Fernanda Câncio
José Carlos Carvalho (foto)
Micha sabe o que é a esquerda e a direita. Sabe o que é em frente. Pára sempre antes de um degrau e sabe evitar poças de água. Mas Micha sabe mais. Sabe o que é uma passadeira. Não uma passadeira específica, mas qualquer uma: só hesita quando a tinta se apagou nas listas. Sabe até o que é um multibanco. Sabe encontrar o balcão de uma loja ou de um banco, cadeiras vazias num café ou restaurante.
Micha sabe muita coisa. Tem dois anos e meio e é uma labrador cor de areia. Está quase "pronta", quase no fim do curso. Marx, também da fornada "M" (os nomes dos cachorros são escolhidos por ordem alfabética) já está a "trabalhar". Entregue em Setembro a Carlos Santos, este labrador preto de dois anos e meio é o quinquagésimo cão formado pela escola de cães-guia da Associação Beira-Aguiera de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV), sediada em Mortágua, a única em Portugal a fazer esta formação. Carlos cegou há oito anos, num acidente do seu trabalho de mecânico, mas só há dois se inscreveu na lista de espera para um cão. "Primeiro queria ver se me habituava à bengala, a desembaraçar-me sozinho." Aprendeu numa escola de reabilitação para cegos a orientar-se na rua, a caminhar no escuro. "Foram quatro meses. No início era muito difícil, depois foi-se tornando mais fácil porque ali éramos todos iguais." As primeiras saídas a sós, porém, ficaram na memória. "No princípio, a confusão vem da nossa cabeça. Temos vergonha, medo de bater nos carros, de que as pessoas nos vejam a hesitar, a ir pelo sítio errado."
"Eu falo e ele percebe tudo"
Esteve cinco anos desempregado. Iniciou vários cursos - de informática, de telefonista, de serviços administrativos. Não acabou nenhum, eram todos em Lisboa e como vive no Algarve queria estar com a família. Há três anos, conseguiu finalmente um emprego, no supermercado Jumbo, de Faro. Está na secção de informações, com dois outros invisuais. Carlos é o único a ter um cão. "Só pensei inscrever-me para pedir um animal quando vi que tinha condições para o sustentar - sempre são 50 euros por mês de ração. Fui à escola, fiz exames, passei, e chamaram-me." Se nem todos os cães têm condições para ser guia de cego, nem todos os cegos podem ser guiados por cães. Condições fundamentais são a mobilidade e capacidade de orientação e de interagir com o cão, tanto no que respeita às ordens como aos afectos. Logo na inscrição, é-lhes solicitado que respondam a um questionário, seguindo-se uma entrevista. É a partir dessa avaliação que a escola determina a sua elegibilidade para a lista de espera. Depois, quando chega a sua vez, há um período de 15 dias de formação intensiva da "dupla", uma semana na escola e outra no "habitat" do cego.
Carlos já passou essas provas todas, está agora naquilo a que chama a "fase de adaptação" ao Marx. "Ele ainda pára para cheirar coisas, ainda quer brincar com os outros cães. Às vezes desobedece-me um bocadinho, largo-o para dar uma corrida e fazer as necessidades e ele não vem. Mas estou a dar-me muito bem. É extraordinário o que o Marx faz. Tinha uma ideia de como isto funcionava mas mesmo assim ele surpreende-me. Eu falo e ele percebe tudo, é impressionante." São os vizinhos, conta, que quando o ouvem a chamar o cão vêm à rua para o ajudar.
O meio envolvente é aliás crucial na viabilidade da dupla. No caso de Carlos, a empresa onde trabalha "não levantou obstáculos nenhuns, até adaptaram o balcão ao cão", e nos seus percursos diários não houve até agora reacções negativas. "Nos transportes públicos nunca tive problemas. Antes pelo contrário, as pessoas reagem muito bem ao cão."
"Eles adoram trabalhar"
As reacções das pessoas aos cães, porém, podem ser um problema. Marta Ferreira e Sabine Teixeira, duas formadoras da Beira-Aguieira, garantem que há "coisas incríveis". "Costumo andar de óculos escuros com o cão que estou a treinar e houve uma altura em que não trazíamos identificação", explica Sabine, 35 anos, formadora há dez, referindo-se ao colete que ela e a colega envergam, com o nome da escola. "Achavam que eu era cega e havia quem chamasse o cão, a tentar distraí-lo, ou a meter-se à frente, para o desorientar. Não dá para acreditar." Outra contrariedade, frisa, são os outros cães. "Não tanto os vadios, mas os que vêm com o dono, que são mais agressivos. E muitas vezes os donos até acham graça." As atitudes prejudiciais, porém, nem sempre são mal intencionadas. "Também há muito a mania de dar de comer aos animais. No outro dia, vinha a passar por uma esplanada e um senhor queria dar uma bifana ao cão. Não percebem que isso não só o distrai como pode ter consequências muito chatas", acrescenta Marta, 30 anos, formadora desde 2004. "Estes cães têm horas certas para comer e para fazer necessidades, e comem só determinada ração. Tudo o que lhes dêem a mais pode provocar um distúrbio intestinal, por exemplo, e impossibilitar que trabalhem."
A noção de "trabalho", aplicada a um cão, surge um pouco estranha. Mais estranho ainda é constatar a diferença no comportamento dos animais quando se lhes coloca o "arnês", a pega metálica que permite aos cegos seguir todos os movimentos do cão: se antes cheiravam aqui e ali e olhavam em volta, agora, possuídos de instantânea gravidade, caminham lenta e cautelosamente, olhando em frente. Assim são a Micha e o Mile, em Viseu com a Sabine e a Marta para mais um dia de treino, a percorrer ruas, a entrar em centros comerciais, a subir e a descer escadas rolantes.
Micha, calma e ponderada, contrasta com Mile, mais novo, mais estouvado e hesitante. "Ele só estará preparado no primeiro semestre de 2007", informa Marta. "Ainda lhe falta muito tempo de trabalho. Ela já está quase a ser entregue."
Como Sabine e o outro formador da escola - são só três - Marta estudou três anos em França, onde a federação das escolas de cães guia promove este tipo de cursos. "Funcionamos muito à base de repetições. Repetimos as palavras, as ordens, e quando o cão faz bem gratificamo-lo com afagos." Parece simples. Mas o trabalho específico de formação dura um ano e meio e nem todos os cães passam com distinção. "Há cerca de 10% de insucesso", reconhece Filipa Paiva, uma das dirigentes da Beira-Aguieira, que forma uma média de 12 animais por ano, a esmagadora maioria cadelas. "Até hoje, entregámos quatro machos e cinquenta fêmeas." O motivo, esclarece, prende-se com o facto de "a fêmea adquirir mais cedo a consciência do trabalho e ser menos dominante que o macho". O facto de estes "cães de trabalho" deverem ser castrados com um ano também prepondera: "Com os machos temos de decidir mais cedo se o cão serve ou não. As fêmeas podem ter um ou dois cios, não interfere nas suas capacidades, com eles não é assim."
A castração não é a única "maldade" a que os animais são submetidos. Durante o primeiro ano de vida, são criados por "famílias de acolhimento" (ver texto ao lado), com as quais criam laços afectivos que virão a ser abruptamente desfeitos. O mesmo se passa com a sua relação com os treinadores: é só do destinatário final, o cego, que poderão contar com uma relação duradoura. Mesmo assim, suspensos da voz e dos gestos de Sabine e Marta, Micha e Mile parecem só ter um objectivo: agradar-lhes, fazer bem. "Eles adoram trabalhar, vê-se que apreciam", comenta Sabine. A última fase do treino passa por, precisamente, testar a sua docilidade - ao contrário. "Damos-lhes ordens erradas de propósito. Para avançarem por uma estrada sem que os carros tenham parado, por exemplo." Trata-se testar as noções de "certo" e "errado", o específico código de valores de um cão-guia.
Uma surpresa mais para quem se habituou a dividir o mundo entre racionalidades e irracionalidades, o valor supremo da mente humana e a descartável insignificância dos animais. "Ainda hoje fico surpreendida com o que eles aprendem e conseguem fazer", diz Marta. "Nunca pensei que fosse assim."
Fonte: http://dn.sapo.pt/2006/12/09/sociedade/os_caes_trabalham_contra_o_escuro...
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