Está aqui

Lua Azul - blog de lua azul

Viajando pelo mundo dos livros... O Aprendiz do Mago de Joseph Delaney - Capítulo 2

por lua azul

Cono prometido no meu post de ontem, cá estou eu outra vez para continuar a disponibilizar-vos mais um capítulozinho do primeiro livro que decidi publicar na íntegra através deste meu espacinho de modo a poder facilitar a sua leitura pela parte de algumas pessoas cegas como eu que ainda não adquiriram conhecimentos suficientes para poderem aceder a certas informações através da Net, nem muito menos para poderem ser elas próprias a fazer os downloads das obras e dos autores que mais gostam de ler. O segundo capítulo do "Aprendiz do Mago" de Joseph Delaney encontra-se então já nas linhas que se seguem, mas se ainda não leram o primeiro e pretenderem fazê-lo, aconselho-vos a entrarem no meu blogue que denominei por "Lua Azul" aqui mesmo no lerparaver e a procurarem o texto imediatamente abaixo deste visto que é aí que se encontra o início de toda esta história. Relativamente ao dia de amanhã, somente vos posso prometer que talvez vos consiga disponiblizar por aqui o terceiro capítulo desta obra, por enquanto, se forem verdadeiros adeptos deste tipo de histórias,fiquem com toda a liberdade deste mundo a desfrutar dos dois primeiros que já vos disponibilizei entre os dias de ontem e de hoje.

CAPÍTULO 2
PELA ESTRADA FORA

Levantei-me uma hora antes da aurora, mas a minha mãe já se encontrava na cozinha, a
preparar o meu desjejum preferido, toucinho defumado com ovos.
O meu pai veio para baixo quando eu limpava o prato com a última fatia de pão. Quando
nos despedimos, ele tirou algo do bolso e colocou-o em minhas mãos. Era a pequena caixa de
mechas que pertencera ao pai dele e, antes disso, ao avô. Um dos seus objetos pessoais preferidos.
— Quero que fique com isto, filho — disse ele. — Pode vir a ser útil no seu novo ofício. E
venha nos visitar em breve. Só porque vai sair de casa, isso não significa que não possa regressar
para uma visita.
— Está na hora de ir, filho — observou a minha mãe, aproximando-se de mim para um
último abraço. — Ele está ao portão. Não o faça esperar.
Éramos uma família que não gostava de demasiadas efusões e, como já tínhamos nos
despedido, saí sozinho para o pátio.
O Mago encontrava-se do outro lado do portão: uma silhueta escura recortada na luz
cinzenta da aurora. Tinha o capuz sobre a cabeça e erguia-se em toda a sua altura, o bordão na
mão esquerda. Encaminhei-me para ele, levando a minha pequena trouxa de pertences, sentindo-
me muito nervoso.
Para minha surpresa, o Mago abriu o portão e entrou no pátio.
— Bem, rapaz — disse ele —, siga-me! Agora, poderíamos começar pelo caminho que
tencionamos tomar.
Em vez de se dirigir para a estrada, rumou para o norte, direito à Colina do Carrasco, e
não tardamos a atravessar a pastagem norte, o meu coração já começando a bater forte. Quando
chegamos à vedação confinante, o Mago escalou-a com a agilidade de um homem da metade de
sua idade, mas eu fiquei estático. Assim que apoiei as mãos na extremidade superior da vedação,
ouvi os sons das árvores a estalar, os seus ramos vergados e curvados sob o peso dos enforcados.
— O que se passa, rapaz? — perguntou o Mago, virando-se para me olhar. — Se está com
medo de algo bem à sua porta, me será de pouca serventia.
Respirei fundo e passei por cima da vedação. Subimos penosamente, a luz da aurora
escurecendo à medida que penetrávamos na sombra das árvores. Quanto mais subíamos, mais
frio parecia ficar, e não tardou que começasse a tremer. Era o tipo de frio que nos deixa a pele
arrepiada e faz com que os pêlos se ericem na nuca. Já o sentira antes, quando algo que não
pertencia a este mundo se aproximava.
Assim que chegamos ao alto da colina, pude vê-los por baixo de mim. Deviam ser no
mínimo uma centena, por vezes dois ou três pendurados na mesma árvore, vestindo uniformes de
soldados com cinturões de couro largos e botas altas. Tinham as mãos atadas atrás das costas e
cada um deles se comportava de maneira diferente. Alguns debatiam-se desesperadamente, pelo
que o ramo por cima deles se agitava e sacudia, ao passo que outros apenas rodavam lentamente
na extremidade da corda, apontando primeiro numa direção, depois na outra.
Enquanto observava, senti subitamente um vento forte no rosto, um vento tão frio e
intenso que não podia ser natural. As árvores curvaram-se até o chão e as suas folhas
encarquilharam-se e começaram a cair. Numa questão de momentos, todos os ramos ficaram
despidos. Quando o vento cessou, o Mago apoiou a mão no meu ombro e guiou-me até o

enforcado que estava mais perto. Paramos a poucos passos do mais próximo.
— Olhe para ele — disse o Mago. — O que vê?
— Um soldado morto — respondi, a minha voz começando a tremer.
— Que idade aparenta?
— Dezessete anos, no máximo.
— Ótimo. Muito bem, rapaz. Agora, diga-me, ainda sente medo?
— Um pouco. Não gosto de estar tão próximo dele.
— Por quê? Não há nada a temer. Nada que possa te fazer mal. Pense no que deve ter sido
para ele. Concentre-se nele e não em si. Como terá se sentido? O que seria a pior coisa?
Tentei pôr-me no lugar do soldado e imaginar como deveria ter sido morrer daquela
maneira. A dor e a falta de ar deviam ter sido terríveis. Mas talvez tivesse acontecido algo ainda
pior.
— O fato de saber que ia morrer e que nunca mais poderia ir para casa. Que nunca mais
voltaria a ver a família — disse ao Mago.
Ditas aquelas palavras, invadiu-me uma onda de tristeza. Depois, no exato momento em
que isso aconteceu, os enforcados começaram a desaparecer lentamente, até ficarmos sozinhos na
vertente da colina e as folhas voltarem às árvores.
— Como se sente agora? Ainda com medo?
Abanei a cabeça.
— Não — respondi. — Sinto-me apenas triste.
— Muito bem, rapaz. Está aprendendo. Nós somos os sétimos filhos de sétimos filhos e
possuímos o dom de ver coisas que os outros não conseguem. Mas, por vezes, esse dom pode ser
uma maldição. Se tivermos medo, pode haver coisas que vêm alimentar-se desse medo. O medo
só torna tudo pior para nós. O segredo é concentrar-se naquilo que consegue ver e parar de
pensar em si mesmo. Funciona sempre.
— Foi uma visão terrível, rapaz, mas são apenas imagens fantasmagóricas — prosseguiu o
Mago. — Não há muito que possamos fazer por elas e com o tempo acabarão sumindo. Daqui a
cem anos ou mais, não restará nada.
Queria dizer-lhe que a minha mãe fizera em tempos algo por eles, mas calei-me.
Contradizê-lo teria sido um mau começo para ambos.
— Agora, se fossem fantasmas, já seria diferente — afirmou o Mago. — Pode-se falar com
os fantasmas e esclarecê-los sobre o que se passa. Só o fato de lhes fazer ver que estão mortos é
um ato de enorme bondade e um passo importante para que se vão embora. Normalmente, um
fantasma é um espírito desorientado, preso a esta terra, mas sem saber o que aconteceu. Por isso,
é frequente estarem atormentados. E não só: há outros que estão aqui com uma finalidade
concreta e podem ter algo a dizer. Mas uma imagem fantasmagórica não é nada mais do que um
fragmento de uma alma que alcançou uma situação melhor. Estes eram somente isso, rapaz.
Apenas imagens fantasmagóricas. Viu as árvores mudarem?
— As folhas caíram e era Inverno.
— Bem, as folhas agora estão de volta. Por conseguinte, estava apenas olhando para algo
do passado. Apenas uma lembrança das coisas más que por vezes acontecem nesta terra. Por
norma, se for corajoso, não conseguem vê-lo e não sentem nada. Uma imagem fantasmagórica é
apenas como um reflexo num lago que fica para trás quando a pessoa a quem pertence seguiu
caminho. Compreende o que estou dizendo?
Acenei com a cabeça.
— Bom, este assunto já está resolvido. De vez em quando, iremos lidar com os mortos,

para que fique bem acostumado a eles. De qualquer forma, vamos começar. Temos um longo
caminho a percorrer.
— Tome, a partir de agora vai levar isto.
O Mago entregou-me o seu enorme saco de couro e, sem olhar para trás, continuou a subir
a colina. Segui-o até o alto, depois desci por entre as árvores em direção à estrada, que era uma
cicatriz cinzenta distante a serpentear para sul através da manta de retalhos verde e castanha dos
campos.
— Viajou muito, rapaz? — O Mago falou por cima do ombro. — Viu grande parte do
Condado?
Respondi-lhe que nunca me afastara mais de dez quilômetros da fazenda do meu pai. O
mais longe que viajara fora até o mercado local.
O Mago murmurou algo entre dentes e abanou a cabeça; pude ver que não ficara muito
satisfeito com a minha resposta.
— Bem, as suas viagens começam hoje — disse-me. — Vamos para sul, em direção a uma
aldeia chamada Horshaw. Fica apenas a vinte e cinco quilômetros em linha reta e temos de chegar
lá antes de escurecer.
Ouvira falar de Horshaw. Era uma aldeia mineira e possuía os maiores depósitos de carvão
do Condado, recebendo a produção de dúzias de minas circundantes. Nunca esperara ir lá e
fiquei curioso em relação ao que o Mago poderia querer de um lugar daqueles.
Caminhava a bom ritmo, dando grandes passadas sem esforço. Não tardei a ter dificuldade
em acompanhá-lo; além de carregar a minha própria trouxa de roupas e outros pertences, tinha
também que levar o saco enorme dele, que parecia ficar mais pesado a cada instante. Depois, para
piorar as coisas, começou a chover.
Cerca de uma hora antes do meio-dia, o Mago parou subitamente. Virou-se e olhou-me
com dureza. Nesta altura, eu estava cerca de dez passos atrás. Doíam-me os pés e já começara a
mancar ligeiramente. A estrada pouco mais era do que uma trilha de terra batida que rapidamente
se transformou em lama. Exatamente quando o alcancei, dei uma topada, escorreguei e quase
perdi o equilíbrio.
Ele manifestou impaciência.
— Sente-se tonto, rapaz? — perguntou.
Abanei a cabeça. Queria dar um pouco de descanso ao braço, mas não me pareceu correto
pousar o saco dele na lama.
— Isso é bom — comentou o Mago com um ligeiro sorriso, a chuva a escorrer da orla do
seu capuz para a barba. — Nunca confie num homem que se desequilibra. Eis algo que convém
mesmo não esquecer.
— Não estou tonto — protestei.
— Não? — indagou o Mago, arqueando as sobrancelhas espessas. — Nesse caso, devem
ser suas botas. Não serão muito úteis nesta ocupação.
As minhas botas eram iguais às do meu pai e às de Jack, suficientemente fortes e adequadas
para a lama e o esterco do pátio da fazenda, mas daquelas a que levávamos tempo a acostumar-
nos. Um novo par custava-nos por norma quinze dias de bolhas, antes dos pés se adaptarem.
Olhei para as do Mago. Eram feitas de couro forte, de boa qualidade, e possuíam solas
muito espessas. Deviam ter custado uma fortuna, mas calculo que, para alguém que caminhava
muito, valiam cada cêntimo. Flexionam-se quando ele andava e percebi que haviam sido
confortáveis desde o primeiro momento em que as calçou.
— Um bom par de botas é importante neste ofício — anunciou o Mago. — Não

dependemos nem do homem nem dos animais para nos levarem aonde queremos ir. Se contar
com as suas duas pernas boas, elas não te decepcionarão. Por conseguinte, se eu resolver aceitá-lo,
arranjarei um par de botas iguais às minhas. Até lá, terá que se arrumar o melhor que puder com
essas.
Ao meio-dia, paramos para uma breve pausa, abrigando-nos da chuva num alpendre para
gado abandonado. O Mago tirou um pedaço de pano do bolso e desembrulhou-o, revelando um
grande naco de queijo amarelo.
Partiu um pedaço e entregou-me. Já vira pior e estava com fome, por isso engoli-o
vorazmente. O Mago comeu apenas um pequeno pedaço antes de embrulhar o resto e enfiá-lo de
novo no bolso.
Uma vez abrigado da chuva, empurrou o capuz para trás, pelo que tive finalmente a
oportunidade de vê-lo bem. Além da barba comprida e dos olhos de carrasco, o seu traço
fisionômico mais perceptível era o nariz, sinistro e pronunciado, com uma curvatura que fazia
lembrar o bico de uma ave. A boca, quando fechada, ficava quase escondida pelo bigode e a
barba. A primeira vista, julgara-a grisalha, mas, quando olhei melhor, tentando ser o mais discreto
possível para que ele não se desse conta, reparei que parecia irradiar dela a maior parte das cores
do arco-íris. Havia tonalidades de vermelho, negro, castanho e, obviamente, muito cinzento, mas,
como vim a perceber mais tarde, tudo dependia da luz.
“Queixo pequeno, caráter fraco”, costumava dizer o meu pai, e ele acreditava também que
alguns homens usavam barba apenas para ocultar esse fato. No entanto, ao olhar para o Mago,
podia ver-se, apesar da barba, que tinha um queixo comprido e, quando abria a boca, revelava uns
dentes amarelos que eram muito aguçados e mais adequados para devorar carne vermelha do que
mordiscar queijo.
Com um arrepio, percebi subitamente de que ele me fazia lembrar um lobo. E não era
apenas a forma como olhava. Ele era uma espécie de predador porque perseguia o escuro; vivia
unicamente de mordiscadas de queijo que o deixariam sempre esfomeado e o tornariam ruim. Se
concluísse o meu aprendizado, acabaria igualzinho a ele.
— Ainda tem fome, rapaz? — inquiriu, os seus olhos verdes cravando-se intensamente nos
meus até começar a sentir-me um pouco tonto.
Estava encharcado até os ossos e doíam-me os pés, mas tinha sobretudo fome. Então anuí,
pensando que ele fosse me oferecer um pouco mais, mas limitou-se a abanar a cabeça e a
murmurar algo para si mesmo. Depois, e mais uma vez, olhou-me intensamente.
— A fome é algo a que vai ter que se acostumar — disse. — Não comemos muito quando
estamos trabalhando e, se for um trabalho muito difícil, não comemos nada senão depois. O
jejum é a coisa mais segura porque nos torna menos vulneráveis ao escuro. Deixa-nos mais fortes.
Por isso pode começar a treinar desde já, pois quando chegarmos a Horshaw vou submetê-lo a
um pequeno teste. Vai passar uma noite numa casa assombrada. E vai fazê-lo sozinho. Assim,
poderei avaliar realmente a sua fibra!