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O teatro que se ouve é um ensaio geral sobre a cegueira

por Norberto Sousa

Sessão especial de "Encontrar o Sol" no São Luiz. Na plateia, os espectadores são cegos e contam com uma ajuda preciosa e amplamente desconhecida: a audiodescrição. Fomos ver o que é e como funciona.
1O acesso
2Os primórdios da audiodescrição
3O público-alvo
4O palco
5Cai o pano
Tarde de matiné no Teatro São Luiz em Lisboa. Em cartaz está “Encontrar o Sol” de Edward Albee. Na plateia estão Ricardo, Isabel, Manuel, Inês, Clayton, Maria Isabel. Todos eles cegos. Vieram ao teatro para assistir à peça encenada por Ricardo Neves-Neves, contando com uma ajuda preciosa e amplamente desconhecida: a audiodescrição. Um recurso desenhado para ajudar à inclusão das pessoas com deficiência visual, permitindo-lhes o desfrute de várias manifestações culturais que nos habituámos a ter ao nosso dispor.
“Traduzimos imagens por palavras”, diz Anaísa Raquel, uma das pioneiras da audiodescrição em Portugal e principal responsável pela equipa de sete elementos que tem desenvolvido este trabalho em parceria com vários teatros e museus em diferentes pontos do país. “Cada vez mais há a consciência de que todas as artes culturais e do entretenimento também têm de estar acessíveis a todo o tipo de público”, acredita Anaísa. O que é facto é que este recurso não está disponível por defeito na maior parte das instituições culturais e o termo “audiodescrição” será tão ininteligível para a população em geral como as soluções para a dívida pública ou as razões para o triunfo de Donald Trump. E mesmo para os cegos, digamos que há correntes.
Ricardo Trindade é um habitué dos eventos com audiodescrição. Cego desde os 18 anos, Ricardo é um consumidor de cultura e já pôde usufruir deste recurso em espectáculos de teatro e até de dança contemporânea. No entanto, acha que há muito trabalho de sensibilização e divulgação a fazer. “Há um desconhecimento geral e mesmo entre os cegos, numa escala de 0 a 100, o conhecimento é de 1”. Diz também que boa parte da responsabillidade passa por associações como a ACAPO ou o Centro Helen Keller, que ignoram esta questão e não divulgam estas sessões inclusivas. “Dá muito trabalho reenviar um email”, ironiza, apesar de o trabalho de Anaísa e da sua equipa já estar em campo há cerca de oito anos. “Para estas associações parece que o trabalho começou ontem”.
O acesso
O próprio Ricardo colabora com esta plataforma de audiodescrição, assumindo o papel de consultor. O que significa que os audiodescritores preparam os guiões para os espectáculos e Ricardo recebe-os previamente, de forma a poder fazer uma triagem, dizer o que será mais ou menos relevante em termos de ambientes, entradas e saídas de cena, acções que não são ditas.
HENDEN – O Benjamin e o Daniel tinham estado… envolvidos.
FERGUS – Peço desculpa?
HENDEN – O Benjamin e o Daniel tinham estado “envolvidos”.
FERGUS – Um com o outro?
HENDEN – Sim.
FERGUS – Profissionalmente?
HENDEN – Que idade tens tu?
Enquanto Fergus e Henden conversam, Daniel e Benjamin movimentam-se e agem em palco, à semelhança do que acontece com Cordelia, Gertrude e Abigail. Aquilo que é óbvio para quem vê é relatado por Joana Saraiva a partir da sua cabine de audiodescrição, instalada no segundo balcão do teatro. Trata-se de uma espécie de caixote-marquise exíguo, capaz de fazer inveja às caixilharias que fizeram miséria nas fachadas portuguesas durante os anos 80. Lá dentro, tem-se uma vista privilegiada sobre o palco e sobre a sala, o que faz com que a informação fornecida aos espectadores cegos, munidos de auriculares próprios, vá para lá do guião. Descreve-se o ambiente da plateia antes do arranque do espectáculo, a descida das luzes, a subida do pano.
Minutos antes, Joana dava a sua visão sobre este trabalho, que implicou a frequência de um curso de formação ministrado pela Acesso Cultura, uma associação que trabalha as questões da acessibilidade. “Há aqui uma missão, no sentido em que eu acredito que um recurso como este tem de estar presente, ponto”. Independentemente de haver cegos entre o público naquele dia. “Ninguém tira uma rampa de acesso a um edifício público se nas últimas três semanas não tiver lá passado nenhuma cadeira de rodas. Tem de lá estar, para quando aparecer alguém, poder entrar”. Diga-se que o papel de Joana nesta peça não está limitado à cabine. Será ela a conduzir os cegos ao palco, uma experiência que faz parte das peças de teatro com audiodescrição.
No São Luiz, estas sessões – uma por cada espectáculo – vieram para ficar, acompanhando toda a temporada. A ideia é complementar outras iniciativas que este equipamento tem abraçado, no sentido de promover a já referida acessibilidade. Nas palavras de Aida Tavares, directora artística do São Luiz, esta é uma linha de trabalho que definiu para o seu mandato. “Desenvolvemos mais três projectos para além da audiodescrição, temos um programa pensado no seu todo. Temos a língua gestual portuguesa, temos um projecto pioneiro em Portugal que se chama Bilhete Suspenso e temos o projecto ‘Vamos’ para pessoas em isolamento.” Um esforço extra que implica custos, que não preocupam a responsável por este equipamento. “Eu não me queixo em termos de orçamento, que é perfeitamente razoável para o contexto em que se vive”. Discurso raro em tempo de vacas magras.
Durante a conversa com Aida Tavares, dentro da sala de espectáculos, os actores de “Encontrar o Sol” vão saltitando entre palco e plateia, borrifando o ar com aerossóis que espalham uma espécie de odor a Verão. A praia e a bronzeador. O que significa que esta peça é para ser vista, ouvida, inalada. Também será tocada, mas já lá vamos.

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