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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

A superioridade da Visão

por Francisco Lima

Meus caros,
Uns 10 anos atrás, publiquei o artigo que hoje partilho com vocês. Ele ainda é atual, apesar de tantos anos.
Nele, vocês lerão a palavra "háptico" que é tato das mãos.
Confiram:
A PREEMINÊNCIA DA VISÃO: CRENÇA, FILOSOFIA, CIÊNCIA E O CEGO

Francisco José de Lima
Rosângela A. Ferreira Lima
José Aparecido da Silva

RESUMO

O presente trabalho apresenta crenças e embasamentos filosóficos que permeiam pesquisas científicas sobre o reconhecimento háptico de configurações bidimensionais, demonstrando que muitas dessas pesquisas vêm corroborar premissas enviesadas provindas dessas crenças. Mostra ainda que atualmente pesquisadores têm se libertado da visão aristotélica sobre a preeminência do sentido da visão, o que tem permitido o surgimento de nova compreensão do sistema háptico e da capacidade desse sistema no reconhecer figuras planas.

Palavras-chave: visão, tato, sistema háptico, desenho, filosofia, cego, sentidos.

ABSTRACT

The present article deals with some belief and philosophical viewpoints surrounding scientific researches on the haptic recognition of two-dimensional configurations, highlight that many of these researches corroborate bias assumptions based upon those viewpoints. It also claims that many researches have gotten rid of the Aristotelian viewpoint about the superiority of sight upon other senses, which has allowed new findings about the haptic system and about the capability of blind people at recognizing planar configurations.

Keywords: vision, touch, haptic system, drawing, philosophy, blind, perception.

INTRODUÇÃO
Uma imagem pode significar mil palavras. Esta frase de há muito conhecida e repetida com freqüência é cada vez mais verdadeira. Nos dias de hoje, outdoors, painéis, faixas de todos os tipos, estão espalhadas por toda parte, comunicando informações diversas. Ícones, mapas, diagramas fazem igualmente parte do dia-a-dia das pessoas, em quase todas as situações, educacionais, de trabalho ou lazer.
No entanto, há uma parcela da população que é relegada a não se beneficiar desse veículo de informação.
Cada vez mais, vestibulares para ingresso em Universidades trazem mapas e gráficos que ajudam os alunos na resolução dos problemas propostos. Porém, há um grupo de alunos para quem esses mapas e diagramas, invariavelmente, não colaboram na resolução desses problemas, pelo contrário, muitas vezes dificultam-lhes a resolução, uma vez que tais mapas e gráficos apresentam-se inadequados ao reconhecimento háptico.
Referimo-nos aos portadores de limitação visual, mormente os cegos, a quem, em geral, é negada a possibilidade de acesso à comunicação via imagem, uma vez que esta praticamente inexiste na forma tátil.
Não bastasse isso, os mapas e gráficos tangíveis destinados ao ensino de alunos cegos são raros, e os existentes nem sempre são usados com a freqüência desejável, por ou para esses alunos, contribuindo para um baixo desempenho dos sujeitos portadores de limitação visual, ao tentarem reconhecer figuras ou desenhos bidimensionais em relevo (Jansson, 2000, Ungar et alii, 1998). Ao não terem acesso a materiais gráficos adequados, sequer para sua educação formal; e não lhes ser propiciado maior contato com desenhos e figuras em relevo, os alunos cegos não se beneficiam do mundo amplo de possibilidades que é o mundo das imagens, sendo isso mais uma via de exclusão da pessoa com limitação visual (Lima 1998, 2000a, 2000b).
Assim, há uma lacuna muito grande que precisa ser preenchida imediatamente, qual seja, o ensino de reconhecimento de desenhos, mapas e diagramas pelo ato, às pessoas com limitação visual, desde sua mais tenra idade (Ungar, Blades e Spencer, 1995) (Lima 1997, 2000a, 2000c).
Mas por que não se ensina o reconhecimento de desenhos tangíveis às pessoas cegas desde crianças ou mesmo mais tarde? E por que os desenhos e mapas hápticos existentes não são usados com a freqüência necessária e desejável?
Resposta a isso pode ser encontrada na crença e no embasamento folosófico das teorias que sustentam a superioridade da visão sobre os demais sentidos, inclusive o tato; na crença da incapacidade de os cegos compreenderem padrões bidimensionais pelo tato, uma vez que não tem experiência visual; e na crença de que só a visão poderia oferecer informações que permitiria ao sujeito reconhecer figuras, mapas e gráficos adequadamente.

CRENÇA

É crença corrente que os cegos têm um “sexto sentido” extraordinário, bem como uma capacidade auditiva acuradíssima, isto é, que são capazes de ouvir coisas que os videntes teriam dificuldade em ouvir, ou mesmo que seriam inaudíveis para estes.
Com efeito, Wilson (apud Heller, 1991) relata que na Inglaterra, a maioria das pessoas interpreta as técnicas dos cegos em termos de algum tipo de sexto sentido misterioso. Helena F. R. Melo (1988), por sua vez. alerta:

(...) Não pense que os cegos têm um sexto sentido ou que a natureza os compensou pela falta da visão. O que há de tão “surpreendente” nos cegos, é o simples desenvolvimento de recursos latentes em todos nós. Você, com o mesmo treinamento, será tão “extraordinário” quanto eles! (p. 7)

Heller (1991) comenta que mesmo a sociedade tendo expectativas distorcidas quanto aos cegos, creditando-lhes poderes sobrenaturais, trata-os, individualmente, como os mais indefesos e dignos de dó dos mortais.
Também a crença do leigo na habilidade auditiva dos portadores de limitação visual, como um grupo, contrasta com o trato dos videntes para com aqueles sujeitos em particular, uma vez que, individualmente, muitos videntes tendem a aumentar o tom de voz ao conversar com uma pessoa cega, ou não lhe dirigir a palavra quando ela está acompanhada. Esse comportamento dos videntes para com os cegos fez com que Helena F.R. Melo (1988) escrevesse:

Os cegos não são surdos: se a pessoa cega estiver acompanhada, não se dirija ao seu companheiro quando quiser falar com ela. Dirija-se diretamente a ela, identifique-se e faça um contato físico: toque ligeiramente seu braço ou seu ombro, para que ela saiba que é com ela que estão falando. O fato de ela não retribuir seu olhar, não significa que ela não possa manter uma conversação normal. (p. 7)

Embora os cegos tenham sempre ocupado funções diversas, muitas das quais hoje exigem formação universitária e/ou alta especialização, por exemplo professores universitários, bibliotecários, pesquisadores, juizes de direito, fisioterapeutas, publicitários, escritores , programadores, analistas de sistemas etc; alguns dos cegos mais popularmente conhecidos são cantores e/ou músicos. Por exemplo: Francisco Landino, o florentino cego, teria sido um dos primeiros a fazer uso da nova invenção do pedal, no século XIV, ao órgão, o que possibilitou a execução de sons que perduravam por mais tempo; Antônio Cabezón, organista cego do século XV (Kurt Pahlen, 1991, p. 231); o compositor cego Joaquim Rodrigo, espanhol, autor do famoso Concierto de Aranjuez; o atualíssimo tenor Andre Bocelli, egresso da pop para a música erudita; na música pop internacional, Ray Charles e Stevie Wonder; e na brasileira, a cantora Kátia e, mais recentemente o grupo Tribo de Jah .
Esses parecem corroborar a crença na capacidade excepcional do cego em ouvir, seja entre as pessoas leigas, seja, até mesmo, entre os profissionais que cuidam, educam, ensinam e/ou trabalham com pessoas cegas, de tal sorte que fez Helena F.R. Melo (1988) registrar a seguinte observação:

“Não pense que todos os deficientes visuais têm dons artísticos e um incrível pendor musical. A proporção de músicos cegos é a mesma que a de músicos entre os videntes. Muitos cegos são tão musicais quanto eu ou você: apenas sabem tocar bem uma campainha!”(p. 8)

Á parte do meio musical, pouquíssimos são os cegos que recebem publicidade quanto a sua profissão, ou caem no conhecimento popular como sendo juizes de direito, jornalistas, professores universitários, atores, artistas-plásticos, etc.
Orientações internacionais como a Declaração de Salamanca, promulgada em 1994. bem como leis federais (tais como a 7853/89, 8028/90) e os decretos 914/93 e 3.298/99, entre outros, propõem o acesso à educação, ao esporte e ao lazer das pessoas com limitação visual, garantindo-lhes, assim, a inclusão também nas áreas que fazem uso de desenhos, mapas e diagramas, entendendo a potencialidade dos sujeitos com limitação visual para essas áreas.
Entretanto, até mesmo alguns educadores, pesquisadores e os próprios portadores de limitação visual ainda manifestam a crença na incapacidade de os cegos poderem fazer uso ótimo de configurações bidimensionais como mapas, diagramas ou desenhos em relevo como meio de expressão de suas impressões do mundo e como material de apoio a sua educação e orientação e mobilidade.
Os sujeitos com limitação visual, muitas vezes apresentam baixa expectativa sobre si e suas capacidades e potencialidades. Isso se daria, em parte, por conta de os próprios educadores, psicólogos e pesquisadores, muitas vezes, deixarem transparecer esse sentimento para com os portadores de limitação visual, refletindo em suas pesquisas e ensinamentos essa baixa expectativa sobre a potencialidade e capacidade das pessoas com limitação visual (Heller, 1991).
Os educadores dos cegos, por vezes, deparando-se com o baixo desempenho dos sujeitos a quem instruem, não atentam para o fato de que sua intervenção é crucial para o desenvolvimento social e intelectual daqueles sujeitos, e que com essa intervenção contribuem para o desempenho de seus alunos; desempenho este que às vezes se dá paulatinamente. O caráter “lento” de desenvolvimento de certas habilidades dos cegos às vezes constitui fator de desânimo para os educadores dessas pessoas e pode servir como corroboração para a crença de que esses sujeitos são incapazes ou deficientes no reconhecimento de desenhos, mapas e diagramas táteis.
Pesquisas já demonstraram que, embora muitas crianças cegas apresentem desempenho menor (de até 3 anos) em fase escolar, comparativamente ao das crianças videntes, podem superar esse desempenho quando mais velhas (Hatwell, 1985).
Não obstante a essas pesquisas, não é incomum a crença de que as pessoas com limitação visual têm associadamente um déficit mental. Isso é manifestado na postura de leigos e profissionais que muitas vezes ao tratar pessoas adultas com limitação visual comportam-se como se estivessem lidando com “criancinhas” indefesas, sem opinião e gosto próprios; muitos deles explicam tudo duas ou mais vezes à pessoa com limitação visual, fazendo uso de diminutivos e com uma seqüência infinita de “entendeu”?

FILOSOFIA

Entre outras, essas crenças não são novas e nem exclusivas dos leigos, pelo contrário, vêm sendo compartilhadas por filósofos com Aristóteles, para que a visão era o sentido mais perfeito e o tato, o mais necessário; e o empirista inglês John Locke, para quem é mister se ter experiência sensória prévia, e por cientistas como Revesz (1950) e Von Senden (1960).
Segundo Aristóteles (apud Thomas Aquinas, 1995), o sentido da visão é superior aos demais sentidos, pois permitiria uma melhor compreensão e conhecimento perfeito do mundo.

“(980a) O homem naturalmente deseja o conhecimento. Uma indicação disso é nossa veneração pelos nossos sentidos, pois, à parte de seus usos, nós os veneramos por sua própria existência, e o mais venerado de todos é o sentido da visão. De modo geral, não só quando com vista para a ação, mas mesmo quando não há ação para ser contemplada, preferimos a visão entre todos os outros sentidos.
A razão disso é que dentre todos os sentidos a visão melhor nos ajuda a conhecer as coisas e revela muitas diferenças.” (Aristóteles, Livro 1 da Metafísica, in Aquinas, 1995, p. 4-5)

Consoante a visão aristotélica, os sentidos nos serviriam para o conhecimento das coisas e para a utilidade da vida, por isso nós os amaríamos por si mesmos. Para corroborar sua afirmação Aristóteles cita o exemplo da visão, que, em sua opinião, é o sentido mais cognoscitivo, a que todos amam não só quando precisam dela para fazer alguma coisa, mas também quando não precisam dela para fazer algo.
Sob a égide aristotélica, a visão teria duas preeminências sobre os demais sentidos, uma porque conheceria e julgaria mais perfeitamente as coisas sensíveis, outra porque nos mostraria mais coisas, e mais diferenças nas coisas. Essas preeminências se dariam porque conheceríamos os corpos sensíveis precipuamente pela visão e pelo tato, e mais ainda pela visão.
Isso se deveria porque, por exemplo, o sentido da audição e do olfato são cognoscitivos do que de certo modo sai das coisas sensíveis, e não do em que estas consistem em si mesma. Assim o som existe a partir de um corpo sensível, de maneira que flui a partir deste e neste não permanece, o mesmo ocorrendo com a evaporação da fumaça com a qual o cheiro se difunde.
Logo, a visão e o tato percebem os acidentes que são imanentes nas coisas mesmas, como a cor, o calor e o frio. Donde o juízo do tato e da visão se estende às coisas mesmas, enquanto o juízo da audição e do olfato se estende ao que procede das coisas, e não às coisas mesmas.
Ensina Aristóteles, ainda, que a figura, o tamanho etc, com os quais se apresentam as coisas sensíveis, são mais percebidos pela visão e pelo tato, do que pelos outros sentidos, e mais precipuamente pela visão do que pelo tato (in Aquinas, 1995).

CIÊNCIAS

A superioridade da visão sobre os sentidos tem sido alvo de pesquisa por parte de muitos cientistas, mormente nos últimos 50 anos. Muitas dessas pesquisas têm como premissa a superioridade da visão, outras, contudo, buscam entender os demais sentidos por eles próprios, sem buscar a comprovação de que este ou aquele sentido é superior ao outro.
Com efeito, Heller (1991) diz que é provável que se um sentido se mostra melhor para resolver uma tarefa, outro não competirá com ele para fazê-la. Além do mais, há modalidades específicas aos sentidos (eg. só a visão pode reconhecer a cor de um alimento; o tato, sua temperatura; o paladar, seu sabor).
Embora um sentido contribua com o outro, na ausência de um ou mais sentidos, uma pessoa, ainda assim, pode desempenhar bem dada tarefa, uma vez lhe dada condição para tanto, ou se essa tarefa não exigir o uso específico do sentido ausente. Isso porque a resolução ou bom desempenho do indivíduo está relacionado às condições de que dispõe e não de uma deficiência sensória que o limita naquele particular (Lima, 1998).
Muitas pesquisas também mostram uma melhor adequação do sentido da visão para a resolução de tarefas diversas, e que o sentido da visão pode colaborar para um melhor desempenho em inúmeras outras.
Muitos pesquisadores têm conseguido libertar-se da visão aristotélica e lockeana sobre a superioridade e necessidade da visão e uma quantidade de trabalhos têm surgido, mostrando a potencialidade e a capacidade de os cegos congênitos desempenharem tarefas, antes só pensadas aos portadores visão normal ou aos que tiveram experiência visual, os cegos adventícios.
Não obstante, ainda perdura a crença na incapacidade de os cegos desempenharem certas tarefas, dentre as quais a de reconhecerem figuras planas em relevo, crença essa que, segundo Lima e Da Silva (2000), tem sido “corroborada” equivocadamente por educadores, psicólogos e até mesmo alguns estudiosos que pesquisam e escrevem sobre os cegos em suas teses e artigos em revistas científicas e não científicas.
Assim, sobre a capacidade das pessoas com limitação visual ou cegas em compreender relações geográficas tais como distância, configuração e hierarquia, atualmente as conclusões dos pesquisadores, segundo Kitchin et alii (1997), podem ser divididas em três posições. O primeiro desses grupos sugere que a visão é o sentido espacial por excelência. Para esse grupo os indivíduos cegos congênitos são incapazes de raciocínio espacial porque jamais experienciaram os processos perceptuais (por exemplo, visão) necessários para compreender arranjos espaciais.
Sob a égide do segundo grupo, as pessoas com limitação visual podem compreender e manipular mentalmente conceitos espaciais, mas porque a informação é baseada em pistas hápticas e auditivas esse conhecimento e compreensão são inferiores àqueles baseados na visão.
Já sob a égide do terceiro grupo, os indivíduos com limitação visual possuem as mesmas habilidades para processar e entender conceitos espaciais e que quaisquer diferenças, sejam em termos quantitativos ou qualitativos, podem ser explicadas por variáveis intervenientes tais como acesso a informação, experiência ou fadiga.
De acordo com Revesz (veja Juurmaa, 1973, p. 104), o sistema háptico fornece uma compreensão mais limitada do espaço que o sistema óptico. Para o autor a visão permite a percepção imediata de formas mais complexas, ao passo que o sistema háptico tende a apagar os detalhes.
Segundo Von Seden (1960), o tato jamais pode permitir a um indivíduo uma compreensão suficiente do espaço. Um importante componente dessa questão é que a visão e o tato produzem sensações muito diferentes. Nós temos experiência com visão de cores, mas as coisas são sentidas ou percebidas como quentes, frias, afiadas, duras, ou ásperas.
As sensações supostamente diferentes produzidas pelos sentidos podem levar uma pessoa acreditar que os dois sentidos dão-nos informações muito diferentes acerca do mundo. Thomas Reid (apud Morgan, 1977) e Gibson (1962, 1966) tentaram esclarecer esse problema, afirmando que enquanto as sensações diferem, percepções podem ser amodais e podem transcender informações sensoriais. Assim, em 1817, Reid (apud Morgan, p. 113, 1977), sugeriu que o cego é capaz de reconhecer perspectivas. geometria e outros aspectos do espaço.
Ao seu turno, Lederman e Klatzky (1987) afirmam que o baixo reconhecimento de padrões bidimensionais pelo tato, se deve ao fato de os cegos congênitos jamais terem tido experiência visual.
Lima e Da Silva (2000, neste volume), por sua vez, fazem assertiva de que o baixo reconhecimento háptico das figuras bidimensionais, comparativamente com o que poderia ser esperado para um reconhecimento visual, reside no fato de que os desenhos utilizados são transcrições em relevo de desenhos visuais, o que não garante a melhor representação háptica dos padrões a serem reconhecidos, e não porque o sistema háptico seja incapaz de reconhecer desenhos em relevo, nem porque seja necessária uma mediação da visão,, para esse reconhecimento.
Mas podem os cegos de fato reconhecer e fazer uso dos mapas e diagramas? Muitos pesquisadores têm mostrado que essa capacidade é indubitável, sugerindo que esses indivíduos podem se beneficiar do treino com esses padrões, aprendendo relações espaciais, adquirindo segurança na mobilidade e tornando-se indivíduos aptos para atividades sociais antes não alcançadas, por conta de uma dificuldade de mobilidade ou de “impossibilidade” de acesso a terrenos “hsotis”. Muitos autores ainda sugerem e, de fato, enfatizam, a necessidade de se treinar a criança cega o mais cedo possível com mapas, diagramas e desenhos em relevo para que estas venham a desempenhar e se beneficiar do conhecimento que essas configurações lhes podem trazer (Ungar, Blades e Spencer, 1995; 1996a, 1996b; Ungar, Blades, Spencer e Morsley, 1994; Ungar et alii, 1998; Heller et alii, 1996, Lima, Heller e Da Silva, 1998).

CONCLUSÃO

A defesa da capacidade da pessoa cega em reconhecer desenhos, mapas e diagramas táteis não é assim tão fácil, mesmo porque há também aqueles educadores de pessoas com limitação visual que, por conta de embasamentos teóricos diversos, equivocadamente defendem que não se deva ensinar desenhos ou as regras do desenho visual aos cegos, por conta de uma égide que simploriamente pensa que, ao fazer isso, estar-se-ia impedindo o desenvolvimento “autônomo” da criança. Segundo essa visão, a criança deve aprender a partir de sua elaboração e não ser levada ao aprendizado pelo adulto que a acompanha. Ora, poderia Gustavi Kuerten ser bicampeão de Roland Garros, se não lhe fossem ensinadas as regras do jogo de tênis e se ele não fosse treinado para jogá-lo bem? A resposta ‘não’, óbvia para as pessoas leigas, parece ser de difícil assimilação para aqueles que são contrários ao ensino de regras do desenho e do desenhar aos portadores de limitação visual, mormente às crianças.
Felizmente, essas pessoas estão na contramão da educação dos cegos, já que pesquisadores e educadores do mundo todo vêm defendendo o uso de mapas e desenhos para o benefício e educação das crianças desde sua mais tenra idade (Ungar, Blades e Spencer, 1993; Edwards, Ungar e Blades, 1998, Arditi et alii, no prelo). O que a crença no potencial das pessoas com limitação visual e na capacidade que têm em fazer uso de mapas e outras configurações planas, que estão aí para os cegos, assim como para os que têm visão plena ou parcial.
O não reconhecer hapticamente convenções visuais em relevo não basta para referendar a crença ou o ponto de vista filosófico de que o tato ou os cegos congênitos são incapazes de reconhecer padrões bidimensionais tangíveis (por conta de uma falta de experiência visual), antes de que estes padrões sejam ensinados ao portador de limitação visual e treinados ao sistema háptico.
É mister que se desenvolvam técnicas, equipamentos apropriados à feitura de desenhos por e para cegos e que estes recebam treinamento para o lazer e a educação artística com figuras dimensionais antes de que se possa fazer qualquer assertiva quanto à incapacidade dos portadores de limitação visual em reconhecer e produzir seus próprios desenhos, mapas e diagramas )Lima, 2000, Lima e Da Silva, 1998 e 2000, Lima, Heller e Da Silva, 1998).
Quando isso se der, descobrir-se-á que essas pessoas são plenamente capazes de desempenhar, otimamente, mais esta tarefa, o que permitirá pôr por terra crenças e posturas arcaicas, enviesadas e sem respaldo na boa ciência. Afinal, não é a cegueira que incapacita o homem, assim como não é a visão que o capacita para a condição de ser humano.

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