Mais alguns segredos sobre Nico revelados neste 23º capítulo do "Livro do Destino". A forma como assassinou o próprio pai, o porquê de o ter feito que está directamente relacionado com o facto de este pertencer à Maçonaria e depois... Mais algumas explicações relativas também ao porquê de ter disparado sobre Boile no dia do atentado contra o presidente Maning que no fundo parece-me que também devem ter tudo a ver com a Maçonaria à qual a seita a que Nico e Romano pertencem se opõe com todas as suas forças. No fim deste capítulo o Romano entra finalmente no quarto do hospital psiquiátrico onde Nico está internado há já cerca de oito anos a pretexto de o ir visitar, mas correrá bem esta visita? Não sei porquê, mas uma contagem de minutos e segundos demasiadamente pormenorizada que Nico faz por duas vezes no decurso deste capítulo quase me leva a crer que algo poderá correr de facto muito mal, sendo que no entanto ainda vamos ter que esperar pela publicação de novos capítulozinhos alusivos a esta história para podermos constatar se este meu pressentimento se revela ou não verdadeiro.
23
Três minutos e meio, disse Nico a si mesmo enquanto observava o Acura cinza atravessar pela neve e passar ao longo do caminho dos funcionários bem do lado de fora da janela à prova de estilhaçamento do segundo andar. Puxando a manga de seu blusão de moletom marrom desbotado, ele olhou para o ponteiro de segundos do seu relógio, contando para si mesmo. Um minuto... dois... três... Nico fechou os olhos e começou a rezar. Sua cabeça curvou-se dezesseis vezes. Três e meio... balançando lentamente, ele abriu os olhos e virou em direção à porta do quarto. A porta não se abriu.
Empoleirado em cima do aquecedor enferrujado, do lado de dentro da janela, Nico continuava a balançar lentamente, voltando-se para a neve que caía e curvando a terceira corda de seu violino de madeira de bordo-doce bem usado. O violino tinha um trevo de quatro folhas desenhado na parte de baixo, mas Nico estava mais interessado em como as cordas do violino atravessavam perfeitamente o cavalete de ébano quando su¬biam pelo braço do instrumento. Quando chegou pela primeira vez em St. Elizabeths, ele passou as primeiras duas semanas sentado exatamen¬te mesmo lugar, olhando para fora pela mesma janela. Naturalmente, os médicos desencorajaram isto — "anti-social e escapista", eles declararam.
Isto se tornou pior quando eles examinaram a vista da janela de Nico: à sua direita, uma construção de tijolo queimado com uma divisa do exército sobre ela ("muito simbólico de seu passado militar"); à sua es¬querda, as beiradas do rio Anacostia ("não o recompensa com uma vista de qualidade"); e ao longe, bem no limite da propriedade, meia dúzia de campos cercados por centenas de lápides despedaçadas que foram colo¬cadas ali desde a Guerra Civil até a Primeira Guerra Mundial, quando os pacientes do exército e da marinha ainda eram enterrados dentro da propriedade ("a morte nunca deveria ser um ponto focal"). No entanto, quando Nico mencionou a uma enfermeira que o corniso defronte de sua janela o fazia lembrar de sua casa de infância em Wisconsin, onde sua mãe tocava cello e o vento fazia os ramos das árvores balançarem com a músi¬ca, os doutores não apenas pararam de tentar impedi-lo de ficar ali, mas conseguiram alguém para doar o violino com o trevo de quatro folhas desenhado. "As memórias positivas devem ser encorajadas!' Nico sabia que isso era um sinal. Assim como Deus havia escrito no Livro. Como Deus os havia enviado. Os Três Violinistas.
Oito anos depois, Nico ainda morava no mesmo quarto, rodeado pela mesma cama estreita, a mesma mesinha-de-cabeceira e a mesma cômoda pintada que continha a Bíblia e o rosário de contas de vidro vermelho.
Mas o que Nico guardava para si era que, enquanto estudava o corniso, e este o lembrava dos dias passados com sua mãe, ele ficava mais con¬centrado no caminho bem desgastado dos funcionários, que se estendia bem à sua frente, até o portão principal, através da propriedade e ao redor do estacionamento e que conduzia à entrada do Pavilhão John Howard. A árvore era certamente um sinal — a cruz de Cristo foi com certeza feita de corniso —, mas o caminho na frente dele... o caminho era a via de sal¬vação de Nico. Ele sabia disso em seu coração. Sabia em sua alma. Soube desde o primeiro dia em que viu o caminho, coberto com ervas daninhas e grama que estalavam e quebravam o asfalto muito trilhado e oculto. A cada ano, o chão se deformava ligeiramente à medida que as ervas dani¬nhas se espalhavam um pouco adiante. Como um monstro, pensou Nico. Um monstro interior. Assim como os monstros que mataram sua mãe.
Ele não queria puxar o gatilho. Não de início. Nem mesmo quando Os Três o lembraram do pecado de seu pai. Mas, quando ele olhou para a prova — para o registro de entrega de refeições do hospital...
"Pergunte ao seu pai", disse o Número Três. "Ele não vai negar."
Balançando-se enquanto olhava para fora da janela do hospital, Nico ainda podia ouvir as palavras. Ainda sentia o odor adocicado do charuto de seu pai. Ainda experimentava o forte vento de Wisconsin so¬prando em seus pulmões enquanto ele subia os degraus de metal na en¬trada do trailer de seu pai. Fazia quase seis anos que não via seu pai. Antes do exército... antes da demissão... antes do asilo. Nico nem mesmo sabia onde encontrá-lo. Mas Os Três conseguiram. Os Três o ajudaram. Os Três, Deus os abençoe, estavam levando Nico para casa. Para punir o monstro. E corrigir as coisas.
"Pai, ela devia morrer pelos meus pecados!" gritou ele, puxando a porta com força para abri-la e precipitando-se para dentro. Nico podia ainda ouvir as palavras. Sentir o cheiro do charuto. Podia ainda sentir o dedo firme no gatilho enquanto seu pai suplicava, soluçando — Por favor, Nico, você é meu... Deixe-me conseguir ajuda para você. Mas a única coisa que Nico via era a fotografia de sua mãe — sua fotografia de casamento! — perfeitamente preservada debaixo do vidro em cima da mesa de café. Tão jovem e bonita... toda vestida de branco... como um anjo. O seu anjo. O seu anjo que fora levado embora. Levado pelos monstros. Pela Bestas.
"Nico, pela minha vida —por tudo que é sagrado — eu sou inocentei"
"Ninguém é inocente, pai."
O que Nico sentiu em seguida foi os pés escorregando no chão de linóleo descascado, que estava encharcado com... encharcado com verme¬lho. Uma poça vermelha-escura. Todo aquele sangue.
"Pai...?", sussurrou Nico, com manchas de sangue como sardas em seu rosto.
Seu pai nunca respondeu.
"Não duvide de você, Nico", disse-lhe o Número Três. "Olhe o tor¬nozelo dele. Você vai encontrar o sinal deles."
E quando Nico se abaixou — ignorando o buraco de bala na mão de seu pai (para fazê-lo sentir a dor que Jesus sentiu) e o outro buraco de bala em seu coração —, ele levantou a perna de seu pai e abaixou a meia. Ali estava. Exatamente como o Número Três havia dito. A marca oculta. Escondida de seu filho. Escondida de sua esposa. Uma pequena tatuagem.
O compasso e o esquadro — os símbolos mais sagrados da maço¬naria. Ferramentas da profissão de arquiteto... ferramentas para construir o vão da porta... mais um G para o Grande Arquiteto do Universo.
"Para mostrar que ele é um deles", explicou o Número Três.
Nico concordou, ainda confuso com o fato de seu pai ter escondido o segredo por tanto tempo. No entanto, agora o monstro estava morto. Mas, como o Número Três salientou, graças aos maçons, havia mais monstros lutando para sair. Mais Bestas. Não obstante, lutando agora — servindo a Deus — ele podia transformar a morte de sua mãe em uma bênção.
Os Três chamavam isso de fatum. A palavra latina para destino. O destino de Nico.
Nico ergueu o olhar quando ouviu a palavra. Destino. "Sim... isso é o que ela... Como o Livro."
Ali mesmo, Nico reconheceu sua missão — e por que sua mãe tinha sido levada.
"Por favor... eu preciso de... Deixe-me ajudá-los a matar os mons¬tros", ofereceu-se Nico, voluntariamente.
O Número Três o observou com cuidado. Ele podia ter se livrado de Nico bem ali. Podia tê-lo deixado... abandonado... Escolhido continuar a lutar sozinho. Em lugar disso, ele disse a única coisa que um verdadeiro homem de Deus poderia dizer.
"Filho, vamos rezar."
O Número Três abriu os braços e Nico deixou-se cair neles. Ele ou¬via os soluços do Número Três. Via suas lágrimas. Ele não era mais um estranho. Família. Como um pai.
Fatum, Nico decidiu naquele dia. Seu destino.
Durante o mês seguinte, Os Três revelaram a missão completa. Contaram-lhe sobre o inimigo e a força no lado deles. De Voltaire a Na¬poleão e a Winston Churchill, os franco-maçons passaram séculos dedi¬cando tempo e esforço aos membros mais poderosos da sociedade. Nas artes eles tinham Mozart, Beethoven e Bach. Na literatura, Arthur Conan Doyle, Rudyard Kipling e Oscar Wilde. Nos negócios, eles cresceram com fundos de Henry Ford, Frederick Maytag e J. C. Penney.
Nos Estados Unidos, eles elevaram seu poder a novas alturas: de Ben¬jamin Franklin a John Hancock, oito dos que assinaram a Declaração de Independência eram maçons. Nove dos que assinaram a Constituição dos Estados Unidos. Trinta e um generais do exército de Washington. Cinco pre¬sidentes do Supremo Tribunal, de John Marshall a Earl Warren. Ano a ano, século a século, os maçons reuniram aqueles que tinham maior influência sobre a sociedade: Paul Revere, Benedict Arnold, Mark Twain, John Wayne, Roy Rogers, Cecil B. DeMille, Douglas Fairbanks, Clark Gable, até mesmo Harry Houdini. Foi por alguma coincidência que Douglas MacArthur se tornou general do exército? Ou que Joseph Smith fundou uma religião in¬teira? Ou que foi dado a J. Edgar Hoover o FBI? Ou até mesmo que Buzz Aldrin esteve naquele primeiro foguete para a Lua? Todos aqueles marcos. Todos eles por intermédio dos maçons. E isso sem considerar as dezesseis vezes que eles assumiram a Casa Branca: os presidentes George Washing-ton, James Monroe, Teddy Roosevelt, Franklin D. Roosevelt, Truman, Lyndon B. Johnson, Gerald Ford... e o mais importante, Os Três explicaram, o presidente Leland F. Manning e o monstro conhecido como Ron Boyle.
Um mês depois do dia em que eles se encontraram, Os Três revela¬ram o pecado de Boyle. Assim como eles fizeram com o pai de Nico.
Ainda se balançando e dedilhando a terceira corda, Nico ouviu o resmungo, como um pigarrear, dos pneus esmagando a neve ao subir a colina. Um SUV preto apareceu com seus limpadores de pára-brisa jogando neve para os lados como se fosse uma mosca aborrecida. Nico continuava a dedilhar, bem ciente que o SUV preto em geral significava o Serviço. Mas quando o carro passou na frente do corniso, Nico viu que o assento do passageiro estava vazio, e o Serviço nunca vinha sozinho.
Três minutos e meio, contou Nico para si mesmo enquanto estudava o ponteiro de segundos de seu relógio. Agora, ele o tinha sincronizado per¬feitamente. Três e meio era a média. Para seus médicos, para suas enfer¬meiras, mesmo para a sua irmã antes de ela parar de visitá-lo. Ela sempre precisava de trinta segundos extras para se fortalecer, mas, mesmo nos piores dias — naquele domingo sombrio em que ele tentou se ferir —, três minutos e meio eram mais do que suficientes.
Nico olhou de novo para o ponteiro de segundos do relógio. Um minuto... dois... três... Ele fechou os olhos, curvou a cabeça e rezou. Três e meio. Nico abriu os olhos e se voltou para a porta do seu quarto de três metros por quatro e meio.
A maçaneta da porta girou ligeiramente, e o assistente hospitalar com os olhos injetados de sangue apareceu no vão da porta.
"Nico, você está vestido decentemente? Tem uma visita", falou o assistente.
Oito anos observando. Oito anos esperando. Oito anos acreditando que o Livro do Destino nunca poderia ser negado. Nico podia sentir as lágrimas escorrendo de seus olhos quando um homem pálido com traços irlandeses e cabelos pretos bem escuros entrou no quarto.
"É bom vê-lo, Nico", disse O Romano, enquanto entrava no quarto. "Fiquei longe por muito tempo."
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