A partir do momento em que estão na família de acolhimento os cães-guia têm o direito legal de entrar em transportes e espaços de acesso público. "As pessoas primeiro oferecem resistência, mas depois vêem que o cão se portou bem e até ficam satisfeitas"
Um cego acompanhado por um cão-guia tenta atravessar uma estrada. Só avança quando sentir que é seguro, mas se de repente surgir um carro na via o seu companheiro pára e desrespeita a ordem para andar. A este comportamento chama-se "desobediência inteligente" e é uma das aptidões que os cães-guia ganham durante o treino. "
Se uma ordem é dada e o cão não pode cumpri-la em segurança, ele não obedece. Aí o utilizador tem de tentar perceber o que é que está a acontecer: se é um carro ou um buraco inesperado no passeio onde costumam passar todos os dias", explica Ana Filipa, directora da única escola de treino de cães-guia em Portugal, situada em Mortágua, Viseu.
Nos últimos sete anos, a escola entregou 49 animais a pessoas cegas, alguns dos quais vão substituir outros que entretanto morreram. A lista de espera é longa: há uma média de 60 pessoas inscritas e por ano só são entregues 12 cães, se todo o processo correr bem.
Em dois anos de formação estes cães aprendem a orientar o cego nas ruas, a evitar que choque com qualquer tipo de obstáculos e a afastá-lo do perigo de quedas.
São capazes de procurar uma passadeira (mediante a instrução "busca linhas"), um multibanco ("busca caixa") ou uma porta de saída ("busca porta") de um edifício, num total de 28 ordens que aprendem durante o treino.
Quando o dia-a-dia da dupla se torna numa rotina, já quase não são precisas palavras para que a função de guia seja desempenhada com rigor.
Temperamento e físico
As orientações dos cães-guia ao utilizador são dadas através do arnês, um instrumento metálico em forma de U invertido, preso com um colete ao corpo do cão. Ao cego basta interpretar os sinais transmitidos pelo arnês. É esta peça que permite perceber, por exemplo, quando se está perante umas escadas, através do grau de inclinação.
Os benefícios do trabalho do cão-guia não são apenas as conquistas em autonomia de vida, mas também a socialização que o animal permite. "Costumo dizer que é um lubrificante social", sublinha Ana Filipa.
Desde que nasce até atingir um ano de idade, o cão vive numa família de acolhimento, onde aprende as regras básicas de educação. É acompanhado pelos educadores da escola, que avaliam se tem o temperamento e as capacidades físicas necessárias para vir a ser um guia. Se mostrar sinais de agressividade, por exemplo, é excluído.
Se for aprovado, é sujeito a outro ano de treino, sempre em contexto real. De manhã, todos os cães em formação são levados pelos educadores para cidades próximas da escola, como Coimbra ou Viseu, onde são exercitados todo o dia. Ao final da tarde regressam a Mortágua.
Quando o educador considera que o cão está preparado para ser entregue (é cedido gratuitamente), há ainda uma fase de adaptação com o utilizador - uma semana na escola e outra em sua casa.
A partir do momento em que estão na família de acolhimento os cães-guia têm o direito legal de entrar em transportes e espaços de acesso público, ao abrigo do decreto-lei 118/89. São no entanto conhecidos casos de recusas à sua entrada em vários locais, por desconhecimento da lei.
Tanto Carlos Dinis como Vítor Oliveira, cegos e utilizadores de cães-guia, dizem que por vezes ainda têm problemas, embora hoje em dia sejam mais raros (ver textos na página ao lado).
Helena Fonseca, da direcção do Clube Português de Utilizadores de Cão-Guia, refere que há casos de recusa em salas de espectáculos e defende que a situação melhorava com uma grande campanha de sensibilização. "As pessoas primeiro oferecem resistência, mas depois vêem que o cão se portou bem e até ficam satisfeitas", observa Helena Fonseca. Todos os animais treinados até agora são da raça Retriever do Labrador, a mais utilizada no mundo para este fim. São dóceis e adaptam-se facilmente a mudanças e a pessoas sem terem quebras de humor ou alterações de comportamento.
A empatia de Vítor e Duda
Segundo as previsões do dono, cego de nascença, a Labrador deverá poder trabalhar até aos 11 ou 12 anos. "Depois aposenta-se"
Duda vivia há pouco tempo com Vítor como cadela-guia quando um dia, a caminho do trabalho do dono, quis juntar-se a outros cães. Foi repreendida mas a vingança não se fez esperar. Momentos depois, já dentro do edifício onde Vítor trabalha, Duda fez com que o dono esbarrasse contra um expositor de plástico, embora sem intenção aparente de magoá-lo. "As pessoas diziam que parecia que ela se estava a rir", conta Vítor Oliveira, recordando divertido um dos episódios da fase de adaptação de Duda à sua nova vida.
Histórias deste género já fazem parte do passado. Hoje, seis anos depois de a cadela lhe ter sido entregue, Vítor diz ter gerado uma grande empatia com ela, conseguindo cumprir as rotinas do dia-a-dia quase sem lhe dar ordens. "Grande parte das vezes ela antecipa as necessidades. Se entro num café, ela sabe que eu procuro uma mesa livre", conta Vítor, 52 anos, cego de nascença.
No percurso que faz de metropolitano até ao trabalho do dono, em Lisboa, Duda sabe qual a paragem de saída, as escadas rolantes a descer ou subir e as passadeiras a atravessar.
"Nunca estive em perigo"
Vítor tem um novo part-time e também ainda está a aprender o caminho até lá chegar. Durante o percurso entre o escritório e a estação do metro, Duda parece desconcentrada e engana-se na direcção, talvez devido à presença dos jornalistas do PÚBLICO. Vítor acaba por ser conduzido a uma das entradas do metropolitano, embora mais longe do que a desejada. Apesar do engano, a confiança é total: "Como vê nunca estive em perigo, não bati em nada."
Desde que é guiado por Duda, Vítor nunca teve um acidente. Mesmo quando vai a locais completamente desconhecidos, pergunta a direcção como qualquer outra pessoa perdida. E depois basta lá ir uma vez para o trajecto ficar na memória da sua companheira.
O que já é mais difícil é Vítor conseguir contrariar a Labrador quando tem de se afastar do caminho que percorrem diariamente. "Se vou sempre pelo mesmo passeio e um dia preciso de me desviar para ir a um multibanco, tenho de a convencer muito bem convencida."
O trabalho de Duda, que tal como outros cães-guias permite aos cegos caminhar com uma maior velocidade e segurança, tem um prazo marcado. "Se nada acontecer penso que ela pode trabalhar até aos 11 ou 12 anos. Depois aposenta-se."
Dunga "parece que tem GPS"
Carlos não é um dono rígido e deixa que as colegas de trabalho dêem a Dunga biscoitos próprios para cães: "Ela cumpre o seu papel, mas é um cão"
Um passo à frente do dono, Dunga não precisa de indicações sobre o destino de ambos. Sabe que é a paragem de autocarros do outro lado da avenida. É assim todos os dias depois de Carlos sair do emprego: a cadela encaminha o dono para a passadeira de uma movimentada avenida em Carnaxide, perto de Lisboa, e espera que os carros cumpram a obrigação de parar. Quando isso acontece, avança para o ponto central da rua e pára novamente antes de poder atravessar a segunda passadeira. "Não preciso de lhe dizer nada, ela sabe que vamos para casa", diz Carlos Dinis, cego e utilizador de um cão-guia.
Dunga é um dos 49 cães-guia ao serviço de pessoas cegas em Portugal. Há cinco anos que foi entregue a Carlos e as suas capacidades não páram de surpreendê-lo. Na rotina diária de ida para o emprego, Carlos utiliza o comboio e tem de sair na estação da Amadora. Antes de lá chegar já Dunga se pôs de pé. O mesmo não acontece ao fim-de-semana, quando Carlos vai a Lisboa com a mulher. Dunga parece saber que a paragem de saída é outra e à passagem pela estação da Amadora nem se mexe. "Ela parece que tem um GPS [sistema de posicionamento global]", observa Carlos Dinis, 49 anos, telefonista de profissão.
"Andava com uns escritos na testa"
Carlos sente o mesmo espanto quando volta a um sítio onde esteve uma única vez há meses e Dunga sabe levá-lo exactamente ao mesmo local, à mesma porta. "Isso deixa-me a pensar", diz, enquanto afaga o pêlo negro da Labrador.
Antes de ter a cadela consigo, Carlos caminhava na rua com a ajuda de uma bengala. As escoriações no corpo eram frequentes. "De vez em quando andava com uns escritos na testa, havia um poste mal semeado e lá ia", recorda com humor.
Mesmo nos primeiros tempos de vida em comum, Dunga não contornava os postes públicos de telefone na rua e passava por baixo. Inevitavelmente Carlos esbarrava contra os "orelhões". Quando acontecem erros deste género, os donos dão um puxão na coleira do cão para lhe chamar a atenção. Uma semana depois a cadela já tinha corrigido o erro.
Carlos ganhou ainda mais autonomia. E sentiu uma franca melhoria na socialização: "As pessoas aproximam-se, fazem-lhe festas e fazem perguntas." O contacto social é bem-vindo, mas tem regras. Uma delas é não dar alimentos ao cão porque isso pode alterar-lhe as digestões e as horas das necessidades fisiológicas. E uma pessoa cega pode não perceber qual o motivo da perturbação.
Carlos não ser rígido e permite que as colegas de trabalho dêem a Dunga biscoitos próprios para cães: "Ela cumpre o seu papel, mas é um cão."
Fonte: http://jornal.publico.clix.pt/magoo/default.asp?a=2006&m=10&d=29&uid=&si...
Nota: contributo, via e-mail, de Aires Alves.
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