Cidade vai ter a primeira praia do país que permite a autonomia dos
invisuais. Projecto inicial visava apenas pessoas com dificuldades de
locomoção.
Por Márcio Berenguer
O Funchal vai ter, a partir da próxima semana, a única praia do país
adaptada para invisuais. O projecto, orçamentado em cerca de 100 mil
euros, começou a ser testado na quinta-feira e vai permitir que
pessoas invisuais possam de forma completamente autónoma ir ao mar,
usufruindo também de todos os equipamentos de apoio balnear.
A ideia foi posta em prática na praia Formosa, a maior da cidade, e
consiste na colocação na água de uma linha de bóias equipadas com
sensores, que informam, através de sinais sonoros, os utentes sobre a
profundidade do mar, indicando também a distância da praia e a
direcção da mesma.
Toda essa informação é transmitida para uma bracelete usada pelos
banhistas invisuais, que têm, a qualquer momento, a possibilidade de
pedir ajuda aos nadadores-salvadores através de um botão SOS. A ideia
de criar uma praia adaptada chegou à Câmara do Funchal através do
orçamento participativo. O projecto vencedor foi uma praia adaptada
para pessoas com dificuldades de locomoção, mas a autarquia quis ir
mais além e alargou a ideia aos invisuais e às pessoas que, não sendo
cegas, tenham dificuldades de visão.
"Quisemos ir mais longe, porque consideramos que fazia todo o sentido
o Funchal, que é uma cidade de praia e turística, ter esta oferta",
explicou o vereador Domingos Rodrigues, responsável pela execução dos
projectos saídos do orçamento participativo. "Somos uma cidade muito
procurada por turismo sénior, e por isso esta praia não é apenas para
os funchalenses mas também para os turistas que nos visitam",
acrescentou o responsável municipal, dizendo que o sistema respeita
todas as normas e exigências nacionais e internacionais.
Com pouca ou nenhuma legislação nacional sobre esta matéria - a que
existe é pouco exigente -, a Câmara do Funchal adaptou o modelo
francês para este tipo de praias, um dos mais avançados do mundo,
para concretizar o projecto.
"Cumprimos todos os critérios do nível 4 [o mais elevado] do modelo
francês", adianta Domingos Rodrigues, dizendo que "não é vergonha
nenhuma" copiar os melhores. "Se o modelo existe e é bom, é melhor não
inventar e aproveitar o que já foi testado com sucesso."
Na praia Formosa, foi construída uma zona de sombreamento, colocado um
passadiço de madeira para as cadeiras de rodas circularem até à zona
adaptada e os vestiários foram remodelados, bem como os duches e os
sanitários. A colocação de sinalética específica e a criação de zonas
de estacionamento para pessoas portadoras de deficiência completam as
infra-estruturas de apoio.
"Adquirimos três cadeiras de rodas especiais, duas que flutuam (para
os que não sabem nadar) e outra que permite ao utilizador deixar a
cadeira na água, nadar, e depois voltar à cadeira para regressar à
praia." Todas têm rodas que permitem circular com facilidade em
qualquer tipo de terreno, incluindo areia, facilitando assim o acesso
ao mar. "Fizemos tudo de forma a que as pessoas sejam o mais autónomas
possível na praia."
A ideia da autonomia, de permitir que as pessoas se desloquem na praia
sem ajuda de outras, foi a trave mestra de todo o projecto. E a parte
dedicada aos invisuais, que precisam de ajuda para entrar, nadar e
sair da água, foi o ponto de honra dos promotores.
Utilização gratuita
O equipamento Audioplage adquirido, com tecnologia francesa, engloba
as bóias sinalizadoras e as braceletes, e permite a utilização
simultânea de cinco pessoas. "Este foi o primeiro passo, e sei que
agora não podemos voltar atrás. É um direito das pessoas, e elas vão
querer mais. Fico satisfeito com isso", afirma Domingos Rodrigues,
dizendo que o projecto é pioneiro em Portugal, e até na Europa, onde
são poucos os países com estas facilidades para invisuais.
"Fora de França, este sistema para invisuais só existe numa praia
grega e num espaço balnear espanhol", afirma o vereador, vincando que
estes equipamentos são "obviamente" de utilização gratuita. "O
objectivo foi, e é, proporcionar a todos um simples e prático acesso à
praia."
Tudo isto foi feito com pouco menos de 100 mil euros. O maior
investimento foi feito nas cadeiras de rodas anfíbias e todo-o-terreno
- cada uma custa três mil euros -, nas muletas que flutuam e no
sistema Audioplage. "A maioria das infra-estruturas de apoio
necessárias já existia, só tivemos de efectuar algumas adaptações",
explica o vereador, frisando que o objectivo é que a praia funcione
durante todo o ano.
"Os únicos condicionalismos são as condições do mar e a meteorologia,
tal como de resto acontece para todas as pessoas", ressalva o
responsável pela operacionalização dos projectos do orçamento
participativo. "Ninguém vai nadar com a bandeira vermelha, não é?"
Com um tecto de 500 mil euros, previa-se que o orçamento participativo
apoiasse os cinco melhores projectos, mas acabaram por ser aceites
seis. "Recebemos 44, alguns deles muito interessantes, e conseguimos
aprovar seis", sintetiza Domingos Rodrigues, explicando que todos eles
encaixam no orçamento previsto.
Neste âmbito, e para além da praia adaptada, a Câmara do Funchal vai
avançar, por exemplo, com um memorial para animais de companhia
integrado num parque para cães, com um skate park, que ficou em
segundo lugar nos projectos aprovados, e com equipamentos para
carregamento de telemóveis na rua.
"Numa altura em que somos cada vez mais dependentes dos smartphones e
dos tablets, e sendo nós uma cidade turística, é uma facilidade que
temos o dever de oferecer a todos os que cá vivem e os que nos
visitam."
O orçamento participativo foi uma das bandeiras eleitorais da
coligação Mudança, constituída pelo PS, Bloco de Esquerda, PND, MPT,
PTP e PAN, que conquistou em 2013 a autarquia ao PSD.
"Somos novatos nisto, pois foi a primeira vez que fizemos um orçamento
participativo, mas temos recebido elogios de vários quadrantes, e
muitas autarquias do país têm-nos contactado para saber o que estamos
a fazer e de que forma vamos implementar os projectos", garante
Domingos Rodrigues, que trocou as salas de aula da Universidade da
Madeira, onde é docente, por um gabinete na Câmara do Funchal.
Um projecto pensado em nome da dignidade
No areal da praia Formosa na quinta-feira ainda era dia de ensaio. Os
equipamentos não estavam ainda totalmente operacionais, e os técnicos
da câmara municipal andavam às voltas com os manuais, baterias
solares, cadeiras e bóias.
Numa cadeira de rodas, a poucos metros dali, Hernâni Silva observa
curioso a azáfama. Para ele, tudo aquilo que está a nascer na praia
Formosa, é uma "grande vitória".
O projecto de praia adaptada, que foi o mais votado do orçamento
participativo do Funchal, é da autoria deste funcionário municipal de
45 anos. "Sempre fui um amante da praia, e nenhuma das que frequento
são verdadeiramente adaptadas às pessoas com dificuldades de
locomoção", lamenta Hernâni Silva, sublinhando que para uma praia ser
acessível "não basta" hastear uma bandeira e apresentar-se como tal.
Hernâni Silva queria uma coisa prática e discreta. "Não gosto de estar
dependente dos outros, e sempre que queria ir nadar estava à mercê da
boa vontade de alguém", explica, lamentando a falta de "dignidade" dos
sistemas que existem em algumas praias.
Em algumas existem gruas hidráulicas que carregam as pessoas até à
água. "É preciso colocar fitas e mais fitas, é tudo um espectáculo, um
palco que se cria na praia para as pessoas com deficiência, que não é
digno", exemplifica, olhando para este novo "pedaço" da praia Formosa
como um modelo de simplicidade e autonomia.
José Figueira não vê, mas sente essa facilidade. Invisual desde jovem,
devido a uma doença progressiva, também foi à praia Formosa tentar
perceber essa mudança. Adora o mar. O cheiro. A liberdade que a água
proporciona. Até agora, era sempre uma sensação partilhada. "Tenho de
ir sempre acompanhado por alguém, para me referenciar", explica.
Agora, José Figueira já pode ir nadar sozinho. "É um projecto
louvável, como são todas as iniciativas que visam a inclusão", diz,
admitindo que tem algumas reticências sobre a forma como tudo irá
funcionar no dia-a-dia. "Com miúdos a jogar à bola, música nos bares,
pessoas a conversar, será difícil no início lidar com o sistema de
avisos sonoros."
Mas para ele não existem barreiras nem impossibilidades.
Fisioterapeuta de profissão e dançarino por paixão, José Figueira já
fez muitas coisas que a maioria julga vedadas a invisuais. "Comigo,
essa conversa do coitadinho do ceguinho não existe", afirma, dizendo
que já fez ski aquático, ski na neve, e viveu muitas outras
experiências. "Quero viver muitas mais", diz José Figueira, que desde
2011 integra o grupo de dança inclusiva Dançando com a Diferença.
Por isso, ir ao mar sozinho será apenas mais uma conquista pessoal.
"Esta iniciativa vem ajudar e muito, porque ninguém gosta de depender
dos outros, muito menos em situações tão simples como sentir o mar à
nossa volta."
Para Hernâni Silva, é uma dupla conquista. Poder ter uma praia com
acesso facilitado, e sentir que a ideia foi sua. "Tenho de agradecer
às autoridades por terem apoiado a ideia, e à população por ter votado
nela", salienta, pensando que talvez mais autarquias adquiram agora
uma nova consciência sobre a importância de incluir todos os cidadãos
na vida das cidades.
Noutras praias, noutras cidades, Hernâni Silva já alertou para esta
problemática, mas a resposta é sempre matemática. "Dizem sempre que
não têm dinheiro, e que estão a tentar melhorar dentro das
possibilidades do orçamento." A verdade é que as cidades são lugares
difíceis, e as praias podem ser caóticas para quem está sentado numa
cadeira de rodas. "Temos de serpentear pelas toalhas, rezar para as
rodas não ficarem presas, e depois esperar que um nadador-salvador nos
auxilie, o que nem sempre acontece."
Uma odisseia marítima, que Hernâni Silva espera que na próxima semana,
quando a praia estiver operacional, termine. "Pelo menos que seja mais
fácil, para pessoas com dificuldades de locomoção, sejam elas
permanentes ou não, aproveitarem um dia de praia da forma mais natural
e independente possível."
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