparar uma água com cebola e um pedacinho de unto, para agora fazer umas migas e matar o jejum. Vais também petiscar comigo, porque bem noto que trazes a barriga colada às costas!
Ele aceitou de boa mente e, numa masseira velha e carcomida pelo bicho, sobre uma toalha puída, mas limpinha, foram colocadas duas malgas a transbordar, fumegantes. Partiu duas boas fatias de broa, esmigalhando o miolo no caldo, mexido com perícia, servindo as côdeas de acompanhamento ao saboroso manjar.
- Graças a Deus, soube-me muito bem! ? Declarou o hóspede, consolado e aquecido por aquela dádiva inesperada e que, desde o desaparecimento da mãe, jamais tinha ingerido.
- Sinto enorme alegria por ver-te com essa disposição e contentamento. Almoçarás comigo e com a minha neta, que ficou de por cá aparecer, sobretudo atendendo a que hoje é um dia especial: dia dos santos Reis Magos e dela completar 25 anos.
O rapaz ficou atónito, porque julgava que àquela solidão não chegava vivalma para uns momentos de felicidade.
- A minha neta é órfã de pai e mãe como tu. Os entes que tanto adorávamos (os pais dela, cuja mãe era minha filha, assim como um irmão, também meu filho, de 20 anos, duas jóias estremecidas, que me roubaram, e o meu próprio marido, companheiro extremoso e a cada instante lembrado com profunda saudade) foram feitos prisioneiros de guerra, atrocidades e mortos. Consegui evadir-me com a netinha e alguns bens, salvos da enorme fortuna que possuíamos. Retirei-me para este ermo por causa das perseguições que me moveram e apenas há escassos anos quedaram. Internei a menina num colégio da cidade, com uma mágoa infinita, mas consciente de que agia em seu abono, visitando-a sempre que as condições o permitiam e que hoje, felizmente, possui um curso superior e uma boa e desafogada empresa, tendo ainda recuperado bastante dos antigos bens.
Cada vez mais o moço ficava estupefacto.
- E a senhora isolou-se neste inóspito local e sente-se com coragem para viver aqui e separada da familiar mais chegada?
- Assim teve que ser até há pouco. Agora, todavia, já se não justifica tão penoso sacrifício e tenho tudo preparado para alterar a situação.
Ao fim da manhã saíram a esperar a visita tão desejada pelos dois.
Apareceu montada num soberbo cavalo, à frente de uma vistosa e confortável sege, que transportava uma dama de companhia, senhora afável, elegante e de meia idade.
Foi um momento patético, digno de ser observado, com lágrimas comovidas de sincero júbilo, quer da avó, quer da bonita rapariga, cenário que se repetia sempre que se viam, mesmo que os encontros sucedessem amiudadamente.
Seguiram-se as apresentações e os olhares dos dois desconhecidos cruzaram-se, fulminantemente, e entenderam-se para um enlace inevitável.
Regressados à casinha, usufruíram de um almoço principesco, suculento e animado, onde, mais e mais, se foi consolidando a doce atracção mútua, que os tornaria, muito em breve, imensamente ditosos.
Pela noitinha, partiram todos, de volta à cidade, para festejarem a tradicional ceia de Reis, celebrada numa magnífica vivenda, propriedade e residência da neta.
Os presentes para ele dessa data foram excepcionais, talvez com maior significado que os simbólicos ouro, incenso e mirra, e tinham de permanecer imorredouros o resto da vida, pelo valor estimativo, qualidade, consolo e merecido prémio.
O casebre foi, a partir de então, não só mais estimado pela bondosa velhinha, mas também pelos recém-casados, que o conservaram, tornando-o num ninho de encantamento e de felizes lembranças amorosas!
Outono de 2003
- Partilhe no Facebook
- no Twitter
- 6529 leituras