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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

As pessoas cegas também Precisam de Desenhos

por Francisco Lima

Meus caros, venho, novamente, falar a respeito da capacidade das pessoas com deficiência visual, afirmando que não está na cegueira a incapacidade, embora, nela, possam estar limites.
Percebam no artigo abaixo que alguns termos já não mais devem ser usados (portadores, por exemplo), porém o foram há cerca de 10 anos atrás.
Fiquem com o texto, então.
ENSINANDO RECONHECER DESENHOS PELO TATO: O EFEITO DO TREINO NO DESEMPENHO DE PESSOAS CEGAS NA NOMEAÇÃO DE FIGURAS EXAMINADAS HAPTICAMENTE

Tecnologias e Mídias Educacionais

Francisco José de LIMA* – CEI/UFPE

RESUMO

Sabedores dos benefícios de que o desenho e o desenhar podem trazer às crianças, jovens e adultos portadores de limitação visual, seja no lazer, na educação formal (biologia, geografia, matemática etc.), seja na reabilitação de pessoas que perderam a visão total ou parcialmente, neste trabalho dedicou-se a estudar que efeito o treino com padrões bidimensionais tem sobre o reconhecimento háptico de desenhos. Pesquisou-se com pessoas cegas congênitas totais (crianças pré-escolares e jovens do segundo ano do ensino médio, de escolas públicas, da cidade de São Paulo) técnicas para a compreensão de figuras tangíveis reconhecidas hapticamente. Valeu-se de uma caneta para desenhos em relevo, desenvolvida no Brasil, cuja característica principal é produzir o relevo no lado positivo do papel, permitindo com que o desenho seja visto à medida que se desenha. Desenvolveu-se estratégias para o melhor reconhecimento háptico de padrões bidimensionais, bem como para estimular a produção de desenhos pelos próprios indivíduos cegos. Mostrou-se que é possível o uso de tecnologias existentes em nosso país para ensinar as pessoas cegas ou com baixa visão fazer uso de figuras tangíveis na educação e no lazer. Comprovou-se, ainda, que o treino com desenhos leva o indivíduo cego a reconhecer hapticamente desenhos em relevo, significativamente mais que sem esse treinamento. É sugerido que educadores de pessoas com limitação visual, total ou parcial, bem como produtores de material didático ou para-didático, destinado a este público, não presumam a incapacidade das pessoas cegas em reconhecer figuras tangíveis, pelo contrário instrui-se a esses educadores e produtores que ofereçam um maior número de configurações em relevo para a educação, lazer e reabilitação de pessoas cegas, por meio de mapas, gráficos e desenhos em geral.

PALAVRAS-CHAVE: desenho em relevo; pessoa com deficiência; tato háptico; representação mental; tecnologia.

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* Coordenador do Centro de Estudos Inclusivos (CEI/UFPE); Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais da Universidade Federal de Pernambuco (DPOE/UFPE); limafj@usp.com.br

1. INTRODUÇÃO

Máxime para os cegos e surdo-cegos, o tato é sabidamente uma via receptora de informações diversas de tradução do ambiente externo para o interno, i.e., para desenvolver uma compreensão ótima de seu mundo, essas pessoas precisam do sentido do tato, dele dependendo quase que inteira e exclusivamente (em certas situações) para conhecer e/ou reconhecer o meio ambiente em que vivem, obtendo através desse sentido, as informações necessárias para sua sobrevivência e seu desenvolvimento físico, mental e intelectual.
Como sugere Millar (1976:477):

“... treinar com materiais bidimensionais nos quais direções e ângulos possam ser sentidos um em relação a outro pode facilitar a orientação espacial por crianças cegas. Tal treinamento, portanto, deve começar, tão cedo quanto possível e não, mais tarde, apenas como acessório no aprendizado de geometria” (MILLAR, 1976, p.477).

Entretanto, não tem havido relatos de estudos onde cegos tenham tido treino prolongado com padrões bidimensionais em relevo. Daí que neste trabalho nos propusemos fazer tal treino, tendo testado os sujeitos cegos no reconhecimento das figuras em relevo, antes do treinamento com esses padrões, para só depois do treino comparar seu desempenho, não os comparando com demais sujeitos, mas com eles próprios, como veremos no decorrer deste trabalho.
Os termos treinamento prolongado ou sistemático são aqui utilizados somente para indicar o ensino dos nomes dos desenhos estímulos, consoante as estratégias abaixo descritas.
Não deve o ledor menos atento entender treino prolongado ou sistemático, de outra forma que não a descrita neste estudo, qual seja: a oferta de oportunidade de conhecer e observar repetidamente, por meio do tato (treino), configurações que o sujeito, por vezes, jamais houvera tido a oportunidade de conhecer antes dos seis meses de treinamento (treino prolongado), valendo-se de estratégias específicas para esse fim (treino sistemático).
Como já se tem sobejamente mostrado, o tato tem característica diversa à visão no que tange à observação do ambiente. Enquanto a visão permite uma observação mais ampla, global do ambiente ou objeto examinado, o tato o faz parte a parte, seqüencialmente, de forma mais paulatina que a visão, necessitando do sujeito que integre na memória as informações que o dedo ou dedos capturam. Daí que configurações muito grandes ou com muitos pormenores, podem ser, ao contrário do que se pode pensar, inadequados ao exame tátil. Logo, por vezes, seriam preferíveis configurações menores, levando em consideração o tamanho das mãos do sujeito examinador, que os desenhos maiores, os quais seriam mais adequados à captura com a visão.
Por outro lado, o eliminar de detalhes aleatoriamente dos objetos ou desenhos observados, necessariamente não ajuda no reconhecimento, porém, de fato, pode contribuir para seu não reconhecimento correto. Portanto, tanto a exclusão quanto à inclusão de certos detalhes podem funcionar como distratores ao reconhecimento, i.e., podem levar o sujeito a identificar o desenho ou objeto observado como sendo algo diverso ao que se pretendeu representar.

2. MÉTODO

SUJEITOS

Oito cegos totais (seis mulheres e dois homens, com idade média de 15 anos, variando entre 8 e 23 anos), todos ingênuos para a tarefa, serviram como sujeitos nesse experimento. Os observadores foram recrutados em duas escolas estaduais da cidade de São Paulo. Eram alfabetizandos em Braille, ou já faziam uso desse código para escrita e leitura. Os alfabetizandos já escreviam seus nomes e algumas palavras ditadas pela professora.
Como se pode observar, as causas de cegueira (figura 1), bem como a escolaridade dos sujeitos (figura 2) variaram, porém, ainda assim, o grupo constituído era satisfatoriamente homogêneo.
Inserir anexos 1 e 2 aqui
MATERIAIS E PROCEDIMENTOS

Trinta e três desenhos, entre figuras geométricas e objetos, foram feitos em alto relevo, utilizando-se a caneta para desenho M/H 1.0 (Lima e Da Silva, 1998).
Inserir figura 3 aqui
Todos os desenhos foram cuidadosamente preparados, levando-se em consideração aspectos importantes ao tato, assim como a linguagem pictórica, e.g., o tamanho dos desenhos (todos deveriam ter aproximadamente o mesmo tamanho para poderem ser trabalhados na estratégia de composição ou transformação dos desenhos); sua tangibilidade (todos os desenhos deveriam ser altamente perceptíveis, tanto para os adultos, como para as crianças). Enfim, os desenhos deveriam ter algumas características ou atributos comuns (compartilhados) aos outros desenhos, ao mesmo tempo que fossem variações em sua categoria superordenada (instrumentos musicais, utensílios domésticos etc).
Em um primeiro momento, aos sujeitos foram apresentados os cadernos de figuras geométricas e de objetos para um teste. Posteriormente, os sujeitos receberam treinamento para o reconhecimento háptico dos desenhos no período de abril a junho de 2000, para as figuras geométricas, e de agosto a outubro de 2000, para os desenhos de objetos. O treinamento se dava uma vez por semana em encontros que duravam em média duas horas, valendo-se de estratégias como as mencionadas a seguir.
Os retestes se deram ao término do bloco de treinamento (junho e outubro de 2000).
Tanto no teste como no reteste, os sujeitos foram instruídos a observar a figura, que fora desenhada ao centro de uma folha de acetato (Ink Jet Film Transparência, 100 micra, tamanho 15x21cm), uma de cada vez e nomear o desenho antes de passar para o seguinte. O sujeito era ainda informado que poderia observar o desenho da forma que quisesse, na posição que quisesse, mas que não deveria usar as unhas de maneira a não apagar as linhas em relevo.
Todos foram incentivados a oferecer uma resposta ainda que não tivessem certeza do nome correto da figura desenhada.
Também no teste e reteste, todos os desenhos foram apresentados sem oferta de categoria ou qualquer outra instrução.
Nenhum limite de tempo foi imposto para a observação e nem foi dado feedback aos sujeitos quanto ao acerto ou erro de suas respostas. Estas foram consideradas como omissão (i.e., “não sei”); nomeação (nome oferecido correspondente ao esperado ou ao seu sinônimo); e erro de identificação (oferta de uma identidade ao desenho, mas que não correspondesse ao nome esperado ou ao seu sinônimo, e.g., um relógio para o prato), para a análise qualitativa. Contudo, tanto os erros de omissão quanto os de identificação foram tidos como erros, para a análise quantitativa.

3. DAS TÉCNICAS UTILIZADAS

Ainda que tivéssemos trabalhado com os mesmos estímulos (desenhos de figuras de objetos e de formas geométricas), com ambos os grupos (de alunos pré-escolares e de alunos do ensino médio), em escolas diferentes, precisamos lançar mão de estratégias diferenciadas para treinar os alunos. Isto porque em uma das escolas tratávamos com crianças de 8 a 13 anos, ao passo que em outra, eram jovens de 18 a 23 anos de idade.
Muito embora tenhamos começado o treino com ambos os grupos com as figuras bidimensionais e só posteriormente fizemos uso dos desenhos dos objetos, não engessamos nosso trabalho a uma seqüência de atividades, nem deixamos de dar um objetivo para cada uma delas, isto é, nem as atividades eram inteiramente aleatórias, nem restringíamos o treino a algo que achávamos tinha de ser dado naquele momento, daquela forma. Deixávamos o grupo conduzir conosco as estratégias e muitas vezes, fazíamos uso de sugestões ou idéias advindas das falas dos sujeitos.
As atividades que aqui descrevemos, nem sempre tinham ou eram conhecidas pelos sujeitos com o nome que usamos neste trabalho. Essa nomenclatura é mais didática e as atividades, descritas aqui, não devem ser entendidas como as únicas atividades a se fazer com os indivíduos cegos, quando se pretende ensiná-los como reconhecer ou mesmo fazer desenhos. Entretanto, pode servir como um passo inicial a esse fim.

3.1. LEITURA DE HISTORINHA

Escrevemos um livro de historinha infantil - “Confusão no país das Formas” -, uma fábula, onde os personagens são formas geométricas. Líamos, então, a historinha, enquanto as crianças podiam observar as personagens, desenhadas em relevo.

3.2. JOGO DE COMBINAÇÃO DE FIGURAS

Fazíamos com as crianças jogos do tipo combinar figuras: uma série de figuras era dada a cada uma das crianças. Inicialmente eram oferecidas apenas 3 figuras, depois 10, 12, 16 etc. As crianças deveriam juntar as figuras que fossem iguais, independentemente de saberem o nome daquela figura. O treino com a combinação permitia fazer com que as crianças examinassem os desenhos e descobrissem neles aquilo que os faziam ser conhecidos, que poderia ser uma curva mais acentuada num desenho (Figura 3) ou uma parte mais preenchida em outro (Figura 4), da mesma forma que muitas vezes, para a criança vidente, a cor (o vermelho, por exemplo) é o que mais se usa para identificar certo desenho (e.g. uma maçã, Figura 5).
Inserir figuras 3, 4 e 5 aqui.
Trabalhar a combinação de desenhos, por assim dizer, casando-os, permitia treinar as crianças a buscar a orientação dos desenhos, já que por vezes elas próprias mudavam a orientação dos desenhos apresentados.

3.3. NOMEAÇÃO POR CATEGORIA

Outra tarefa feita era a de nomeação por categoria superordenada. Nessa atividade, era dado um grupo de desenhos e era dito a que categoria ele pertencia (e.g. “é um instrumento musical”, para o piano, “são talheres” para faca e garfo, etc). Como algumas classes seriam difíceis de associação para as crianças, usávamos, também, o oferecimento de funções para colocarmos os desenhos em categorias, principalmente referindo-nos às suas funções mais conhecidas (p.ex., “serve para trancar portas e portões”, para o cadeado, “serve para acender o fogão”, para o fósforo etc).
Entretanto, as figuras geométricas foram categorizadas de forma que se pudesse associar a um objeto ou parte dele (e.g., o retângulo era o tampo de uma mesa ou uma bolacha de maizena; o pentágono era uma bolachinha de sal, daquelas pequeninas; o cilindro era um caninho etc).
Uma vez mostrado o desenho a cada um dos alunos, e tendo-lhe explicado o que era e a que categoria pertencia, misturávamos todos os desenhos, e pedíamos que retirassem de lá um “representante” da categoria. Por exemplo, pedíamos que nos desse uma figura que pudesse representar uma janela, um copo, ou uma latinha de refrigerante, ao que deveriam entregar-nos no primeiro caso, o retângulo, p.e., e no segundo caso, o cilindro.
Essas categorizações serviam para diminuir a carga na memória semântica, uma vez que se oferecia categorias, nas quais nem todos os desenhos pertenceriam, ficando mais fácil o rastreamento ou associação nome/figura. Também, permitia dar fundamentos às figuras mais complexas ou diferentes nomes à mesma figura ou à mesma figura acrescida de algum pormenor. E.g., um cilindro e um semi-círculo poderiam tornar-se uma caneca (Figura 6) ou um barril (Figura 7); um círculo uma bolacha; e uma “representação oval”, um ovo.

Inserir figuras 7 e 8 aqui

3. 4. DESENHAR

Outra atividade usada, ainda, era de desenhar. Aqui, ora desenhava-se à mão livre (pedia-se que os alunos fizessem um desenho, inicialmente com o uso de formas mais básicas, ou objeto simples, com poucos traços), ora desenhava-se a partir de um objeto ou forma geométrica oferecida, e.g., o contorno de um círculo, de uma estrela ou coração de plástico e/ou papelão, uma forma em madeira etc.
Outras vezes, permitíamos aos sujeitos, inclusive às crianças fazer cópias com a caneta M/H (1.0). Todos recebiam um desenho que era colocado sobre uma folha de papel em branco, na prancheta para desenho. Então, acompanhavam o relevo, fazendo outro desenho sobre o desenho oferecido. Inicialmente, os desenhos eram formas geométricas, depois incluíamos figuras de objetos, entre outros. Eles também aprendiam a desenhar figuras novas a partir de figuras originais. Por exemplo, em um quadrado, pedíamos-lhes que fizessem uma linha no centro, a fim de que compusessem dois retângulos (figura 9); em um retângulo era feita uma linha diagonal e tínhamos dois triângulos (figura 10); em um cilindro eram feitas linhas verticais e passávamos a ter um copo ou barril (figura 11) etc.
Inserir anexos 9, 10e 11 aqui
Tal atividade, além de prover o exercício motor, mormente o de linhas verticais e horizontais, assim como os movimentos circulares, permitia, aos sujeitos, entender como os desenhos eram compostos, como eles eram feitos e de que maneira os sujeitos videntes representavam nos desenhos as coisas que tocavam, ou somente viam.
A caneta para desenho M/H (1.0) não era só usada para compor os desenhos por inteiro. Por vezes, pedíamos que a usassem somente para completar certos desenhos, cujas partes estavam faltando, e.g., um dos lados do triângulo, ou de um quadrado, uma parte da maçã etc.
Isso permitia com que os sujeitos integrassem na memória o desenho como um todo e completassem cognitivamente as partes que estavam faltando, já que verbalizavam o que era o desenho completo, muito antes de desenhar a parte faltante. E.g., as linhas do barril.
Todas as atividades, seja para com as crianças, seja com os alunos mais velhos, foram desenvolvidas na forma de brincadeiras ou jogos.
Além dessas atividades, muitas outras foram utilizadas. Todavia, no presente artigo, restringimo-nos à descrição apenas destas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que o treino com as figuras bidimensionais em relevo se deu em encontros de duas horas semanais, durante os meses de abril de 2000 a junho de 2000 e nos meses de agosto a outubro do mesmo ano, poder-se-ia esperar que:
1- Esse treino não promoveria uma melhora estatisticamente significativa, caso se considerasse que a mediação da visão fosse necessária para o reconhecimento de padrões bidimensionais, uma vez que o grupo era, predominantemente, composto de cegos congênitos totais;
2- o desempenho do grupo na tarefa de nomeação de figuras em relevo seria muito baixo, uma vez que cinqüenta por cento dos sujeitos cegos totais eram crianças, as quais teriam maior dificuldade para, cognitivamente, resolver a tarefa de reconhecimento háptico de desenhos;
3- haveria no reteste uma maior nomeação das figuras, caso o treino promovesse um efeito positivo no desempenho dos sujeitos (a despeito de serem crianças e jovens cegos totais), em relação ao teste inicial (antes de os sujeitos terem a experiência com os desenhos, seus nomes, sua configuração tátil e sua representatividade do tridimensional).

Uma vez aplicados o teste e o reteste, este após o treino com desenhos em relevo no reconhecimento háptico de figuras bidimensionais tangíveis, aos sujeitos cegos, valemo-nos do teste de Wilcoxon, para avaliarmos tanto o efeito do treino na nomeação das figuras geométricas (p< 0,01), quanto o efeito no treino com as figuras de objetos (p<0,01).
A Figura 10 resume um aumento significativo na nomeação de figuras geométricas e dos desenhos de objetos, reconhecidos hapticamente, depois de os sujeitos cegos terem sido treinados com padrões bidimensionais em relevo.
Inserir figura 12 aqui.
Já, as Figuras 13 e 14 ilustram o desempenho de cada um dos sujeitos na nomeação dos desenhos de figuras geométricas e de objetos, antes e depois daqueles sujeitos receberem treino com padrões bidimensionais tangíveis.
Inserir figuras 13 e 14 aqui.
Como podemos observar, nas figuras acima houve uma diferença entre os acertos depois e antes do tratamento.
Destaca-se que, embora em ambos os casos tenha havido diferença significativa entre o antes e o depois, essa diferença foi maior após o treino com as figuras de objetos do que após o treino com figuras geométricas.
Vale ressaltar que, de um lado, é possível que algumas das figuras geométricas fossem de conhecimento dos sujeitos mais velhos, considerando que eles estavam na segunda série do ensino médio e por essa época já teriam tido aulas de geometria, de onde se pudesse esperar que conhecessem figuras como hexágono, pentágono, trapézio etc. e as soubessem nomear, todavia foi apenas após o treinamento que isso de fato ocorreu. Com efeito, os sujeitos relataram que pouco ou quase nada viram de geometria, isto é, que estudavam a matéria sem realmente usarem ou terem ao seu dispor as formas geométricas em relevo, para os exercícios em sala de aula.
De outro lado, não era provável que o nome das formas geométricas “mais complexas” (hexágono, octógono, paralelogramo, trapézio, losango etc.) fossem de conhecimento dos sujeitos das séries iniciais. Todavia, pelo menos duas das crianças reconheceram o semicírculo, nomeando-o com o léxico esperado.
Após o treino (o que implicou na experiência com os desenhos de figuras geométricas e de objetos), tanto os sujeitos mais velhos como os mais novos, as crianças, haviam adquirido léxicos que os permitiam dar nome aos desenhos que examinavam hapticamente.
Não obstante os sujeitos não tivessem tido contato formal com desenhos ou regras do desenhar, antes do treino oferecido pelo presente estudo, é provável que alguns deles conhecessem alguns dos desenhos, em especial das formas geométricas, por outros meios que não o do desenho de linhas em relevo. Isto é, é possível que algumas dessas representações já pertencessem ao banco de representações mentais de alguns dos sujeitos, embora eles não tivessem necessariamente associados a essas figuras os nomes que a elas são atribuídos.
A pesar de não termos cronometrado o experimento (não o fizemos, pois acreditamos que o limitar do tempo para a tarefa pode inibir os sujeitos ou provocar uma identificação “prematura”, antes de que tivessem de fato certeza do nome do desenho), foi notório que, no teste antes do treinamento com os desenhos, os sujeitos levavam em média 30 ou 40 minutos para concluir a tarefa, ao passo que no reteste esse tempo não passava de 5 a 10 minutos.
Assim como ocorre na observação de padrões tridimensionais, percebemos que os movimentos de observação dos desenhos não eram aleatórios. É possível que, na medida em que o sujeito faça ou levante suposições sobre a provável “identidade” do desenho, ele busque, então, informações que comprovem essa hipótese, isto é, que ele busque componentes do tipo acessório, como definido por Lima (1998).
Refletindo sobre as estratégias que poderiam servir para a observação dos desenhos de modo a melhor obter deles informações, chegamos à conclusão de que o exame dos desenhos deveria considerar, entre outros aspectos, os mencionados por T. V. Cranmer (2000), para o reconhecimento do Braille, já que os desenhos eram formados de pontos (semelhantes aos pontos do código Braille, que em última instância são padrões bidimensionais), os quais por seu distanciamento e seqüência, representavam linhas.

“(...) Para começar aqui está uma breve lista de factores que têm influência na leitura pelo tacto:
- Aceitação (predisposição) da pele que cobre as pontas dos dedos. As camadas superiores da pele que está em contacto com o braille devem ser suficientemente macias para serem deformadas pelo padrão dos caracteres do braille, à medida que estes passam por baixo dos dedos que lêem;
- A área da pele que está em contacto com a linha de braille a ser lida tem uma relação crítica com a eficiência da passagem da informação táctil para o cérebro. Esta é uma das variáveis das estratégias de leitura de cada indivíduo; um dedo, dois dedos ou mais; uma mão ou duas mãos. Quanto maior é o contacto da pele com a linha de braille, maior é a imagem táctil;
- Temperatura dos dedos que fazem a leitura. Os dedos frios não são adequados para uma boa leitura de braille;
- Alinhamento e localização das mãos e dedos com a linha de braille a ser examinada. Um mau alinhamento e um exame da linha defeituoso podem resultar no contacto com uma linha adjacente. Isto pode distorcer o fluxo da informação táctil” (CRANMER, 2000, in www.lerparaver.com.br).

De outro lado, para que o exame dos desenhos alcançasse maior resolução dos padrões planos dever-se-ia propiciar que:
1- a observação inicial dos desenhos se desse de tal sorte que o sujeito obtivesse uma visão mais global do desenho, isto é, que alcançasse informação geral do contorno da figura;
2- os desenhos tivessem boa tangibilidade e seu tamanho não fosse excessivamente grande que necessitasse grande esforço mental para memorização do padrão, nem excessivamente pequeno que não se pudesse representar atributos do tridimensional, ou ainda que estes atributos não se aglomerassem no padrão bidimensional, de forma a não serem discrimináveis;
3- o tato ativo fosse utilizado, e a oferta de instruções (como o nome da parte tocada, a significação de certa linha, a orientação do desenho, etc.) se desse à medida que os sujeitos observassem o desenho.

Essas estratégias, entre outras, foram testadas, experimentadas e usadas, sendo de nosso entendimento que contribuíram para a aquisição dos vocabulários ou nomes esperados aos desenhos; isto é, fizeram com que os indivíduos viessem a reconhecer as configurações nomeando-as corretamente, e possibilitando com que tivessem uma melhora significativa no desempenho do reconhecimento háptico dos desenhos em relevo.
De um lado os dados obtidos neste estudo nos permitem afirmar a potencialidade dos indivíduos cegos no reconhecimento de desenhos em relevo; de outro, o treinamento, visando esse fim, nos permitiu concluir que se faz, de fato, necessário a condução de pesquisas que se aprofundem na identificação de mais estratégias para a busca de informação em padrões bidimensionais, adequadas ao reconhecimento háptico de desenhos em relevo.
Considerando, pois, a comprovação da capacidade de o indivíduo cego em reconhecer figuras táteis, e reconhecendo o benefício do desenho para a educação, cultura e lazer das pessoas, o presente estudo impele-nos a sugerir que educadores de pessoas com limitação visual, total ou parcial, bem como produtores de material didático ou para-didático, destinado a este público, não presumam a incapacidade das pessoas cegas em reconhecer figuras tangíveis, pelo contrário instrui-se a esses educadores e produtores que ofereçam um maior número de configurações em relevo para a educação, lazer e reabilitação de pessoas cegas, por meio de mapas, gráficos e desenhos em geral.
Sob essa égide, acreditamos que se de um lado melhorar a qualidade de vida de crianças cegas pode, muitas vezes, ser alcançado por mudanças relativamente diretas, sem a necessidade de depender de alta tecnologia, nem de grande despendimento de tempo por professores ou pais (Morsley, Spencer e Baybutt, 1991); de outro, a melhoria da qualidade de vida dos portadores de limitação visual, total ou parcial, só será alcançada pelos conhecimentos, inclusive os mais especializados, advindos da ciência e da tecnologia. Entretanto, esse benefício só ocorrerá quando e se, parafraseando T. V. Cranmer (2000), homens e mulheres dos vários ramos da ciência estiverem inspirados a começar a procura de tais conhecimentos com o mesmo zelo com que agora dedicam a outras áreas de pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRANMER, T. V. Um Contributo para a pesquisa sobre a leitura do Braille e a percepção táctil. Artigo publicado originalmente na Revista da Federação Nacional do Cego, de janeiro de 2000, vol. 43, nº 1, retirado do endereço eletrônico www.lerparaver.com .

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