Bem, que aventuras estas em que o nosso amigo Thom anda metido face à ausência do mago! E como se tudo isto que por aqui nos é relatado no oitavo capítulo do livro já não fosse mais do que suficiente, parece-me que muitas mais aventuras ainda devem estar para vir. Por hoje fica no entanto somente este capítulozinho; os próximos, i-los-ei disponibilizando a pouco e pouco assim que me for possível.
CAPÍTULO 8
A VELHA MÃE MALKIN
De regresso à cabana do Mago, comecei a ficar preocupado, mas, quanto mais pensava no
assunto, menos esclarecido me sentia. Sabia qual seria a reação do Mago. Deitaria fora os bolos e
dar-me-ia uma longa lição sobre bruxas e os problemas com meninas que usam sapatos bicudos.
Mas ele não estava ali, por isso excluía-se a hipótese. Havia duas coisas que me faziam ir à
escuridão do jardim oriental, onde ele mantinha as bruxas. A primeira era a minha promessa a
Alice.
— Nunca prometa nada que não esteja preparado para cumprir — dizia-me sempre o meu
pai. Mas eu tinha pouca escolha. Ele ensinara-me a distinguir o certo do errado, e lá porque era o
aprendiz do Mago, isso não significava que tivesse de mudar tudo na minha maneira de ser.
Em segundo lugar, não concordava que se mantivesse uma velha prisioneira num buraco
no solo. Fazê-lo a uma bruxa morta ainda vá, mas não a uma viva. Lembro-me de me perguntar
que crime terrível teria cometido para merecer tal destino.
Que mal poderia haver em dar-lhe três bolos? Um pouco de conforto da família contra o
frio e a umidade, nada mais. O Mago dissera-me que confiasse nos meus instintos e, depois de
ponderar a questão, achei que estava a tomar a atitude certa.
O único problema era ter de ser eu a levar os bolos, à meia-noite. O escuro é mais que
muito nessa altura, especialmente se não houver luar.
* * *
Aproximei-me do jardim oriental levando o cesto. Estava realmente escuro, mas não tão
escuro quanto eu esperara. Por um lado, a minha visão sempre foi bastante apurada à noite. A
minha mãe sempre viu bem no escuro e acho que herdei isso dela. E, por outro lado, como estava
uma noite sem nuvens, o luar ajudou-me a dar com o caminho.
Quando penetrei nas árvores, ficou subitamente mais frio e senti um arrepio. Quando
cheguei à primeira sepultura, aquela que tinha a cercadura de pedra e as treze barras, senti ainda
mais frio. A primeira bruxa fora enterrada ali. Era fraca, com pouca força, ou pelo menos o Mago
assim afirmara. “Não precisa de se preocupar”, disse para com os meus botões, esforçando-me
por acreditar.
Decidir dar os bolos à Mãe Malkin à luz do dia era uma coisa, mas agora, ali no jardim,
quase à meia-noite, já não tinha tanta certeza. Ele avisara-me mais de uma vez, por isso devia ser
uma regra importante e agora eu estava a violá-la.
Ouvia-se todo o tipo de sons tênues. Os sussurros e agitações provavelmente não eram
nada, apenas pequenas criaturas que eu incomodara ao sair do meu caminho, mas recordaram-me
que não tinha o direito de estar ali.
O Mago informara-me que as outras duas bruxas estavam cerca de vinte passos mais
adiante, por isso contei-os com cuidado. Cheguei a uma segunda sepultura que era exatamente
igual à primeira. Aproximei-me mais, apenas para me certificar. Lá estavam as barras e podia ver-
se a terra logo por baixo delas, solo calcado, sem uma única erva. Esta bruxa estava morta, mas
ainda era perigosa. Era a tal que fora enterrada de cabeça para baixo. Isso significava que as solas
dos pés estavam em algum lugar mesmo por debaixo do solo.
Quando olhei para a sepultura, pareceu-me ver algo mexer-se. Foi uma espécie de
contração; provavelmente, apenas fruto da minha imaginação, ou talvez algum animal pequeno
— um rato, um musaranho ou assim. Avancei rapidamente. E se tivesse sido um dedo do pé?
Mais três passos levaram-me ao local que procurava — não havia qualquer dúvida. Mais
uma vez, tinha uma cercadura de pedras com treze barras. No entanto, apresentava três
diferenças. Em primeiro lugar, a zona por debaixo das barras era um quadrado em vez de um
losango. Em segundo lugar, era maior, provavelmente cerca de quatro passos por quatro. E em
terceiro, não havia terra calcada por debaixo das barras, apenas um buraco muito negro no solo.
Parei e escutei cuidadosamente. Não houvera muitos ruídos até ao momento, apenas os
tênues sussurros de criaturas notívagas e uma suave brisa. Uma brisa tão ligeira que mal dei por
ela. No entanto, percebi quando cessou. De repente ficou tudo muito sossegado e a mata tornou-
se estranhamente silenciosa.
Sabem, estivera à escuta para tentar ouvir a bruxa e agora sentia que era a mim que ela
escutava.
O silêncio pareceu prolongar-se eternamente, até que, subitamente, percebi uma leve
respiração vinda do poço. De certa forma, aquele som fazia com que parecesse possível mover-
me, de modo que dei mais alguns passos até me encontrar muito próximo da sua beira, com a
ponta da minha bota mesmo a tocar na cercadura de pedra.
Naquele instante, lembrei-me de algo que o Mago me dissera a respeito de Mãe Malkin:
“A maior parte do seu poder escoou-se pela terra, mas ela adoraria deitar as mãos a um
rapaz como você.”
Recuei então um passo — não me afastando demais, mas as palavras do Mago tinham-me
feito pensar. E se saísse uma mão do poço e me agarrasse o tornozelo?
Querendo acabar aquilo rapidamente, chamei baixinho no escuro.
— Mãe Malkin — disse. — Trouxe-lhe uma coisa. É um presente da sua família. Está aí?
Consegue ouvir-me?
Não obtive resposta, mas o ritmo da respiração lá em baixo pareceu acelerar. Então, não
perdendo mais tempo e desesperado por voltar para o calor da casa do Mago, enfiei a mão no
cesto e apalpei debaixo do pano. O meus dedos fecharam-se sobre um dos bolos. Pareceu-me
mole e um bocado pegajoso e úmido. Retirei-o e segurei-o por cima das barras.
— É apenas um bolo — disse-lhe baixinho. — Espero que a faça sentir-se melhor. Trar-
lhe-ei outro amanhã à noite.
Ditas aquelas palavras, larguei o bolo e deixei que ele caísse na escuridão.
Devia ter voltado imediatamente para a cabana mas fiquei mais alguns segundos à escuta.
Não sei o que esperava ouvir, mas foi um erro.
Registrou-se um movimento no poço, como se algo se arrastasse pelo solo. E depois ouvi a
bruxa começar a comer o bolo.
Pensei que alguns dos meus irmãos faziam ruídos desagradáveis à mesa, mas este era muito
pior. Parecia ainda mais repugnante do que quando os nossos porcos grandes e peludos enfiavam
os focinhos no balde da lavagem, uma mistura de fungadelas, resfôlegos e mastigação juntamente
com respiração pesada. Não soube se ela estava ou não a gostar do bolo, mas certamente fazia
bastante barulho a comê-lo.
Naquela noite, tive imensa dificuldade em adormecer. Não pensava senão no poço escuro e
que teria de lá voltar na noite seguinte.
Desci para o desjejum mesmo à tangente e o toucinho defumado estava queimado e o pão
um bocado para o seco e duro. Não conseguia entender — ainda na véspera o trouxera do
padeiro. E não apenas isso: o leite estava azedo. Acaso estaria o demônio zangado comigo? Sabia
o que eu andara a fazer? Estragara o desjejum de propósito como uma espécie de aviso?
O trabalho numa fazenda é duro, e eu estava acostumado a ele. O Mago não me destinara
quaisquer tarefas, por isso não tinha nada que me ocupasse o dia. Fui até à biblioteca, pensando
que provavelmente não se importaria se eu tentasse encontrar algo útil que ler, mas, para minha
decepção, a porta estava trancada.
O que me restava, a não ser ir dar um passeio? Decidi explorar as colinas rochosas,
subindo primeiro Parlick Pike; uma vez no alto, sentei-me no monte de pedras e admirei a vista.
Estava um dia de céu limpo e dali conseguia ver o Condado estender-se por baixo de mim,
com o mar distante de um azul convidativo e cintilante, mais para noroeste. A extensão rochosa
continuava indefinidamente, grandes colinas com nomes como Calder Fell e Stake House Fell —
tantas que parecia ser necessária uma vida inteira para as explorar.
Ali próximo ficava Wolf Fell e pus-me a pensar se haveria realmente lobos na região. Os
lobos podiam ser perigosos e diziam que no Inverno, quando o tempo arrefecia, eles por vezes
caçavam em alcatéias. Bem, estávamos na Primavera, e claro que não vi qualquer sinal deles, mas
isso não significava que não estivessem lá. Fez-me perceber que estar nas colinas rochosas depois
de anoitecer poderia ser bastante assustador.
Não tão assustador, decidi, quanto ter de ir dar outro bolo de comer à mãe Malkin e não
tardou que o Sol começasse a descer em direção ao ocaso e me visse obrigado a regressar a
Chipenden.
Dei comigo mais uma vez a transportar o cesto pela escuridão do jardim. Desta vez, decidi
despachar tudo rapidamente. Sem qualquer perda de tempo, atirei o segundo bolo pegajoso para
o poço negro através das barras.
Só quando já era tarde demais, no preciso instante em que deixou os meus dedos, é que
percebi de algo que me gelou logo o coração.
As barras por cima do poço tinham sido dobradas. A noite anterior estavam perfeitamente
retas, treze barras de ferro paralelas. Agora, as do meio tinham quase largura suficiente para fazer
passar uma cabeça.
Podiam ter sido dobradas por alguém no exterior, acima do solo, mas tinha as minhas
dúvidas. O Mago dissera-me que os jardins e a casa estavam guardados e que ninguém conseguia
entrar. Só não referira como, nem pelo quê, mas palpitava-me que era algum tipo de demônio.
Talvez o mesmo que preparava as refeições.
Por isso, só podia ser a bruxa. Ela devia ter saído de alguma forma pela parte lateral do
poço e começado a trabalhar nas barras. De repente, fez-se luz no meu espírito sobre a verdade
do que estava a acontecer.
Fora tão estúpido! Os bolos fortaleciam-na.
Ouvi-a, lá em baixo na escuridão, começar a comer o segundo bolo, emitindo os mesmos
ruídos horríveis a mastigar, fungar e resfolegar. Abandonei rapidamente as árvores e voltei para a
cabana. Cá para mim, ela nem sequer precisava do terceiro.
Após outra noite insone, tomara uma decisão. Estava resolvido a ir ver Alice, devolver-lhe
o último bolo e explicar-lhe o motivo por que não podia cumprir a minha promessa.
Primeiro precisava encontrá-la. Logo a seguir ao desjejum, fui até a mata onde nos
tínhamos encontrado da primeira vez e atravessei-a até ao fundo. Alice dissera que vivia “acolá”,
mas não havia sinal de quaisquer edifícios, apenas colinas pouco elevadas e vales e mais matas ao
longe.
Pensando que seria mais rápido perguntar, desci à aldeia. Surpreendentemente, andavam
por ali pouquíssimas pessoas, mas, tal como esperara, alguns dos rapazes rondavam a padaria.
Parecia ser o seu local preferido. Talvez gostassem do cheiro. Eu cá gostava. O pão acabado de
assar tem um dos melhores cheiros do mundo.
Não se mostraram muito simpáticos, atendendo a que da última vez que nos tínhamos
encontrado eu dera um bolo e uma maçã a cada um deles. Provavelmente porque agora o rapagão
de olhos miudinhos estava com eles. Mesmo assim, ouviram o que eu tinha a dizer. Não entrei
em pormenores — disse-lhes apenas que precisava de encontrar a garota que tínhamos visto na
orla da mata.
— Eu sei onde ela talvez possa estar — disse o rapagão, com uma expressão muito
carregada —, mas seria uma estupidez ir lá.
— E porque haveria de ser?
— Não ouviu o que ela disse? — perguntou, arqueando as sobrancelhas. — Ela disse que
Lizzie dos Ossos era tia dela.
— Quem é Lizzie dos Ossos?
Entreolharam-se e abanaram as cabeças como se eu fosse maluco. Porque seria que todos
tinham ouvido falar dela menos eu?
— Lizzie e a avó passaram aqui um Inverno inteiro, antes de Gregory lhes tratar da saúde.
O meu pai está sempre a falar delas. Eram só as bruxas mais medonhas que alguma vez houve
nestas paragens. Vivia com elas algo igualmente assustador. Parecia um homem mas era muito
grande, com demasiados dentes para lhe caberem na boca. Foi o que o meu pai me contou. Ele
disse que nessa altura, durante o tal Inverno longo, as pessoas nunca saíam depois de escurecer.
Que grande Mago há de ser, se nunca ouviu falar de Lizzie dos Ossos!
Não me agradou nem um pouco aquela parte. Percebi que fora bem estúpido. Se tivesse
falado ao Mago da minha conversa com Alice, ele teria percebido que Lizzie voltara e haveria
feito algo para o remediar.
Segundo o pai do rapagão, Lizzie dos Ossos vivera numa fazenda cerca de cinco
quilômetros a sueste da casa do Mago. Há anos que estava abandonada e nunca lá ia ninguém.
Por isso era o local mais provável onde se encontrar de momento. Pareceu fazer sentido, para
mim, porque fora nessa direção que Alice apontara.
Nesse momento, saiu da igreja um grupo de pessoas com expressão soturna. Viraram a
esquina numa fila desordenada e subiram a colina em direção à extensão rochosa, o pároco da
aldeia na frente. Vestiam roupas quentes e muitas delas levavam cajados.
— O que vem a ser aquilo? — perguntei.
— Desapareceu uma criança a noite passada — respondeu um dos rapazes, cuspindo para
as pedras. — De três anos. Acham que ela foi até lá acima. Mas, olha, já não é a primeira. Há dois
dias, deram por falta de um bebê numa fazenda para as bandas de Long Ridge. Era demasiado
pequeno para andar, por isso deve ter sido levado. Acham que podem ter sido os lobos. Tem sido
um mau Inverno e isso às vezes os traz até aqui.
As indicações que me deram revelaram-se bastante boas. Sem contar que voltei atrás a
buscar o cesto de Alice, em menos de uma hora avistei a casa de Lizzie.
Naquela altura, com o sol forre, levantei o pano e examinei o último dos três bolos.
Cheirava mal mas o aspecto era ainda pior. Parecia feito de pequenos pedaços de carne, pão e
mais outras coisas que não consegui identificar. Estava úmido e muito pegajoso e quase negro.
Nenhum dos ingredientes fora cozinhado, apenas ligado e comprimido. Reparei então noutra
coisa ainda mais horrível. Havia minúsculas coisinhas brancas a rastejar pelo bolo, que pareciam
ser larvas.
Senti um arrepio, tapei-o com o pano e desci a colina até à fazenda abandonada. As
vedações estavam partidas, faltava metade do telhado do celeiro e não se viam animais.
Porém, houve um pormenor que me deixou mesmo apreensivo. Saía fumaça da chaminé da
casa da fazenda. Parecia estar alguém em casa e comecei a ficar preocupado com a coisa que tinha
dentes demais para lhe caberem na boca.
Estava contando com o quê? Ia ser difícil. Como conseguiria falar com Alice sem ser visto
pelos outros membros da família dela?
Quando parei na vertente, tentando decidir o que fazer em seguida, fiquei com o problema
resolvido. Saiu uma figura esbelta e escura pela porta de trás da casa da fazenda e começou a
subir a colina mesmo na minha direção. Era Alice — mas como soubera que eu estava ali? Havia
árvores entre a casa da fazenda e o lugar onde me encontrava, mas nenhuma janela virada naquela
direção.
Mesmo assim, ela não subia a colina por acaso. Veio direita a mim e estacou a cerca de
cinco passos.
— O que quer? — perguntou rispidamente. — Só pode ser estúpido, para vir até aqui.
Felizmente para você que estão todos dormindo lá dentro.
— Não posso fazer o que me pediu — disse-lhe, estendendo o cesto.
Cruzou os braços e carregou o cenho.
— Porque não? — quis saber. — Prometeu-me, não foi?
— Não me disse o que iria acontecer — referi. — Ela comeu já dois bolos e está ficando
mais forte. Já dobrou as barras por cima do poço. Mais um bolo e ficará livre e acho que você
sabe. Não foi essa a idéia desde o início? — acusei, começando a ficar furioso. — Enganou-me,
por isso a promessa já não conta.
Ela deu um passo na minha direção, mas agora a sua própria raiva fora substituída por algo
mais. Subitamente, pareceu assustada.
— A idéia não foi minha. Eles obrigaram-me a fazê-lo — disse, gesticulando na direção da
casa da fazenda. — Se não cumprir o que prometeu, estaremos ambos em maus lençóis. Vá lá,
dê-lhe o terceiro bolo. Que mal pode fazer? A Mãe Malkin já teve o castigo que merecia. Está na
hora de libertá-la. Vá lá, dê-lhe o bolo e ela irá embora esta noite e nunca mais te incomodará.
— Acho que Mr. Gregory deve ter tido um motivo muito forte para a meter naquele poço
— afirmei lentamente. — Sou apenas o novo aprendiz dele, por isso, como posso saber o que é
melhor? Quando ele voltar vou contar-lhe tudo o que aconteceu.
Alice esboçou um pequeno sorriso — o tipo de sorriso de alguém que sabe algo que nós
desconhecemos.
— Ele não vai voltar — disse. — Lizzie pensou em tudo. Tem bons amigos perto de
Pendle. Fariam qualquer coisa por ela. Enganaram o Velho Gregory. Quando estiver perto, vai
ter o que merece. Nesta altura provavelmente já estará morto e enterrado. Espera para ver se não
tenho razão. Em breve nem sequer estará seguro lá em cima, na casa dele. Uma noite virão
buscar-te. A menos, claro, que ajude agora. Nesse caso, talvez te deixem em paz.
Mal ela disse aquelas palavras, virei costas e subi a colina, deixando-a ali especada. Acho
que ela me chamou diversas vezes, mas não ouvi. O que ela dissera sobre o Mago dava voltas
dentro da minha cabeça.
Só mais tarde percebi que levava ainda o cesto, de maneira que o atirei junto com o último
bolo para um rio; depois, de volta à cabana do Mago, não levei muito tempo a perceber o que
acontecera e a decidir o que fazer de seguida.
Fora tudo planejado desde o começo. Tinham arranjado um ardil para afastar o Mago dali,
sabendo que, na qualidade de seu novo aprendiz, eu seria ainda inexperiente e fácil de enganar.
Não me parecia que o Mago fosse tão fácil assim de matar, senão não teria sobrevivido
tantos anos, mas não podia contar que ele chegasse a tempo de me ajudar. Tinha de impedir Mãe
Malkin de sair do poço.
Necessitava desesperadamente de ajuda e pensei descer à aldeia, mas sabia ter à mão um
tipo de ajuda mais especial. Então entrei na cozinha e sentei-me à mesa.
Fiquei à espera de levar um bofetão a qualquer momento, por isso falei rapidamente.
Expliquei tudo o que sucedera, sem omitir nada. Disse depois que a culpa era minha e agradecia
que me dessem uma ajuda.
Não sei o que esperava. Não me senti ridículo a falar sozinho para o ar porque estava
muito transtornado e assustado, mas à medida que o silêncio se prolongava, fui percebendo que
estivera a perder o meu tempo. Porque haveria o demônio de me ajudar? Tanto quanto sabia,
estava encarcerado, preso à casa e ao jardim pelo Mago. Podia ser apenas um escravo,
desesperado por se libertar; podia até estar satisfeito por me ver em apuros.
No momento em que me preparava para desistir e sair da cozinha, lembrei-me de algo que
o meu pai costumava dizer antes de partirmos para o mercado local: “Toda a gente tem o seu
preço. É tudo uma questão de fazer uma proposta que agrade ao outro mas tão te prejudique em
demasia.”
Então fiz uma proposta ao demônio...
— Se me ajudar neste momento, não o esquecerei — disse-lhe. — Quando me tornar o
próximo Mago, dar-te-ei folga todos os Domingos. Nesse dia, prepararei as minhas próprias
refeições para que possa descansar e fazer o que lhe agradar.
De repente, senti algo roçar nas minhas pernas debaixo da mesa. Ouviu-se também um
barulho, um ligeiro ronronar, e saiu de lá um grande gato cor de camarão que avançou na direção
da porta.
Devia ter estado o tempo todo debaixo da mesa — era o que me dizia o senso comum.
Todavia, tinha a certeza de que não era verdade, por isso segui o gato pelo corredor e depois
escadas acima, onde se deteve do lado de fora da porra trancada da biblioteca. A seguir esfregou
nela o dorso, como costumam fazer os gatos nas pernas das mesas. A porta abriu-se lentamente,
mostrando mais livros do que alguém alguma vez conseguiria ler numa vida inteira, dispostos
ordenadamente em filas de prateleiras paralelas. Entrei lá dentro, perguntando-me por onde
começar. E quando me virei novamente, o gato cor de camarão desaparecera.
Cada livro tinha o título bem visível na capa. Havia muitos escritos em latim e uns quantos
em grego. Não se via pó nem teias de aranha. A biblioteca estava tão limpa e bem cuidada quanto
a cozinha.
Percorri a primeira fila até algo me despertar a atenção. Perto da janela, havia três
prateleiras muito compridas cheias de livros de notas encadernados, tal como aquele que o Mago
me dera, mas a prateleira de cima tinha livros maiores com datas nas capas. Cada um parecia
abranger um período de cinco anos, de maneira que peguei no que estava ao fundo da prateleira e
abri-o cuidadosamente.
Reconheci a caligrafia do Mago. Folheando-o, percebi que era uma espécie de diário.
Continha o registro de cada trabalho que fizera e da quantia que lhe fora paga. Mais importante,
explicava o que fizera a cada demônio, fantasma e bruxa.
Voltei a colocar o livro na prateleira e dei uma vista de olhos às outras lombadas. Os
diários vinham quase até à atualidade e recuavam centenas de anos. Ou o Mago era muito mais
velho do que aparentava, ou os primeiros livros tinham sido escritos por outros Magos que
haviam vivido há séculos. De repente, perguntei-me se, mesmo que Alice estivesse certa e o Mago
não voltasse, existia a possibilidade de eu conseguir aprender tudo o que era necessário
estudando apenas aqueles diários. Melhor ainda, em algum lugar naqueles milhares e milhares de
páginas poderia estar a informação que me ajudaria naquele momento.
Mas como poderia encontrá-la? Bem, poderia levar tempo, mas a bruxa estivera no poço
quase treze anos. Tinha de haver uma descrição da maneira como o Mago a pusera lá. Eis senão
quando, numa prateleira inferior, vi algo muito melhor.
Os livros ali eram ainda maiores, cada um dedicado a um tema em particular. Um
intitulava-se Dragões e Serpentes. Estavam arrumados por ordem alfabética, pelo que não demorei
muito a encontrar exatamente aquilo que procurava.
Bruxas.
Abri-o com mãos trêmulas e verifiquei que estava dividido nas quatro secções previsíveis...
As Malévolas, As Benévolas, As Falsamente Acusadas e As Desconhecedoras.
Passei rapidamente à primeira secção. Estava tudo escrito na caligrafia legível do Mago e,
mais uma vez, cuidadosamente organizado por ordem alfabética. Numa questão de segundos,
encontrei uma página intitulada: Mãe Malkin.
Era pior do que eu esperara. Mãe Malkin era quase tão má quanto se podia imaginar.
Vivera em muitos lugares e em cada zona onde permanecera algum tempo acontecera algo
terrível, tendo a pior coisa de todas ocorrido num pântano a oeste do Condado.
Vivera ali numa fazenda, proporcionando guarida às mulheres jovens à espera de bebê mas
que não tinham maridos a apoiá-las. Era daí que vinha a denominação “Mãe”. Isto continuara
durante vários anos, mas algumas das mulheres jovens nunca mais haviam sido vistas.
Estivera um filho seu a viver ali com ela, um homem novo, de força incrível, chamado
Tusk. Tinha dentes grandes e assustava tanto as pessoas que nunca ninguém se aproximava do
lugar. Mas a população local acabara por se revoltar e Mãe Malkin fora obrigada a fugir para
Pendle. Após a sua partida, tinham sido encontradas as primeiras sepulturas. Havia um campo
cheio de ossos e carne putrefata, principalmente os restos mortais das crianças que ela assassinara
para alimentar a sua necessidade de sangue. Alguns dos corpos pertenciam àquelas mulheres; em
cada caso, o corpo fora esmagado, as costelas partidas ou estaladas.
Os rapazes da aldeia tinham falado de uma coisa com demasiados dentes para lhe caberem
na boca. Poderia tratar-se do tal Tusk, filho de Mãe Malkin? Um filho que provavelmente atacara
aquelas mulheres, tirando-lhes brutalmente a vida?
Fiquei com as mãos a tremer de tal forma que mal consegui manter o livro suficientemente
firme para o ler. Parecia que algumas bruxas recorriam à “magia dos ossos”. Eram necromantes
que obtinham o seu poder invocando os mortos. Mas Mãe Malkin era muito pior. Mãe Malkin
usava a “magia do sangue”. Obtinha o seu poder usando sangue humano e gostava
particularmente do sangue de crianças.
Pensei nos bolos pretos e pegajosos e senti um arrepio. Desaparecera uma criança em Long
Ridge. Uma criança jovem demais para andar. Teria sido raptada por Lizzie dos Ossos? Teria o
seu sangue sido usado para fazer aqueles bolos? E a segunda criança, aquela de que os aldeãos
andavam à procura? E se Lizzie dos Ossos a tivesse raptado também, para que, quando Mãe
Malkin fugisse do poço, pudesse usar logo o sangue dela para efetuar a sua magia? A criança
podia estar neste momento na casa de Lizzie!
Fiz um esforço para continuar a ler.
Há treze anos, no princípio do Inverno, Mãe Malkin viera viver em Chipenden, trazendo
consigo a neta, Lizzie dos Ossos. Quando regressara da sua casa de Inverno em Anglezarke, o
Mago não perdera tempo a tratar dela. Depois de expulsar Lizzie dos Ossos, prendera Mãe
Malkin com uma corrente de prata e levara-a para o poço no seu jardim.
O Mago parecia estar a argumentar consigo próprio no relato. Via-se que não lhe agradava
enterrá-la viva, mas explicava por que motivo tivera de o fazer. Acreditava que seria por demais
perigoso matá-la: uma vez morta, teria poderes para voltar e se tornaria ainda mais forte e
perigosa do que antes.
A questão era: poderia ela ainda escapar? Só com um bolo conseguira dobrar as barras.
Apesar de não ter comido o terceiro, dois seriam talvez suficientes. Podia ainda sair do poço à
meia-noite. Como agir?
Se era possível prender uma bruxa com uma corrente de prata, então talvez valesse a pena
tentar passá-la por cima das barras dobradas, para impedi-la de sair do poço. O problema era que
a corrente de prata estava no saco do Mago, que o acompanhava sempre para todo o lado.
Vi outra coisa quando saí da biblioteca. Estava ao lado da porta, por isso não reparara ao
entrar. Era uma longa lista de nomes em papel amarelo, exatamente trinta e todos escritos pelo
punho do próprio Mago. O meu nome, Thomas J. Ward era mesmo o último, e logo acima dele
estava o nome William Bradley, que fora riscado com um traço horizontal; ao lado viam-se as
letras DEP.
Fiquei então completamente gelado, porque sabia que queriam dizer Descansa em Paz e que
Billy Bradley morrera. Mais de dois terços dos nomes no papel tinham sido riscados; daqueles,
outros nove tinham morrido.
Calculei que uma parte deles tivesse sido simplesmente riscada porque não haviam
conseguido alcançar o nível de aprendizes, talvez nem chegando sequer ao final do primeiro mês.
Aqueles que tinham morrido eram mais preocupantes. Perguntei-me o que sucedera a Billy
Bradley e lembrei-me do que Alice dissera: “Não queira ter o mesmo fim que o último aprendiz
do Velho Gregory.”
Como é que Alice sabia o que acontecera a Billy? Provavelmente seria do conhecimento de
toda a gente na localidade, ao passo que eu era um forasteiro. Ou tivera a família dela algo a ver
com isso? Esperava que não, mas só serviu para aumentar as minhas preocupações.
Não perdendo mais tempo, desci à aldeia. O açougueiro parecia ter algum contato com o
Mago. De que outra forma arranjava o saco onde colocar a carne? Decidi então falar-lhe das
minhas desconfianças para tentar persuadi-lo a ir procurar a criança desaparecida na casa de
Lizzie.
A tarde ia já no fim quando cheguei à loja dele, e esta estava fechada. Bati às portas de
cinco cabanas antes de alguém me responder. Confirmaram o que eu já suspeitava: o açougueiro
partira com os outros homens para procurar nas colinas rochosas. Não voltariam senão na tarde
do dia seguinte. Parecia que depois de andarem à procura nas colinas da região, iam atravessar o
vale até à aldeia no sopé de Long Ridge, onde desaparecera a primeira criança. Ali efetuariam
uma busca mais exaustiva e passariam a noite.
Tinha de encarar a realidade. Estava entregue a mim próprio.
Pouco depois, triste e receoso, subia o caminho em direção à casa do Mago. Sabia que se
Mãe Malkin saísse da sepultura, então a criança estaria morta antes do amanhecer.
Sabia igualmente que era o único que poderia tentar fazer algo para impedi-lo.
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