A grande aventura do nosso amiguinho Thom pelo meio das bruxas continua e não é que desta vez consegue mesmo salvar a criança que tinha desaparecido no capítulo anterior de morrer? Coragem acima de tudo! É então isto que hoje vos trago através do 10º capítulo do nosso livrinho, bem como o regresso do mago que afinal e surpreendentemente, parece ter sobrevivido à armadilha de Liszie dos Ossos!
CAPÍTULO 10
POBRE BILLY
Fiquei tão fraco depois que me ajoelhei, e passados instantes senti-me indisposto — mais
indisposto do que alguma vez estivera. Vomitei sem parar, mesmo quando já só saía bílis pela
minha boca e as minhas entranhas pareciam dilaceradas e reviradas.
Por fim acabou e consegui levantar-me. Mesmo assim, a minha respiração demorou
bastante a regularizar e o meu corpo a parar de tremer. Só queria voltar para casa do Mago. Já
fizera o suficiente para uma noite, não?
Mas não podia — a criança estava em casa de Lizzie. Era o que os meus instintos me
diziam. A criança estava prisioneira de uma bruxa que era capaz de assassinar. Portanto, eu não
tinha alternativa. Não havia mais ninguém senão eu e se não ajudasse, então quem o faria? Tinha
de ir a casa de Lizzie dos Ossos.
Estava a formar-se uma tempestade a oeste, uma linha escura e irregular de nuvens que
encobria as estrelas. Muito em breve começaria a chover, mas quando desci a colina em direção à
casa, a lua ainda brilhava — uma Lua cheia, maior do que eu alguma vez me lembrava de a ter
visto.
A minha sombra projetava-se lá à frente, ao caminhar. Vi-a crescer, e quanto mais me
aproximava de casa, maior ela parecia ficar. Tinha o capuz puxado e levava o bordão do Mago na
mão esquerda, pelo que a sombra já não parecia pertencer-me. Movia-se à minha frente, até que
incidiu na casa de Lizzie dos Ossos.
Virei-me então, esperando em parte ver o Mago de pé atrás de mim. Não estava lá. Fora
apenas uma ilusão da luz. Continuei a avançar até transpor o portão aberto e entrar no pátio.
Parei diante da porta da frente para pensar. E se eu chegara tarde demais e a criança já
estivesse morta? Ou, então, se o seu desaparecimento não fora obra de Lizzie e eu me expusera
desnecessariamente ao perigo? A minha mente não parava de pensar, mas, tal como sucedera na
margem do rio, o meu corpo sabia o que tinha a fazer. Antes que a conseguisse suster, a minha
mão esquerda bateu pesadamente três vezes com o bordão na madeira.
Durante alguns momentos reinou o silêncio, seguido do som de passos e uma súbita nesga
de luz debaixo da porta.
Enquanto esta se abria lentamente, recuei um passo. Para meu alívio, era Alice. Segurava
uma lanterna ao nível da cabeça pelo que uma metade do seu rosto era iluminada enquanto a
outra estava no escuro.
— O que quer? — perguntou, a sua voz cheia de raiva.
— Sabe o que quero — repliquei. — Vim buscar a criança. A criança que vocês roubaram.
— Não seja ridículo — falou rispidamente. — Vá embora antes que seja tarde demais.
Eles foram encontrar-se com Mãe Malkin. Podem voltar a qualquer instante.
De repente, uma criança começou a chorar, um lamento fraco vindo de algum lugar dentro
da casa. Afastei então Alice e entrei.
Havia apenas uma única vela a tremular no corredor estreito, mas as divisões propriamente
ditas estavam às escuras. A vela era invulgar. Nunca vira uma feita de cera preta, mas agarrei-a na
mesma e deixei que os ouvidos me guiassem até ao quarto certo.
Abri a porta. O quarto não tinha qualquer mobília e a criança estava deitada no chão, em
cima de um monte de palha e bocados de pano.
— Como se chama? — perguntei, esforçando-me ao máximo por sorrir. Encostei o bordão
na parede e aproximei-me.
A criança parou de chorar e pôs-se em pé, vacilante, de olhos muito arregalados. — Não se
preocupe. Não precisa de ter medo — disse-lhe, tentando incutir a maior tranqüilidade possível à
minha voz. — Vou levá-lo à sua mãe.
Pousei a vela no chão e peguei na criança. Cheirava tão mal quanto o resto do quarto e
estava fria e molhada. Envolvi-a com o braço direito e embrulhei-a o melhor que pude na minha
capa.
Subitamente, a criança falou.
— Sou Tommy — disse. — Sou Tommy.
— Bem, Tommy — disse-lhe —, temos o mesmo nome. Também me chamo Tommy.
Agora está seguro. Vai voltar para casa.
Ditas aquelas palavras, peguei no meu bordão, dirigi-me para o corredor e saí pela porta da
frente. Alice estava no pátio, próximo do portão. A lanterna apagara-se, mas a lua brilhava ainda
e, ao encaminhar-me para ela, projetou a minha sombra na parte lateral do celeiro, uma sombra
gigante, dez vezes maior do que eu.
Tentei passar, mas ela barrou-me diretamente o caminho, pelo que fui obrigado a parar.
— Não se intrometa! — advertiu-me, a sua voz muito ríspida, os dentes reluzindo brancos
e afiados ao luar. — Este assunto não te diz respeito.
Não estava disposto a perder tempo com discussões e, quando avancei direito a ela, Alice
não tentou impedir-me. Saiu do meu caminho e gritou atrás de mim: — É um tolo. Devolva-o
antes que seja tarde demais. Eles irão atrás de você. Nunca conseguirá escapar.
Não me dei ao trabalho de responder. Nem sequer olhei para trás. Transpus o portão e
comecei a subir, afastando-me da casa.
A chuva principiou então a cair com intensidade, diretamente sobre o meu rosto. Era o
tipo de chuva que o meu pai costumava chamar “chuva que molha”. Toda a chuva molha, mas
alguns tipos parecem deixar-nos encharcados mais rapidamente do que outros. Esta era mesmo
muito molhada e dirigi-me para casa do Mago o mais rapidamente possível.
Não sabia ao certo se estaria seguro mesmo ali. E se o Mago tivesse realmente morrido?
Continuaria o demônio a guardar a casa e o jardim?
Não tardaram a surgir preocupações mais imediatas. Comecei a perceber que era seguido.
Da primeira vez que o senti, parei e pus-me à escuta, mas não havia nada senão o uivar do vento
e a chuva a fustigar as árvores e a tamborilar na terra. Também não tinha grande visibilidade
porque agora estava muito escuro.
Continuei então, dando passos ainda maiores, esperando estar a seguir na direção certa.
Uma vez, me deparei com uma sebe espessa e alta de espinheiro-alvar e tive de efetuar um longo
desvio até encontrar um portão, sentindo o tempo todo que o perigo lá atrás estava cada vez mais
próximo. Só depois de ter alcançado uma pequena mata é que tive certeza de que alguém estava
ali. Subindo uma colina, parei para respirar perto do seu cume. A chuva abrandara por um
momento e olhei para a escuridão lá atrás, na direção das árvores. Ouvi o estalar e partir de
ramos. Alguém se deslocava muito rapidamente pela mata, direito para mim, não se preocupando
com o lugar onde punha os pés.
No topo da colina olhei mais uma vez para trás. O primeiro relâmpago iluminou o céu e o
solo lá em baixo e vi duas figuras saírem das árvores e começarem a subir a vertente. Uma delas
era feminina, a outra tinha a forma de um homem, grande e corpulento.
Quando o trovão voltou a ribombar, Tommy desatou a chorar. — Não gosto de trovões!
— lamuriou-se. — Não gosto de trovões!
— Os trovões não podem lhe fazer mal, Tommy — disse-lhe, sabendo que não era
verdade. Também me metiam medo. Um dos meus tios fora atingido por um raio quando tentava
recolher o gado. Acabara por morrer. Não era seguro andar ao ar livre com um tempo daqueles.
Mas, apesar de os relâmpagos me apavorarem, não deixavam de ter a sua utilidade. Mostravam-
me o caminho, cada clarão intenso iluminando-me o percurso de volta a casa do Mago.
Não tardou que a respiração me saísse entrecortada, um misto de medo e exaustão, ao
mesmo tempo que fazia um esforço para seguir cada vez mais depressa, esperando apenas que
estivéssemos a salvo mal entrássemos no jardim do Mago. Ninguém estava autorizado a pôr os
pés na propriedade do Mago a menos que fosse convidado — dizia constantemente de mim para
mim, porque era a nossa única hipótese. Se conseguíssemos lá chegar primeiro, o demônio
proteger-nos-ia.
Avistara as árvores, o banco debaixo delas, o jardim à espera do outro lado, quando
escorreguei na erva molhada. A queda não foi aparatosa, mas Tommy começou a chorar ainda
mais alto. Quando consegui levantá-lo, ouvi alguém correr atrás de mim, os pés batendo com
força na terra.
Olhei para trás, respirando a custo. Foi um erro. O meu perseguidor vinha cerca de cinco
ou seis passos à frente de Lizzie e alcançava-me rapidamente. Um novo relâmpago e vi a metade
inferior do rosto dele. Parecia ter chifres saindo de cada lado da boca e, ao correr, movia a cabeça
de um lado para o outro. Recordei o que lera na biblioteca do Mago a respeito das mulheres
mortas que tinham sido encontradas com as costelas esmagadas. Se Tusk me apanhasse, me faria
o mesmo.
Por um momento, fiquei pregado ao chão, mas ele começou a emitir um bramido, tal como
um touro, e isso pôs-me novamente em movimento. Neste momento, quase corria. Se pudesse,
teria acelerado, mas carregava Tommy e estava cansado demais, as minhas pernas pesadas e lentas,
a respiração áspera na garganta. Contava ser agarrado por trás a qualquer momento, mas passei o
banco onde o Mago me dera lições e depois, finalmente, vi-me debaixo das primeiras árvores do
jardim.
Mas estaria a salvo? Se assim não fosse, seria o fim de ambos, porque era impossível
caminhar mais rapidamente do que Tusk até à casa. Cessei de correr e tudo o que consegui foi
dar alguns passos antes de parar completamente, tentando recuperar o fôlego.
Foi nesse instante que algo roçou pelas minhas pernas. Olhei para baixo, mas estava escuro
demais para ver fosse o que fosse. Primeiro senti a pressão, a seguir ouvi um ronronar, uma
vibração cava que sacudiu o chão por debaixo dos meus pés. Senti-o passar por mim, em direção
à orla das árvores, posicionando-se entre nós e aqueles que nos tinham seguido. Agora não ouvia
nada correr, mas escutei uma outra coisa.
Imaginem o miado zangado de um gato macho multiplicado por cem. Era uma mistura
semelhante a um miado vibrante e um grito, enchendo o ar com o seu desafio admoestador, um
som que se poderia ouvir numa extensão de quilômetros. Era o som mais aterrador e ameaçador
que jamais ouvira e percebi então por que motivo os aldeãos nunca se aproximavam da casa do
Mago. Aquele grito anunciava a morte.
Atravessem esta linha, dizia, e arrancar-lhes-ei o coração. Atravessem esta linha, e reduzir-lhes-ei ossos a
pasta e sangue coagulado. Atravessem esta linha e arrepender-se-ão de terem nascido.
Por conseguinte, de momento estávamos a salvo. Entretanto, Lizzie dos Ossos e Tusk
correriam colina abaixo. Ninguém seria tolo a ponto de se meter com o demônio do Mago. Não
admirava que tivessem precisado de mim para dar os bolos de sangue à Mãe Malkin.
Havia sopa quente e um fogo vivo à nossa espera na cozinha. Embrulhei o pequeno
Tommy num cobertor grosso e dei-lhe um pouco de sopa. Mais tarde, trouxe para baixo duas
almofadas e preparei-lhe uma cama perto da lareira. Dormiu que nem uma pedra enquanto eu
ouvia o vento a uivar lá fora e a chuva a bater com força nas janelas.
Foi uma noite longa, mas eu estava quente e confortável e sentia-me em paz na casa do
Mago, que era um dos lugares mais seguros em todo o mundo. Sabia agora que nada de
indesejável conseguiria sequer entrar no jardim, muito menos transpor a soleira da porta. Era
mais segura do que um castelo com ameias altas e um fosso largo. Comecei a ver o demônio
como meu amigo, um amigo mesmo muito poderoso.
Pouco antes do meio-dia, levei Tommy até à aldeia. Os homens tinham já voltado de Long
Ridge e, quando me dirigi a casa do açougueiro, mal ele viu a criança, o seu cenho carregado
transformou-se num sorriso rasgado. Expliquei sumariamente o que acontecera, adiantando
apenas os pormenores necessários.
Assim que terminei, ficou novamente carrancudo. — Eles têm de ser eliminados de vez —
disse.
Não me demorei muito. Depois de entregar Tommy à mãe e ela me agradecer pela décima
vez consecutiva, tornou-se óbvio o que ia suceder. Nesta altura, tinham-se reunido mais de trinta
aldeãos. Alguns deles traziam mocas e varapaus e falavam furiosamente em “apedrejar e
queimar”.
Sabia que tinha de se tomar uma atitude, mas não me queria envolver diretamente. Apesar
de tudo o que se passara, não suportava a idéia de Alice ser queimada, de modo que fui dar um
passeio pelas colinas rochosas durante uma hora ou mais para desanuviar as idéias, antes de
regressar lentamente a casa do Mago. Resolvi sentar-me um pouco no banco e desfrutar do sol da
tarde, mas lá já se encontrava alguém.
Era o Mago. Afinal escapara! Até aquele momento, evitara pensar no que fazer em seguida.
Quer dizer, quanto tempo teria permanecido em sua casa antes de decidir que ele não ia voltar?
Agora estava tudo resolvido, porque ele se encontrava ali, a olhar através das árvores para o lugar
onde uma nuvem de fumaça castanha se elevava. Estavam a queimar a casa de Lizzie dos Ossos.
Quando me aproximei do banco, reparei numa enorme equimose roxa por cima do seu
olho esquerdo. Ele viu-me olhar para ela e esboçou-me um sorriso cansado.
— Fazemos muitos inimigos, nesta atividade — disse ele —, e por vezes são precisos olhos
na nuca. Mesmo assim, as coisas não correram muito mal, porque agora temos menos um inimigo
com que nos preocupar nas imediações de Pendle. Sente-se. — indicou o lugar a seu lado no
banco. — O que andou tramando? Conte-me o que tem acontecido aqui. Comece pelo princípio
e vá até ao fim, sem omitir nada.
Assim fiz. Contei-lhe tudo. Quando terminei, ele levantou-se e mirou-me do alto, os seus
olhos verdes fitando os meus com imensa dureza.
— Quem me dera ter sabido que Lizzie estava de volta. Quando coloquei Mãe Malkin no
poço, Lizzie partiu um bocado à pressa e não julguei que ela alguma vez tivesse o descaramento
de voltar a aparecer. Devia ter-me contado o encontro com a garota. Teria poupado incômodos a
toda a gente.
Baixei o olhar, incapaz de corresponder ao dele.
— Qual foi a pior coisa que aconteceu? — perguntou-me. Voltou a lembrança, com toda a
nitidez, da bruxa velha a agarrar-me a bota e a tentar sair da água. Recordei o grito dela quando
se agarrou à extremidade do bordão do Mago.
Quando lhe mencionei o sucedido, ele soltou um suspiro longo e profundo.
— Tem certeza de que ela morreu? — indagou.
Encolhi os ombros.
— Ela não respirava. Depois o seu corpo foi levado para o meio do rio e arrastado.
— Bem, é certo que foi uma péssima experiência — comentou —, e a sua lembrança ficará
contigo para o resto da sua vida, mas irás aguentar. Teve muita sorte em levar consigo o mais
pequeno dos meus bordões. É de sorveira-brava, a madeira mais eficaz de todas quando lidamos
com bruxas. Em circunstâncias normais, não teria afetado uma bruxa tão velha e tão forte. Mas
ela encontrava-se dentro de água corrente. Por isso teve sorte, mas saiu-se bem para um novo
aprendiz. Mostrou coragem, verdadeira coragem, e salvou a vida de uma criança. Mas cometeu
dois erros gravíssimos.
Baixei a cabeça. Estava convencido de que, provavelmente, cometera mais de dois, mas não
ia contestar.
— O seu erro de maior gravidade foi matar aquela bruxa — afirmou o Mago. — Ela devia
ter sido trazida de volta para cá. Mãe Malkin é tão forte que até se conseguiria libertar dos seus
ossos. É muito raro, mas pode suceder. O espírito dela há de conseguir voltar a nascer neste
mundo, juntamente com todas as suas lembranças. Depois, virá à sua procura, rapaz, e há de
querer vingança.
— Isso pode levar anos, não pode? — inquiri. — Um bebê recém-nascido não tem muito
poder. Primeiro ela tem de crescer.
— Essa é a pior parte — disse o Mago. — Pode acontecer mais cedo do que julga. O
espírito dela apodera-se do corpo de alguém e usa-o como se fosse o seu. Chama-se “possessão” e
é péssimo para todos os intervenientes. Depois disso, nunca saberá quando, nem de que direção
virá o perigo.
— Ela pode possuir o corpo de uma mulher jovem, uma mulher com um sorriso
estonteante, que conquistará o seu coração antes de te tirar a vida. Ou pode servir-se da beleza
dela para subjugar um homem forte à sua vontade, um cavaleiro ou um juiz, que te atirará para
uma masmorra, onde ficará à mercê dela. E, mais uma vez, o tempo estará do seu lado. Ela pode
atacar quando eu não estiver aqui para ajudar — talvez daqui a muitos anos, quando houver
perdido a juventude, quando a sua visão falhar e as suas articulações começarem a estalar.
“Mas existe outro tipo de possessão, aquele que é mais provável neste caso. Muito mais
provável. Sabe, rapaz, é problemático manter uma bruxa viva num poço como aquele. Em
especial uma bruxa tão poderosa que passou a sua longa vida a praticar a magia do sangue. Terá
andado a comer vermes e outras coisas viscosas, com a umidade a ensopar-lhe constantemente a
carne. Por conseguinte, da mesma maneira que uma árvore pode ficar petrificada aos poucos e
transformar-se em rocha, o corpo dela terá começado a mudar lentamente. Ao agarrar o bordão
de sorveira-brava, o coração dela pode ter parado, lançando-a para lá da barreira, na morte, e o
fato de ter sido levada pelo rio talvez acelerasse o processo.
“Neste caso, ela ainda estará presa aos ossos, tal como a maior parte das outras bruxas
malévolas, mas, em virtude da sua enorme força, conseguirá mover o seu corpo morto. Sabe,
rapaz, ela estará o que nós chamamos “latente”. É um termo antigo do Condado, o qual lhe será,
sem dúvida, familiar. Assim como uma cabeleira postiça pode estar cheia de piolhos que não se
vêem, o corpo morto dela hospeda o seu espírito malévolo. Este se agitará como uma tigela de
larvas e rastejará, deslizará ou se arrastará em direção à vítima escolhida. E, em vez de ser duro
como uma árvore petrificada, o corpo morto dela estará mole e maleável, capaz de se enfiar no
espaço mais ínfimo. Capaz de se infiltrar pelo nariz ou pelos ouvidos de alguém e possuir o seu
corpo.
“Só existem duas maneiras de termos a certeza de que uma bruxa tão poderosa como Mãe
Malkin não conseguia voltar. A primeira é queimá-la. Mas ninguém deveria ter de sofrer
semelhante dor. A outra maneira é por demais horrível para se pensar sequer nela. Trata-se de um
método de que poucos ouviram falar porque foi praticado há muito tempo, numa terra distante,
do outro lado do mar. De acordo com os seus livros antigos, se comer o coração de uma bruxa,
ela nunca mais consegue voltar. E tem de o comer cru.
“Se usássemos qualquer dos métodos, não seríamos melhores do que a bruxa que matamos
— disse o Mago. — São ambos bárbaros. A única alternativa que resta é o poço. É igualmente
cruel, mas fazemo-lo para proteger os inocentes, aqueles que seriam as suas futuras vítimas. Bem,
rapaz, de uma maneira ou de outra, ela agora está livre. Vem aí apuros naa certa, mas pouco
poderemos fazer neste momento para os evitar. Teremos apenas de estar muito atentos.
— Não se preocupe comigo — disse-lhe. — Hei de desvencilhar-me.
— Bem, era melhor começar a aprender a ter mão num demônio — disse o Mago,
abanando pesarosamente a cabeça. — Esse foi o seu outro grande erro. Um domingo de folga
por semana? Foi excessivamente generoso! De qualquer forma, o que deveríamos fazer em
relação àquilo? — inquiriu, indicando a fina nuvem de fumaça que era ainda visível a sudeste.
Encolhi os ombros. — Acho que entretanto já terá acabado tudo — respondi. — Havia
muitos aldeãos irados e eles estavam a falar em apedrejamento.
— Tudo acabado? Não acredite nisso, rapaz. Uma bruxa como Lizzie possui um faro mais
apurado do que qualquer cão de caça. Ela consegue cheirar as coisas antes de elas acontecerem e
há muito que terá partido, antes de alguém conseguir se aproximar. Não, ela terá fugido
novamente para Pendle, onde vive a maior parte do grupo. Devíamos ir atrás dela, mas estou
caminhando há cinco dias e estou cansado demais e dolorido e necessito de recuperar forças. Mas
não podemos deixar Lizzie livre por tempo demais, senão ela voltará a fazer das suas. Tenho de ir
procurá-la antes do final da semana e você vem comigo. Não vai ser fácil e, agora, já podia ir se
acostumando à idéia. Mas primeiro o mais importante, por isso, siga-me...
Enquanto o seguia, reparei que apresentava um ligeiro mancar e caminhava mais
lentamente do que de costume. Portanto, o quer que acontecera em Pendle não deixara de ter
custos para ele. Levou-me até a casa, subimos as escadas e entramos na biblioteca, parando ao
lado das prateleiras mais distantes, as que ficavam perto da janela.
— Gosto de guardar os meus livros na biblioteca — disse —, e gosto que a minha
biblioteca vá crescendo em vez de diminuir. Mas, em virtude do que aconteceu, vou abrir uma
exceção.
Estendeu a mão e tirou um livro da prateleira mais acima e entregou-me. — Precisa mais
disto do que eu — disse. — Muito mais.
Como livro, não era muito grande. Era até mais pequeno do que o meu livro de notas. Tal
como a maioria dos livros do Mago, estava encadernado a couro e tinha o título impresso tanto
na capa como na lombada. Dizia: Possessão: os Malditos, os Desequilibrados e os Desesperados.
— O que significa o título? — inquiri.
— O que diz, rapaz. Exatamente o que diz. Lê o livro e descobrirá.
Quando abri o livro, fiquei decepcionado. Lá dentro, cada palavra de cada página estava
impressa em latim, uma língua que eu não conseguia ler.
— Estude-o bem e traga-o sempre com você — frisou o Mago. — É uma obra decisiva.
Deve ter-me visto fazer uma careta porque sorriu e apontou para o livro com o dedo. —
Decisivo significa que até ao momento é o melhor livro que alguma vez foi escrito sobre a
possessão, mas trata-se de um tema muito difícil e foi escrito por um homem jovem que ainda
tinha muito que aprender. Por isso, não é a última palavra sobre o assunto e há mais para
desvendar. Vai ao fim do livro.
Fiz o que ele me mandava e verifiquei que as últimas dez ou mais páginas estavam em
branco.
— Se descobrir algo novo, então anote-o aí. Cada pedacinho ajuda. E não se preocupe com
o fato de estar em latim. Vou começar a ensiná-lo assim que tivermos comido.
Fomos tomar a refeição da tarde, que fora preparada quase na perfeição. Mal engoli a
última bocada, algo se moveu debaixo da mesa e começou a roçar-se nas minhas pernas.
Subitamente, ouviu-se o som de ronronar. Foi ficando gradualmente mais alto até todos os pratos
e travessas no aparador começarem a tilintar.
— Não admira que esteja satisfeito — comentou o Mago, abanando a cabeça. — Um dia
de folga por ano teria sido a conta ideal! Mas não fique preocupado, vai correr tudo bem e a vida
continua. Traga o seu livro de notas, rapaz, temos muito que estudar hoje.
Segui então o Mago pelo caminho até ao banco, desarrolhei o frasco de tinta, mergulhei a
caneta e preparei-me para tirar notas.
— Assim que passam no teste em Horshaw — disse o Mago, começando a mancar para
trás e para frente defronte o banco —, normalmente tento iniciar os meus aprendizes no ofício o
mais suavemente possível. Mas dado que já estive frente a frente com uma bruxa, sabe o quão
difícil e perigosa pode ser a tarefa, além disso, acho que está preparado para descobrir o que
aconteceu ao meu último aprendiz. Tem a ver com demônios, o tema que temos estado a estudar,
por conseguinte, podia também aprender com ele. Procure uma página em branco e escreva o
seguinte como cabeçalho...
Fiz o que ele me mandava. Escrevi: “Como Prender um Demônio.” Depois, enquanto o Mago
contava a história, tomei notas, esforçando-me, como sempre, por acompanhá-lo.
Tal como já sabia, era necessário muito trabalho árduo, que o Mago chamou
“preparativos”, para prender um demônio. Primeiro, tinha de se abrir um poço o mais perto
possível das raízes de uma árvore grande e adulta. Depois de todas as escavações que o Mago me
obrigara a fazer, fiquei surpreendido ao saber que raramente um Mago abria pessoalmente o
poço. Quem se encarregava disso eram um aparelhador e o seu ajudante.
A seguir, eram precisos os serviços de um pedreiro para cortar uma laje de pedra que
encaixasse no poço como uma pedra tumular. Era muito importante que a pedra fosse cortada
rigorosamente, para vedar bem. Depois de revestidos a parte inferior da pedra e o interior do
poço com a mistura de ferro, sal e cola forte, era chegado o momento de enfiar o demônio
seguramente lá dentro.
Isso não era demasiado difícil. Sangue, leite ou uma mistura de ambos resultava sempre. A
parte realmente difícil era deixar cair a pedra corretamente enquanto ele se alimentava. O êxito
dependia da qualidade da ajuda contratada.
Era conveniente ter um pedreiro a postos e dois aparelhadores usando correntes
controladas por um cavalete de madeira colocado por cima do poço, de modo a descer a pedra
com rapidez e segurança.
Fora esse o erro cometido por Billy Bradley. Estava-se no final do Inverno, fazia um tempo
péssimo e Billy estava com pressa de voltar para a sua cama quente. Então, resolveu economizar.
Contratou mão-de-obra local que nunca efetuara esse tipo de trabalho. O pedreiro fora
cear, prometendo regressar daí a uma hora, mas Billy estava impaciente e não conseguiu esperar.
Meteu o demônio no poço sem grandes problemas mas teve dificuldades com a pedra. Estava
uma noite chuvosa e ela escorregou, prendendo-lhe a mão esquerda debaixo da extremidade.
A corrente encravou, pelo que não foi possível levantar a pedra, e enquanto os operários
estavam a braços com ela, e um deles foi a correr chamar o pedreiro, o demônio, furioso por se
ver preso debaixo da pedra, começou a atacar os dedos de Billy. Sabem, era um dos demônios
mais perigosos. Chamam-lhes “Estripadores” e normalmente alimentam-se de gado, mas este
gostava de sangue humano.
Quando conseguiram levantar a pedra, decorrera quase meia hora, e nessa altura já era
tarde demais. O demônio comera os dedos de Billy até à base dos dedos e estivera entretido a
sugar-lhe o sangue do corpo. Os seus gritos de dor tinham-se reduzido a uma lamúria e quando
lhe libertaram a mão só restava o polegar. Morreu pouco depois, do choque e da perda de sangue.
— Foi um caso triste — disse o Mago —, e agora ele está sepultado debaixo da sebe,
mesmo do lado de fora do cemitério de Layton — aqueles que seguem o nosso ofício não
conseguem fazer repousar os ossos em solo sagrado. Aconteceu há mais de um ano, e se Billy
tivesse vivido, eu não estaria agora a conversar com você porque ele ainda seria meu aprendiz.
Pobre Billy, era um excelente rapaz e não merecia tal sorte, mas é um trabalho perigoso e se não
for bem feito...
O Mago olhou para mim com tristeza, depois encolheu os ombros.
— Aprenda com isto, rapaz. Precisamos de coragem e paciência, mas, acima de tudo, nunca
podemos ter pressa. Usamos o cérebro, pensamos com cuidado, depois fazemos o que tem de ser
feito. Por via de regra, nunca mando um aprendiz sair sozinho antes de terminado o primeiro
ano de preparação. A menos, claro — acrescentou com um tênue sorriso —, que ele resolva agir
por sua própria iniciativa. Mais uma vez, preciso de ter certeza de que ele está preparado. Bom,
vamos ao que interessa — disse ele. — Está na hora da sua primeira lição de latim...
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