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Lua Azul - blog de lua azul

Viajando pelo mundo dos livros... "O Aprendiz do Mago" de Joseph Delaney - Capítulo 5

por lua azul

Bem, que jardins estes que por aqui nos aparecem pelo quinto capítulo da primeira obra que selecionei para vos disponibilizar aqui pelo blogue! Uma casa que aparentemente tinha quase tudo de normal logo no início e afinal... Só mesmo lendo para poderem comprovar. O capítulo propriamente dito fica, como sempre, nas linhas que se seguem a esta minha breve introdução, agora é mesmo só ler e esperar talvez pelo dia de amanhã para podermos ver o que é que virá por aí a seguir!

CAPÍTULO 5
DEMÔNIOS E BRUXAS

Dirigíamo-nos para aquilo que o Mago chamava a sua “Casa de Verão”.
Enquanto caminhávamos, as últimas nuvens marinais dissiparam-se e percebi subitamente
que o sol estava diferente. Mesmo no Condado, por vezes o sol brilha no Inverno, o que é bom
porque normalmente isso significa que não vai chover; mas há uma altura em cada novo ano em
que percebemos pela primeira vez o seu calor. É como o regresso de um velho amigo.
O Mago devia estar pensando quase exatamente o mesmo porque de repente estacou,
olhou-me de lado e brindou-me com um dos seus raros sorrisos.
— Este é o primeiro dia de Primavera, rapaz — disse —, por isso vamos para Chipenden.
Pareceu-me uma afirmação um tanto estranha. Ele ia sempre para Chipenden no primeiro
dia de Primavera, e, se sim, porquê? Resolvi perguntar-lhe.
— Instalações de Verão. Passamos o Inverno à beira de Anglezarke Moor e desfrutamos
do Verão em Chipenden.
— Nunca ouvi falar de Anglezarke. Onde fica? — indaguei.
— No extremo sul do Condado, rapaz. É o lugar onde nasci. Vivemos lá até o meu pai se
mudar para Horshaw.
Bem, pelo menos ouvira falar de Chipenden, o que me deixou animado. Ocorreu-me que,
na qualidade de aprendiz do Mago, teria de viajar muito e precisava de aprender a orientar-me.
Sem mais delongas, mudamos de rumo, encaminhando-nos para nordeste, na direção das
colinas distantes. Não fiz mais perguntas mas, naquela noite, quando nos abrigamos novamente
num celeiro frio e a ceia se resumiu a mais algumas dentadas de queijo amarelo, o meu estômago
começar a achar que me tinham cortado a garganta. Nunca sentira tanta fome.
Perguntei-me onde iríamos ficar em Chipenden e se arranjaríamos ali algo decente para
comer. Não conhecia ninguém que lá tivesse estado, mas ouvira dizer que era um lugar isolado e
hostil em algum lugar nas Fells {3} — as distantes colinas de tom cinzento e púrpura que apenas
se vislumbravam da fazenda do meu pai. Sempre me tinham feito lembrar enormes animais
adormecidos, mas provavelmente a culpa era de um dos meus tios, que costumava me contar
semelhantes histórias. À noite, dizia ele, punham-se em movimento, e às vezes, ao raiar do dia,
desapareciam aldeias inteiras da face da terra, reduzidas a pó sob o peso deles.
Na manhã seguinte, escuras nuvens cinzentas encobriam mais uma vez o sol e tudo
indicava que íamos ter de esperar algum tempo pelo segundo dia de Primavera. Estava também a
levantar-se vento, sacudindo as nossas roupas à medida que começávamos a subir e dispersando
as aves por todo o céu, as nuvens precipitando-se para leste a fim de esconderem os cumes das
Fells.
O nosso ritmo era lento e dei graças por isso, visto ter uma bolha horrível em cada
calcanhar. Assim, estávamos quase no final do dia quando nos aproximamos de Chipenden, a luz
começando já a diminuir.
Nessa altura, apesar de o vento soprar ainda com intensidade, o céu limpara e as colinas
púrpura recortavam a linha do horizonte. O Mago não falara muito durante a viagem, mas agora
parecia quase excitado, ao proferir um por um os nomes delas. Havia designações como Parlick
Pike {4}, a que ficava mais próxima de Chipenden; ou então — umas visíveis, outras escondidas e
distantes — Mellor Knoll {5}, Saddle Fell e Wolf {6} Fell.

Quando inquiri o meu mestre sobre se existiam alguns lobos em Wolf Fell ele sorriu
sinistramente. — As coisas mudam rapidamente aqui, rapaz — disse ele —, e temos de estar
sempre atentos.
Quando se avistaram os primeiros relhados da aldeia, o Mago apontou para um caminho
estreito que partia da estrada, subindo a serpentear junto à margem de um pequeno ribeiro
gorgolejante.
— A minha casa fica nesta direção — anunciou ele. — É um percurso ligeiramente mais
longo, mas significa que escusamos de atravessar a aldeia. Gosto de manter uma certa distância da
população que ali vive. E ela também prefere que assim seja.
Lembrei-me do que Jack dissera sobre o Mago e caiu-me o coração aos pés. Era uma vida
solitária. Acabava-se a trabalhar sozinho.
Havia algumas árvores atrofiadas em cada margem, agarrando-se à vertente da colina por
causa da força do vento, mas depois, subitamente, mesmo lá à frente, avistou-se uma mata de
sicômoros e freixos. Quando entramos nela, o vento reduziu-se a pouco mais do que um suspiro
distante. Não passava de um grande maciço de árvores, talvez algumas centenas, que
proporcionava abrigo do vento fustigante, mas, após alguns momentos, percebi que era mais do
que isso.
Já antes reparara, de tempos em tempos, que algumas árvores eram ruidosas, com os ramos
sempre a chiar ou as folhas a balançar, enquanto outras quase não emitiam qualquer som. Ouvia
lá em cima o sopro distante do vento, mas dentro da mata os únicos sons audíveis eram os das
nossas botas. Tudo o mais estava sossegado, toda uma mata cheia de árvores tão silenciosas que
até senti um arrepio subir e descer-me pela espinha. Cheguei quase a pensar que estivessem a
ouvir-nos.
Chegamos então a uma clareira, e mesmo lá à frente vislumbrei uma casa. Encontrava-se
rodeada por uma sebe alta de espinheiro-alvar, pelo que só se viam o piso superior e o telhado.
Erguia-se uma coluna de fumaça branca de uma chaminé. Seguia direto para o ar, impassível, até
que, mesmo acima das árvores, o vento o empurrava para leste.
A casa e o jardim, reparei então, assentavam numa depressão na vertente da colina. Era
como se um gigante amável tivesse vindo retirar o solo com a mão.
Segui o Mago ao longo da sebe até chegarmos a um portão de metal. Este era pequeno, não
ultrapassava a minha cintura, e fora pintado de um verde-vivo, um trabalho que parecia
concluído tão recentemente que me perguntei se a tinta secara devidamente e se o Mago ficaria
com a mão suja dela, uma vez que a estendia já para a tranqueta.
Subitamente, sucedeu algo que me fez suster a respiração. Antes de o Mago tocar na tranca,
ela levantou-se sozinha e o portão abriu-se lentamente, como se empurrado por uma mão
invisível.
— Obrigado — ouvi o Mago dizer.
A porta da rua não se moveu sozinha porque primeiro foi preciso abri-la com a enorme
chave que o Mago retirou do bolso. Parecia idêntica à que usara para abrir a porta da casa em
Watery Lane.
— É a mesma chave que usou em Horshaw? — inquiri.
— É, rapaz — disse, olhando-me do alto enquanto abria a porta. — O meu irmão, o
serralheiro, deu-me esta. Abre a maior parte das fechaduras desde que não sejam demasiado
complicadas. Dá muito jeito, na nossa atividade.
A porta deslizou com uma sonora chiadeira e um gemido profundo e segui o Mago até um
pequeno átrio obscuro. Havia umas escadas íngremes à direita e um corredor estreito e lajeado, à

esquerda.
— Coloque tudo no fundo das escadas — disse o Mago. — Vá lá, rapaz. Deixe de moleza.
Não há tempo a perder. Gosto da comida a escaldar!
Largando então o saco dele e a minha trouxa no lugar que me indicara, segui-o pelo
corredor em direção à cozinha e ao apetitoso cheiro de comida quente.
Quando lá chegamos, não fiquei decepcionado. Fez-me lembrar a cozinha da minha mãe.
Cresciam ervas aromáticas em grandes vasos no parapeito da janela ampla e o sol poente
salpicava a divisão com as sombras das folhas. No canto ao fundo ardia uma enorme fogueira,
enchendo a cozinha de calor e, mesmo no centro do chão lajeado, havia uma grande mesa de
carvalho. Encontravam-se em cima dela dois pratos vazios enormes e, no seu centro, cinco
travessas com comida até em cima, ao lado de um jarro cheio até à borda de molho quente
fumegante.
— Sente-se e coma à vontade, rapaz — convidou o Mago, e não precisei que me dissesse
uma segunda vez.
Servi-me de fatias grandes de frango e carne de vaca, quase não deixando espaço suficiente
no prato para o monte de batatas assadas e legumes que se seguiu. Por fim, reguei tudo com um
molho tão saboroso que só a minha mãe teria feito melhor.
Perguntei-me onde estava a cozinheira e como soubera que íamos chegar naquele exato
momento para ter a comida quente a postos na mesa. Todo eu era perguntas, mas estava também
cansado, pelo que guardei toda a minha energia para a comida. Quando engoli finalmente a
última bocada, o Mago limpara já o seu prato.
— Gostou? — quis saber.
Acenei com a cabeça, quase cheio demais para falar. Senti-me ensonado.
— Depois de uma dieta de queijo, é sempre bom chegar em casa e tomar uma refeição
quente — disse ele. — Comemos bem, aqui. Compensa as vezes em que estamos a trabalhar.
Voltei a acenar e comecei a bocejar.
— Há muito que fazer amanhã, por isso vá para a cama. O seu quarto é o da porta verde,
no alto do primeiro lance de escadas — informou-me o Mago. — Durma bem, mas não saia do
seu quarto e não ande a passear pela casa durante a noite. Ouvirá tocar uma sineta quando o
desjejum estiver pronto. Desça assim que a ouvir — quando preparam comida boa, podem ficar
aborrecidos se a deixar esfriar. Mas também não desça muito cedo, pois isso seria igualmente
mau.
Anuí, agradeci-lhe a refeição e percorri o corredor em direção à parte da frente da casa. O
saco do Mago e a minha trouxa tinham desaparecido. Curioso sobre quem os teria levado, subi as
escadas para me ir deitar.
O meu quarto novo acabou por se revelar muito maior do que o de minha casa, que
durante um curto período tivera de partilhar com dois dos meus irmãos. Neste novo quarto
cabiam uma cama, uma pequena mesa com uma vela, uma cadeira e uma cômoda, mas havia
também muito espaço para caminhar. E ali, em cima da cômoda, a minha trouxa de pertences
aguardava-me.
Mesmo em frente da porta ficava uma janela de guilhotina grande, dividida em oito
vidraças tão espessas e irregulares que apenas conseguia ver espirais e volutas de cor lá fora.
Parecia que a janela não era aberta há anos. A cama fora colocada ao longo da parede por debaixo
dela, pelo que descalcei as botas, ajoelhei-me na coberta e tentei abrir a janela. Apesar de estar um
pouco enperrada, acabou por não ser tão difícil quanto supusera. Servi-me do cordão para
levantar a metade inferior da janela com uma série de puxões, apenas o suficiente para pôr a

cabeça de fora e apreciar melhor o que me rodeava.
Consegui ver um amplo relvado por baixo de mim, dividido ao meio por um caminho de
pedras brancas que desaparecia nas árvores. Por cima da linha das árvores, à direita, ficavam as
extensões rochosas, a mais próxima tão perto que quase me pareceu possível estender a mão e
tocar-lhe. Inspirei uma profunda lufada de ar fresco e senti o cheiro da relva antes de meter a
cabeça para dentro e desatar a minha pequena trouxa de pertences. Couberam facilmente na
gaveta de cima da cômoda. Quando a ia fechar, reparei subitamente nas inscrições na parede do
fundo, nas sombras defronte dos pés da cama.
Estava coberta de nomes, todos rabiscados a tinta preta no estuque branco. Alguns nomes
eram maiores do que outros, como se quem os escrevera se tivesse em alta conta. Muitos haviam
sumido com o tempo e perguntei-me se seriam os nomes dos outros aprendizes que tinham
dormido neste mesmo quarto. Deveria acrescentar o meu próprio nome ou esperar até ao final
do primeiro mês, altura em que talvez fosse aceite com caráter permanente? Não tinha caneta
nem tinta, por isso seria algo a ponderar mais tarde, mas examinei a parede com mais atenção
para determinar qual o nome mais recente.
Decidi que era BILLY BRADLEY — parecia-me o mais nítido e fora comprimido num
pequeno espaço à medida que a parede ia sendo preenchida. Durante alguns momentos, ansiei
saber o que faria Billy agora, mas estava cansado e pronto para dormir.
Os lençóis eram lavados e a cama convidativa, e assim, sem perder mais tempo, despi-me e,
no preciso instante em que a minha cabeça assentou na almofada, adormeci.
Quando voltei a abrir os olhos, o sol entrava pela janela. Estivera a sonhar e fora acordado
de repente por um ruído. Pensei que provavelmente seria a sineta do desjejum.
Fiquei então preocupado. Teria sido realmente a sineta a chamar-me para o desjejum ou
um sino no meu sonho? Como podia ter a certeza? O que deveria fazer? Provavelmente teria
problemas com a cozinheira, se descesse cedo ou tarde. Então, decidindo que provavelmente
ouvira a sineta, vesti-me e desci imediatamente.
No caminho, ouvi um barulho de tachos e panelas vindo da cozinha, mas, assim que abri a
porra, fez-se um silêncio de morte.
Cometi então um erro. Devia ter voltado logo para cima, porque era óbvio que o desjejum
não estava pronto. Tinham sido levantados os pratos e travessas da ceia da véspera mas a mesa
estava ainda vazia e a lareira cheia de cinzas frias. Na realidade, a cozinha estava gelada e, pior do
que isso, parecia arrefecer mais a cada segundo.
O meu erro foi dar um passo na direção da mesa. Assim que o fiz, ouvi algo emitir um
som mesmo atrás de mim. Foi um som irado. Não havia a menor dúvida. Um nítido silvo de
raiva muito próximo da minha orelha esquerda. Tão próximo que senti o seu sopro.
O Mago avisara-me para que não descesse cedo e senti subitamente que corria verdadeiro
perigo.
Mal aquele pensamento me ocorreu, algo me atingiu com força na nuca; cambaleei na
direção da porta, por pouco não perdendo o equilíbrio e estatelando-me de comprido.
Não precisei de segundo aviso. Saí dali correndo e subi as escadas. Depois, a meio, fiquei
estático. Encontrava-se um tanto no alto. Alguém alto e ameaçador, recortado na luz da porta do
meu quarto.
Estaquei, sem saber para que lado ir, até ser tranqüilizado por uma voz familiar. Era o
Mago.
Era a primeira vez que o via sem a comprida capa preta. Vestia uma túnica negra e calças
cinzentas e pude ver que, apesar de ser um homem alto com ombros largos, o resto do seu corpo

era magro, provavelmente porque havia dias em que apenas conseguia dar umas mordiscadas no
queijo. Fazia lembrar os melhores criados de lavoura quando ficam mais velhos. Alguns, claro,
engordam apenas, mas a maioria — como aqueles que o meu pai contrata para a ceifa, agora que
quase todos os meus irmãos saíram de casa — são magros, com corpos duros e secos. “Magreza é
destreza”, diz constantemente o meu pai e agora, ao olhar para o Mago, via por que razão ele
conseguia caminhar a um ritmo tão rápido e durante tanto tempo sem descansar
— Avisei-o para não descer cedo — disse-me tranqüilamente. — Deve ter levado uns
bofetões. Que te sirvam de lição, rapaz. Para a próxima é capaz de ser bem pior.
— Pareceu-me ouvir a sineta — respondi. — Mas deve ter sido um sino no meu sonho.
O Mago riu baixinho.
— Essa é uma das primeiras e mais importantes lições que um principiante tem de
aprender — disse ele —: a diferença entre estar acordado e a sonhar. Alguns nunca chegam a
aprender.
Abanou a cabeça, deu um passo na minha direção e bateu-me delicadamente no ombro.
— Venha, vou mostrar-lhe o jardim. Tem de começar por algum lado e sempre passa o
tempo até o desjejum estar pronto.

* * *

Quando o Mago me levou até lá fora, pela porta traseira da casa, vi que o jardim era muito
grande, bem maior do que parecera do lado de fora da sebe.
Encaminhamo-nos para leste, semicerrando os olhos por causa do sol do princípio da
manhã, até chegarmos a um amplo relvado. No lusco-fusco da véspera, parecera-me que o jardim
estava completamente rodeado pela sebe, mas percebia agora o meu engano. Havia intervalos
nela, e mesmo por cima ficava a mata. O caminho de pedras brancas dividia o relvado e
desaparecia nas árvores.
— Na realidade, existe mais de um jardim — disse o Mago. — Melhor dizendo, três,
alcançando-se cada um deles através de um caminho como este. Vamos ver primeiro o jardim
oriental. É bastante seguro quando há sol, mas nunca percorra este caminho depois de escurecer.
Bem, a menos que tenha uma razão muito forte. Mas nunca se estiver sozinho.
Segui o Mago, cheio de nervosismo, em direção às árvores.
A erva era mais alta no extremo do jardim e estava salpicada de campainhas. Gosto das
campainhas porque florescem na Primavera e me lembram sempre que os dias longos e quentes
de Verão não tardam, mas naquele momento mal as olhei uma segunda vez. O sol da manhã
estava escondido pelas árvores e de repente o ar ficou muito mais fresco. Fez-me lembrar a visita
à cozinha. Havia algo de estranho e perigoso naquela parte da mata e parecia fazer cada vez mais
frio, à medida que avançávamos para as árvores.
Havia ninhos de gralhas lá no alto, por cima de nós, e os gritos desagradáveis e zangados
das aves ainda me causavam mais arrepios do que o frio. Eram quase tão musicais quanto o meu
pai, que começava a cantar assim que terminávamos a ordenha. Sempre que o leite azedava, a
minha mãe atribuía-lhe as culpas.
O Mago parou e apontou para o solo cerca de cinco passos mais à frente.
— O que é aquilo? — inquiriu, a sua voz pouco mais do que um murmúrio.
A erva fora limpa e no centro do grande pedaço de terra estava uma pedra tumular. Era
vertical, mas ligeiramente inclinada para a esquerda. No chão diante dela, um metro e oitenta de
solo estava cercado de pedras mais pequenas, o que era invulgar. Mas havia algo ainda mais

estranho: por cima do pedaço de terra, e presas às pedras exteriores por pernos, encontravam-se
treze barras de ferro grossas.
Contei-as duas vezes apenas para me certificar.
— Então, rapaz, fiz-lhe uma pergunta. O que se passa?
A minha boca estava tão seca que mal conseguia falar, mas balbuciei três palavras: — É
uma sepultura...
— Muito bem, rapaz. Percebeu de primeira. Notou algo de invulgar? — perguntou ele.
Nesta altura não consegui de todo falar. Limitei-me a acenar com a cabeça.
Ele sorriu e bateu-me no ombro.
— Não há nada a temer. É apenas uma bruxa morta e bastante fraca na sua arte.
Enterraram-na em solo profano do lado de fora de um cemitério, a não muitos quilômetros
daqui. Mas ela insistia constantemente em vir à superfície. Dei-lhe uma boa reprimenda mas ela
não quis ouvir, por isso tive de trazê-la para cá. Faz com que as pessoas se sintam melhor. Dessa
forma, podem prosseguir as suas vidas em paz. Nem querem pensar em coisas como esta. É a
nossa função.
Acenei novamente e percebi de repente de que não respirava, por isso, enchi bem os
pulmões de ar. O coração batia-me desalmadamente no peito, ameaçando rebentar a qualquer
instante, e eu tremia da cabeça aos pés.
— Não, ela agora incomoda pouco — prosseguiu o Mago. — Às vezes, na Lua cheia,
consegue-se ouvi-la a agitar-se, mas não tem força para vir à superfície e as barras de ferro
impedi-la-iam na mesma. Mas há coisas piores lá mais adiante, nas árvores — disse ele, apontando
com o seu dedo ossudo para leste. — Dá cerca de vinte passos e chegará ao local.
Pior? O que podia ser pior? Fiquei intrigado, mas sabia que ele faria questão em me contar.
— Há duas outras bruxas. Uma está morta e a outra viva. A morta encontra-se enterrada
verticalmente, de cabeça para baixo, mas mesmo assim, uma ou duas vezes por ano temos de
endireitar as barras por cima da sua sepultura. Mantenha-se bem afastado do local, depois de
escurecer.
— Porque foi enterrada de cabeça para baixo? — quis saber.
— Eis uma boa pergunta, rapaz — observou o Mago. — Sabe, o espírito de uma bruxa
morta é o que chamamos normalmente “preso aos ossos”. Encontra-se retido dentro dos ossos
dela e, por vezes, elas nem sequer sabem que morreram. Primeiro, experimentamos colocá-las de
cabeça para cima, e isso é suficiente a maioria das vezes. Todas as bruxas são diferentes, mas há
algumas que são realmente teimosas.
Apesar de presa aos ossos, uma bruxa como esta esforça-se ao máximo por voltar ao
mundo. É como se quisesse voltar a nascer, de maneira que temos de lhe criar dificuldades e
enterrá-la ao contrário. Não é fácil sair pelos pés. Às vezes, os bebês humanos têm o mesmo
problema. Mas ela continua a ser perigosa, por isso mantenha-se bem longe.
“Certifique-se de que se mantenha afastado da que está viva. Seria mais perigosa morta do
que viva, porque uma bruxa poderosa como aquela não teria dificuldade nenhuma em voltar ao
mundo. Por esse motivo a mantemos num poço. O nome dela é Mãe Malkin e fala sozinha. Bem,
na verdade, é mais um murmúrio. Ela é tão má quanto se pode ser, mas está no poço há muito
tempo e a maior parte do seu poder escoou-se para a terra. Adoraria deitar as mãos em um rapaz
como você. Por isso, mantenha-se bem distante. Prometa-me agora que não vai se aproximar.
Quero ouvir-te dizê-lo...
— Prometo não me aproximar — murmurei, sentindo-me desconfortável com tudo aquilo.
Parecia uma coisa terrível e cruel manter qualquer criatura viva — mesmo uma bruxa — no solo,

e não estava a ver a minha mãe a gostar muito da idéia.
— Lindo menino. Não queremos que se repitam mais acidentes como o desta manhã. Há
coisas piores do que levar um bofetão. Bem piores.
Acreditei nele, mas não queria ouvir falar do assunto. Só que ele tinha outras coisas para
me mostrar, por isso fui poupado de mais palavras assustadoras. Conduziu-me para fora da mata
e percorremos outro relvado.
— Este é o jardim meridional — anunciou o Mago. — Também não venha cá depois de
escurecer. — O sol foi rapidamente escondido por ramos densos e o ar ficou cada vez mais frio,
pelo que soube estarmos a aproximar-nos de algo mau. Parou a cerca de dez passos de uma pedra
grande que fora colocada deitada no solo, perto das raízes de um carvalho. Cobria uma área um
pouco maior do que um jazigo e, a avaliar pela parte que estava acima do solo, a pedra era
também muito grossa.
— Quem acha que está enterrado ali debaixo? — perguntou o Mago.
Procurei mostrar-me confiante.
— Outra bruxa?
— Não — disse o Mago. — Não é necessário tanta pedra para uma bruxa. Por norma, o
ferro funciona. Mas a coisa ali debaixo pode escapulir-se através das barras de ferro num abrir e
fechar de olhos. Preste atenção na pedra. Consegue ver o que está gravado nela?

Anuí. Reconhecia a letra mas não sabia o que significava.
— É a letra grega beta — disse o Mago. — É o sinal que usamos para um demônio {7}. A
linha diagonal significa que se encontra preso artificialmente debaixo daquela pedra e o nome por
baixo diz quem o fez. No canto inferior direito está o numeral romano para um. Quer dizer que
é um demônio da primeira categoria e muito perigoso. Conforme mencionei, usamos graus de
um a dez. Lembre-se disso — um dia poderá salvar-lhe a vida. Um de grau dez é tão fraco que as
pessoas nem sequer reparariam que estava lá. Já se for um de grau um poderia facilmente matar-
te. Custou-me uma fortuna mandar trazer aquela pedra para cá, mas valeu cada cêntimo. Agora é
um demônio aprisionado. Encontra-se preso artificialmente e ficará ali até Gabriel fazer soar a
sua trombeta.
“Tem de aprender muito sobre os demônios, rapaz, e vou iniciar a sua preparação logo a
seguir ao desjejum, mas existe uma diferença significativa entre aqueles que estão presos e os que
estão livres. Um demônio livre consegue muitas vezes afastar-se quilômetros da sua casa e, se
estiver predisposto a isso, fazer maldades infinitas. Se um demônio se tornar particularmente
incômodo e não der ouvidos à razão, compete-nos aprisioná-lo. Se o fizermos bem, fica o que
chamamos aprisionado artificialmente. Desse modo não se consegue sequer mover. Claro, é mais
fácil dizer do que fazer.
O Mago carregou subitamente o cenho, como se recordasse algo desagradável.
— Um dos meus aprendizes meteu-se em sérios apuros ao atentar aprisionar um demônio

— disse, abanando pesarosamente a cabeça —, mas como é apenas o seu primeiro dia, não vamos
falar já disso.
Precisamente naquele momento, vindo da direção da casa, ouviu-se o som da sineta. O
Mago sorriu.
— Estamos acordados ou a sonhar? — indagou.
— Acordados.
— Tem certeza?
Acenei com a cabeça.
— Nesse caso, vamos comer — disse ele. — Mostrar-te-ei o outro jardim depois de termos
enchido as barrigas.