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Lua Azul - blog de lua azul

Viajando pelo mundo dos livros... "O Aprendiz do Mago" de Joseph Delaney - 14º e último capítulo

por lua azul

E pronto! Eis que chegámos finalmente ao fim da primeira obra literária que decidi disponibilizar-vos aqui pelo blogue na íntegra e até que nada disto que li neste último capítulo me pareceu mal de todo: Alice foi entregue por Thom a uma tia após este ter feito uma das mais complicadas escolhas da sua vida, Liszie dos Ossos ficou presa exactamente no mesmo poço onde Mãe Malquin se encontrava logo no início desta história enquanto o seu filho se encontra já enterrado e sem poder fazer mal a mais ninguém, sendo que no que ao protagonista de toda esta trama diz respeito... Encontra-se agora mais do que nunca empenhado em concluir o aprendizado relativo ao ofício de mago para mais tarde poder exercer esta profissão. Mãe Malquin desapareceu por completo quando foi comida pelos porcos da fazenda de Thom ainda no capítulo 13 e tudo o resto que ainda quiserem saber, deixá-lo-ei nas linhas que se seguem por via desta que será então a minha última partilha alusiva a este livro.

CAPÍTULO 14
O CONSELHO DO MAGO

Mas nem tudo foi mau. Afinal, Jack não morrera. Eu não quis fazer perguntas demais, pois
só iria deixar todos aflitos, mas parecia que quando Snout se preparava para começar a raspar a
barriga do quinto porco com Jack, ficara louco assim sem mais nem menos, e atacara-o.
Era apenas sangue de porco no rosto de Jack. Perdera os sentidos ao levar com uma tábua.
Snout fora então para casa e agarrara na bebê. Quisera usá-la como isca para se aproximar e
poder usar a sua faca em mim.
Claro que não estou a contar a versão mais fiel dos acontecimentos. Na realidade, não era
Snout quem estava a fazer aquelas coisas terríveis. Ele estava possesso e Mãe Malkin limitara-se a
usar o corpo dele. Ao cabo de algumas horas, Snout voltou a si e foi para casa intrigado e
agarrado à barriga dolorida. Parecia não se lembrar de nada do que sucedera, e nenhum de nós o
quis esclarecer.
Ninguém dormiu muito naquela noite. Depois de atear um fogo forte, Ellie ficou a noite
toda na cozinha e não quis deixar a bebê longe da vista. Jack foi-se deitar para recuperar da
cabeça dolorida, mas acordava constantemente e vinha correndo para o exterior, a fim de vomitar
no pátio.
Mais ou menos uma hora antes da aurora, a minha mãe chegou a casa. Também não parecia
muito satisfeita. Parecia que algo correra mal.
Peguei na mala dela para a levar para casa.
— Está bem, mãe? — perguntei. — Parece-me cansada.
— Não se preocupe comigo, filho. O que aconteceu aqui? Vejo pela sua cara que alguma
coisa não está bem.
— É uma longa história — respondi. — É melhor entrarmos primeiro.
Quando chegamos à cozinha, Ellie ficou tão aliviada de ver a minha mãe que desatou a
chorar e isso fez com que a bebê chorasse também. Jack desceu então e toda a gente quis contar
tudo à mãe ao mesmo tempo, mas eu desisti ao cabo de alguns segundos, pois Jack começou a
falar ruidosamente, como era seu hábito.
A minha mãe mandou-o calar rapidamente.
— Baixe a voz, Jack — disse-lhe. — Esta ainda é a minha casa e não suporto gritarias.
Ele não gostou que lhe falassem daquela maneira em frente de Ellie mas sabia que era
escusado protestar.
Obrigou cada um de nós a contar-lhe exatamente o que acontecera, começando por Jack.
Eu fui o último e, quando chegou a minha vez, ela mandou Ellie e Jack deitarem-se para que
pudéssemos conversar a sós. Não que ela falasse muito. Limitou-se a escutar em silêncio, depois
segurou-me a mão.
Por fim, foi até ao quarto de Alice e passou muito tempo a falar a sós com ela.
O Sol havia nascido há menos de uma hora quando o Mago chegou. De certa forma, eu
estava a contar com ele. Esperou junto ao portão e eu fui lá fora, narrando de novo os
acontecimentos, enquanto ele se apoiava no bordão. Quando terminei, abanou a cabeça.
— Senti que algo estava errado, rapaz, mas cheguei tarde demais. Mesmo assim, agiu bem.
Mostrou iniciativa e conseguiu lembrar-se de algumas das coisas que te ensinei. Se tudo o mais
falhar, pode sempre recorrer ao sal e ao ferro.

— Devia ter deixado Alice queimar Mãe Malkin? — inquiri. Ele suspirou e coçou a barba.
— Como te disse, é uma coisa cruel queimar uma bruxa e pessoalmente não concordo.
— Acho que agora vou ter de enfrentar de novo Mãe Malkin — disse-lhe.
O Mago sorriu. — Não, rapaz, pode ficar descansado porque ela não voltará a este mundo.
Depois do que lhe aconteceu no fim... Lembra-se do que te disse a respeito de comer o coração
de uma bruxa? Bem, os seus porcos fizeram-no por nós.
— Não apenas o coração. Eles comeram tudo — contrapus. — Portanto estou livre?
Realmente livre? Ela não pode voltar?
— Sim, está livre de Mãe Malkin. Existem por aí outras ameaças iguais ou piores, mas está
livre, por agora.
Senti um grande alívio, como se me tivesse saído um peso enorme de cima dos ombros.
Vivera num pesadelo e agora, eliminada a ameaça de Mãe Malkin, o mundo parecia um lugar
muito mais bonito e feliz. Acabara tudo, finalmente, e podia voltar a criar expectativas.
— Bem, está livre até cometer outro erro absurdo — acrescentou o Mago. — E não diga
que não vai cometer. Aquele que nunca comete um erro nunca chega a lado nenhum. Faz parte
do processo de aprendizagem. Bem, o que vamos fazer agora? — perguntou, semicerrando os
olhos para o Sol nascente.
— A respeito de quê? — indaguei, curioso em saber ao que se referia.
— Da menina, rapaz — disse ele. — Parece que o poço a espera. Não vejo outra solução.
— Mas, no fim, ela salvou a bebê de Ellie — protestei. — Ela também salvou a minha
vida.
— Ela usou o espelho, rapaz. Isso é mau sinal. Lizzie ensinou-lhe muito. Demasiado.
Agora ela mostrou-nos que está preparada para o usar. O que irá fazer a seguir?
— Mas as suas intenções foram boas. Ela usou os seus conhecimentos para tentar
encontrar Mãe Malkin.
— Pode ser, mas ela sabe demais e também é inteligente. Neste momento é apenas uma
menina, mas um dia será uma mulher e uma mulher inteligente é perigosa.
— A minha mãe é inteligente — redargui, aborrecido com o que ele dissera. — Mas
também é boa. Tudo o que faz é com boas intenções. Ela usa a inteligência para ajudar as
pessoas. Um ano, era eu mesmo muito pequeno, as imagens fantasmagóricas na Colina do
Carrasco assustavam-me tanto que não conseguia dormir. A minha mãe foi lá acima depois de
escurecer e calou-as. Ficaram sossegadas durante meses e meses.
Podia ter acrescentado que, na nossa primeira manhã juntos, o Mago me dissera que não
havia muito a fazer em relação às imagens fantasmagóricas. E que a minha mãe provara que ele
estava errado. Mas não o fiz. Já falara mais do que devia e desnecessariamente.
O Mago não disse nada. Olhava na direção da casa.
— Pergunte à minha mãe o que pensa de Alice — sugeri. — Parece dar-se bem com ela.
— Já tencionava fazê-lo — disse o Mago. — Está na hora de termos uma conversinha.
Espere aqui até terminarmos.
Fiquei vendo o Mago atravessar o pátio. Antes mesmo de chegar lá, a porta da cozinha
abriu-se e a minha mãe veio recebê-lo à soleira.
Mais tarde, foi possível apurar algumas das coisas que tinham dito um ao outro, mas
conversaram durante cerca de meia hora e nunca cheguei a descobrir se as imagens
fantasmagóricas tinham feito parte da conversa. Quando o Mago saiu finalmente para a luz do
Sol, a minha mãe ficou na porta. Ele fez então algo invulgar — algo que nunca o vira fazer. A
princípio, julguei que tivesse baixado a cabeça à mãe ao despedir-se, mas houve algo mais naquele

gesto. Houve também um movimento dos ombros. Foi ligeiro mas muito nítido, pelo que não
restavam quaisquer dúvidas. Quando se despediu da minha mãe, o Mago fez-lhe uma pequena
vênia.
Enquanto atravessava o pátio direto a mim, parecia sorrir de si para si.
— Vou voltar para Chipenden agora — disse —, mas acho que a sua minha mãe gostaria
que ficasses mais uma noite. Seja como for, deixo isso ao seu critério — afirmou o Mago. — Ou
traz a menina de volta e a prendemos no poço, ou levá-la à tia em Staumin. A escolha é sua. Use
o seu instinto para tomar a decisão certa. Saberá o que fazer.
Depois foi-se embora, deixando-me com a cabeça a andar à roda. Sabia o que pretendia
fazer em relação a Alice, mas tinha de ser a atitude certa.
Então, fui comer outra das ceias da minha mãe.
O meu pai regressara entretanto, mas, apesar de a minha mãe ficar satisfeita de o ver, havia
algo que não estava muito bem, uma espécie de atmosfera, como uma nuvem invisível a pairar
sobre a mesa. Portanto, não foi propriamente uma festa de comemoração e ninguém falou muito.
No entanto, a comida estava boa, um dos guisados especiais da minha mãe, pelo que não
me ralei com a falta de conversa — estava demasiado ocupado a encher a barriga e a servir-me
segunda vez antes que Jack tivesse tempo de limpar o prato.
O apetite de Jack voltara, mas ele estava um bocado acabrunhado, tal como os demais.
Passara por muito, tinha um galo enorme na testa a prová-lo. Quanto a Alice, não lhe contara o
que o Mago dissera, mas achava que ela devia saber, ainda assim. Não abriu a boca uma só vez
durante o jantar. Mas a mais calada de todos era Ellie. Apesar da alegria de ter de volta a bebê, o
que vira deixara-a muito transtornada e calculei que fosse demorar algum tempo a recompor-se.
Quando os outros se foram deitar, a minha mãe pediu-me que ficasse. Sentei-me junto à
lareira na cozinha, tal como fizera na noite que antecedera a minha partida para ir iniciar o
aprendizado. Mas algo no rosto dela me disse que esta conversa ia ser diferente. Antes, ela
mostrara-se firme comigo, mas esperançada. Confiante de que tudo iria correr bem. Agora
parecia triste e cheia de dúvidas.
— Há quase vinte e cinco anos que trago bebês a este mundo no Condado — disse,
sentando-se na sua cadeira de balanço —, e perdi alguns. Apesar de ser muito triste para a mãe e
o pai, é apenas algo que acontece. Acontece aos animais da fazenda, Tom. Você próprio o viu.
Anuí. Todos os anos nasciam alguns carneiros mortos. Era algo com que se contava.
— Desta vez foi pior — disse a minha mãe. — Desta vez, tanto a mãe como o bebê
morreram, algo que nunca me acontecera. Conheço as ervas certas e sei como misturá-las. Sei
como tratar uma hemorragia grave. Sei exatamente o que fazer. E esta mulher era jovem e forte.
Ela não devia ter morrido, mas não a consegui salvar. Fiz tudo o que podia, mas não a consegui
salvar. E isso causou-me uma dor aqui. Uma dor no coração.
A minha mãe soltou uma espécie de soluço e agarrou o peito. Por um momento horrível,
pensei que fosse chorar, mas depois ela respirou fundo e a força voltou-lhe ao rosto.
— Mas os carneiros morrem, mãe, e às vezes as vacas, quando parem — disse-lhe. — Uma
mãe acaba por estar sujeita a morrer. É um milagre que tenha passado tanto tempo sem que isso
lhe acontecesse.
Esforcei-me ao máximo, mas foi difícil consolá-la. A minha mãe estava a encarar muito mal
a realidade. Fazia-a ver o lado negro da vida.
— Está ficando mais escuro, filho — disse-me. — E está a suceder mais depressa do que
eu contava. Tinha esperança de que primeiro se tornasse um homem, com anos de experiência em
cima. Por isso, vai ter de escutar com atenção tudo o que o seu mestre disser. A menor coisa

contará. Vai ter de se preparar o mais rapidamente possível e trabalhar com afinco nas suas lições
de latim.
Fez então uma pausa e estendeu a mão. — Deixa-me ver o livro. Quando lhe entreguei, ela
folheou as páginas, parando de vez em quando para ler algumas linhas. — Ajudou-lhe? —
inquiriu.
— Nem por isso — admiti.
— Foi o seu mestre que o escreveu. Ele lhe contou?
Abanei a cabeça. — Alice disse que fora escrito por um padre.
A minha mãe sorriu. — O seu mestre já foi padre. Foi assim que começou. Certamente um
dia ele lhe contará. Mas não lhe pergunte. Deixe que ele te conte quando achar que é o momento
certo.
— Do que foi que a senhora falou com Mr. Gregory? — perguntei.
— Disso e de outras coisas, mas principalmente de Alice. Ele perguntou-me o que eu
achava que lhe devia acontecer. Disse-lhe que deixasse isso com você. Então, já se decidiu?
Encolhi os ombros. — Ainda não sei bem o que fazer, mas Mr. Gregory disse que eu
deveria usar os meus instintos.
— É um bom conselho, filho — disse a minha mãe.
— Mas o que acha a mãe? — perguntei. — O que foi que disse a Mr. Gregory sobre Alice?
Ela é uma bruxa? Pelo menos conte-me isso.
— Não — a minha mãe respondeu lentamente, medindo as palavras com cuidado. — Ela
não é uma bruxa, mas será um dia. Nasceu com o coração de uma bruxa e não lhe resta senão
seguir esse caminho.
— Nesse caso, deveria ir para o poço em Chipenden? — afirmei com pesar, abanando a
cabeça.
— Lembre-se das suas lições. — A minha mãe falou de forma austera. — Lembre-se do
que o seu mestre te ensinou. Existe mais do que um tipo de bruxa.
— As “benévolas” — disse eu. — Está me dizendo que Alice pode vir a ser uma bruxa
boa que ajuda os outros?
— Pode ser que sim. E pode ser que não. Sabe o que acho mesmo? É capaz de não querer
ouvir isto.
— Quero — afirmei.
— Alice pode acabar por não ser nem boa nem má. Pode vir a ficar em algum lugar no
meio. E isso faria com que fosse muito perigoso conhecê-la. Aquela menina pode ser a desgraça
da sua vida, uma praga, um veneno em tudo o que fizer. Ou pode vir a revelar-se a melhor e mais
forte amiga que alguma vez terá. Alguém que fará toda a diferença no mundo. Só não sei para
que lado penderá. Não consigo ver, por mais que me esforce.
— Mas como poderia vê-lo, mãe? — inquiri. — Mr. Gregory disse que não acredita em
profecias. Ele disse que o futuro não está determinado.
A minha mãe apoiou uma mão no meu ombro e apertou-o ligeiramente para me encorajar.
— Todos nós temos algumas escolhas em aberto — disse. — Mas talvez uma das decisões mais
importantes que alguma vez venhas a tomar seja em relação a Alice. Agora vá se deitar e dorme
bem, se puder. Tome a decisão amanhã, quando o sol brilhar.
Uma coisa que não perguntei à mãe foi como conseguira silenciar as imagens
fantasmagóricas na Colina do Carrasco. Novamente os meus instintos. Sabia apenas que era algo
de que ela não iria querer falar. Numa família, há coisas que não se perguntam. Sabemos que nos
contarão quando chegar o momento certo.

Partimos pouco depois da aurora, o meu coração aos pés.
Ellie seguiu-me até ao portão. Parei ali mas fiz sinal a Alice para que continuasse e ela foi
subindo vagarosamente a colina, sacudindo o quadril, sem olhar sequer uma vez para trás.
— Preciso de te dizer algo, Tom — começou Ellie. — Custa-me fazê-lo, mas tem mesmo
de ser.
Notei pela voz dela que ia ser mau. Anuí, muito infeliz, e fiz um esforço para fitá-la nos
olhos. Fiquei chocado ao ver que estavam marejados de lágrimas.
— Continua a ser bem-vindo aqui, Tom — disse Ellie, afastando o cabelo da testa e
tentando sorrir. — Isso não mudou. Mas temos de pensar na nossa filha. Portanto, é bem-vindo
aqui, mas não depois de escurecer. Sabe, é por esse motivo que Jack tem andado tão mal-
humorado. Não queria te dizer o quanto isso o incomoda, mas agora tem de saber. Não lhe
agrada nada a sua atividade. Nem um pouco. Deixa-o arrepiado. E ele teme pela bebê.
— Estamos assustados, percebe? Receamos que, se alguma vez estiver aqui depois de
escurecer, possa atrair algo mais. É capaz de trazer consigo algo mau e não podemos correr o
risco de acontecer alguma coisa à nossa família. Venha visitar-nos durante o dia, Tom. Venha ver-
nos quando o Sol tiver nascido e as aves estiverem a cantar.
Ellie abraçou-me e isso só piorou tudo. Sabia que surgira algo entre nós e que tudo
mudara para sempre. Queria chorar, mas me contive. Tinha um grande nó na garganta e não
consegui falar.
Vi Ellie voltar para a casa da fazenda e tornei a centrar a minha atenção na decisão que
tinha de tomar.
O que iria fazer com Alice?
Acordara convicto de que era meu dever levá-la comigo para Chipenden. Parecera-me a
atitude certa a tomar. E a mais segura também. Sentia-o como um dever. Quando dera os bolos à
Mãe Malkin, deixara-me dominar pela brandura do meu coração. E vejam onde isso me levara.
Portanto, o melhor era tratar já de Alice, antes que fosse tarde demais. Como dissera o Mago,
tinha de pensar nos inocentes que poderiam vir a ser prejudicados no futuro.
No primeiro dia de viagem não falamos muito um com o outro. Disse-lhe que íamos voltar
para Chipenden, para ver o Mago. Se Alice desconfiava do que lhe ia acontecer, o certo é que não
se queixou. Depois, no segundo dia, ao aproximarmo-nos da aldeia e vermos já as vertentes mais
baixas das colinas rochosas, a não mais de quilômetro e meio da casa do Mago, contei a Alice o
que guardava bem guardado dentro de mim; o que me andava a preocupar desde que me
apercebera do que continham os bolos.
Estávamos sentados na orla verdejante junto à beira da estrada. O Sol pusera-se e a
claridade começava a diminuir.
— Alice, costuma mentir? — perguntei.
— Todo mundo mente às vezes — respondeu. — Não serias humano se não o fizesse. Mas
a maior parte das vezes digo a verdade.
— E na noite em que estava preso no poço? Quando te perguntei sobre aqueles bolos.
Você disse que não havia outra criança em casa de Lizzie. Isso era verdade?
— Não vi nenhuma.
— A primeira que desapareceu ainda era bebê. Não podia ter-se afastado sozinha. Tem
certeza?
Alice anuiu e depois baixou a cabeça, olhando para a erva.
— Acho que podia ter sido levada pelos lobos — referi. — Foi o que os rapazes da aldeia
pensaram.

— Lizzie disse que vira lobos por estas bandas. Pode ter sido isso — concordou Alice.
— E então os bolos, Alice? O que continham?
— Sobretudo sebo e bocados de carne de porco. Miolo de pão também.
— E então o sangue? O sangue animal não teria servido a Mãe Malkin. Ela precisava de
força suficiente para dobrar as barras por cima do poço. De onde veio então o sangue, Alice, o
sangue que foi usado nos bolos?
Alice começou a chorar. Esperei pacientemente que terminasse, depois voltei a fazer a
pergunta.
— Então, de onde veio?
— Lizzie disse que eu ainda era uma criança — contou Alice. — Elas tinham usado o meu
sangue imensas vezes. Por isso, mais uma não teria importância. Não doía tanto assim. Quando já
se acostumou... E, diga-me, como podia eu impedir Lizzie?
Então, Alice subiu a manga e mostrou-me o braço. Havia ainda luz suficiente para ver as
cicatrizes. E eram bastantes — algumas antigas, outras relativamente recentes. A mais recente de
todas ainda não sarara por completo. Ainda exsudava.
— E há mais do que estas. Muitas mais. Mas não posso mostrá-las todas — acrescentou
Alice.
Não soube o que dizer, de modo que fiquei calado. Mas tomara já a decisão e não tardamos
a mergulhar no escuro, afastando-nos de Chipenden.
Resolvera levar Alice diretamente para Staumin, onde morava a tia. Não suportava a idéia
de ela acabar num poço no jardim do Mago. Era simplesmente horrível demais — e lembrei-me
de outro poço. Lembrei-me de que Alice me ajudara a sair do poço de Tusk precisamente antes
de Lizzie ter vindo buscar os meus ossos. Mas, acima de tudo, o que Alice acabara de me contar é
que me fez finalmente mudar de idéia. Ela fora já um dos inocentes. Alice também fora uma
vítima.
Subimos Parlick Pike e depois dirigimo-nos para Blindhurst Fell, mais a norte, mantendo-
nos sempre nas terras altas.
Agradava-me a idéia de ir a Staumin. Ficava perto do mar e eu nunca tinha visto o mar,
exceto do alto das colinas. O percurso que escolhi desviava-se um pouco do caminho, mas
gostava de explorar e de estar ali em cima, perto do Sol. Pelo menos Alice não parecia importar-
se nem um pouco.
Foi uma viagem agradável e apreciei a companhia de Alice e, pela primeira vez, começamos
realmente a falar. Ela também me ensinou muito. Conhecia os nomes de mais estrelas do que eu e
tinha muito jeito para apanhar coelhos.
Em matéria de plantas, Alice era perita em aspectos que o Mago não mencionara sequer até
ali, como por exemplo as tóxicas beladona e mandrágora. Não acreditei em tudo o que ela disse,
mas anotei-o ainda assim, porque ela fora ensinada por Lizzie e pareceu-me útil saber aquilo em
que uma bruxa acredita. Alice sabia perfeitamente distinguir os cogumelos comestíveis dos
venenosos, alguns dos quais eram tão perigosos que uma dentada podia fazer-nos parar o coração
ou levar à loucura. Tinha comigo o livro de notas e, dando-lhe o título de “Botânica”, acrescentei
mais três páginas de informações úteis.
Uma noite, quando estávamos a menos de um dia de caminho de Staumin, instalamo-nos
numa clareira da floresta. Tínhamos acabado de cozinhar dois coelhos nas brasas de uma fogueira
até a carne quase se desfazer nas nossas bocas. Após a refeição, Alice fez algo realmente estranho.
Depois de se virar para mim, debruçou-se e segurou-me a mão.
Ficamos sentados assim durante muito tempo, ela a olhar para as brasas da fogueira e eu

para as estrelas. Não queria me soltar, mas sentia-me completamente encabulado. A minha mão
esquerda segurava a esquerda dela e senti-me culpado. Senti-me como se estivesse a dar a mão ao
escuro e soubesse que o Mago não iria gostar.
Era-me impossível ignorar a verdade. Um dia, Alice iria ser uma bruxa. Foi então que
percebi que a minha mãe tinha razão. Não tinha nada a ver com profecias. Conseguia vê-lo nos
olhos de Alice. Ela estaria sempre em algum lugar no meio, nem totalmente boa nem totalmente
má. Mas isso não se aplicava a todos nós? Não havia ninguém perfeito.
Resolvi não retirar a mão. Fiquei ali sentado, uma parte de mim a gostar de lhe segurar a
mão, o que até era reconfortante depois de tudo o que acontecera, enquanto a outra parte estava
cheia de remorsos.
Foi Alice quem se soltou. Tirou a sua mão da minha e depois tocou no meu braço, no
lugar onde as unhas dela se haviam cravado na noite em que tínhamos destruído Mãe Malkin.
Podiam ver-se as cicatrizes com o brilho das brasas.
— Deixei-te aqui a minha marca — disse ela com um sorriso. — Nunca irá desaparecer.
Pareceu-me algo estranho de se dizer e não percebi muito bem onde ela queria chegar. Lá
na fazenda, marcávamos o gado. Fazíamo-lo para mostrar que nos pertencia e para evitar que os
animais tresmalhados se misturassem com os das propriedades vizinhas. Mas como podia eu
pertencer a Alice?
No dia seguinte, descemos a uma extensa planície. Parte dela era terra pantanosa e, nos
piores troços, pântano alagado, mas acabamos por dar com o caminho para Staumin. Nunca
cheguei a ver a tia dela, pois não quis sair para me cumprimentar. Mesmo assim, concordou em
receber Alice, pelo que não podia me queixar.
Havia um rio grande e largo ali perto e, antes de partir para Chipenden, descemos pela sua
margem até ao mar. Não fiquei muito contente ao vê-lo. Estava um dia cinzento e ventoso e a
água era da mesma cor do céu e as suas ondas, grandes e tumultuosas.
— Vai ficar bem aqui — disse-lhe, tentando mostrar-me animado. — Deve ser bonito com
sol.
— Tentarei tirar o melhor partido — respondeu Alice. — Não pode ser pior do que
Pendle.
De repente, tive novamente pena dela. Às vezes, sentia-me sozinho, mas sempre podia
conversar com o Mago; Alice nem sequer conhecia bem a tia e o mar encapelado fazia com que
tudo parecesse ermo e frio.
— Olha, Alice, não conto que voltemos a nos ver, mas se alguma vez precisar de ajuda,
mande-me um recado — prontifiquei-me.
Acho que o disse porque Alice era o mais próximo de um amigo que eu tinha. E como
promessa, não era tão tola quanto a primeira que lhe fizera. Não estava efetivamente a
comprometer-me com nada. Da próxima vez que ela pedisse algo, falaria primeiro com o Mago.
Para surpresa minha, Alice sorriu e ficou com uma expressão estranha no olhar. Lembrei-
me do que o meu pai dissera uma vez, a respeito de as mulheres saberem coisas que os homens
desconhecem — e quando suspeitávamos de tal, nunca deveríamos perguntar no que elas estavam
a pensar.
— Oh, voltaremos a encontrar-nos — respondeu Alice. — Não tenho quaisquer dúvidas a
esse respeito.
— Agora tenho de ir andando — disse-lhe, virando-me para partir.
— Vou sentir a sua falta, Tom — declarou Alice. — Não será o mesmo sem você.
— Também sentirei a sua falta, Alice — respondi, sorrindo-lhe.

Quando as palavras me saíram, pensei que as dissera por uma questão de cortesia. Mas, não
estava na estrada há mais de dez minutos quando percebi que me enganara.
Cada palavra fora intencional e sentia-me já sozinho.
Recorri sobretudo à memória para narrar estes acontecimentos, mas uma parte consta do
meu livro de notas e do meu diário. Já me encontro de volta a Chipenden e o Mago está satisfeito
comigo. Acha que estou a fazer bons progressos.
Lizzie dos Ossos está no poço onde o Mago tinha preso a Mãe Malkin. As barras foram
endireitadas e certamente ela não vai receber de mim quaisquer bolos à meia-noite. Quanto a
Tusk, encontra-se sepultado no buraco que cavou para minha sepultura.
O pobre Billy Bradley voltou para o seu jazigo do lado de fora do cemitério de Layton,
mas, pelo menos, conseguiu recuperar os seus polegares. Nada disto é agradável mas é algo que
faz parte do ofício. Mesmo que não gostemos, temos de fazê-lo, como diz o meu pai.
Há algo mais que lhes deveria contar. O Mago concorda com o que a minha mãe disse.
Acha que os Invernos estão a ficar mais longos e o escuro a ganhar mais força. Tem a certeza de
que o ofício será cada vez mais difícil.
Para que nunca me esqueça disso, vou continuar a estudar e a aprender — como me disse
uma vez a minha mãe, se não tentarmos, nunca saberemos do que somos capazes. Por isso vou
tentar. Estou a esforçar-me ao máximo, porque quero que ela se orgulhe realmente de mim.
Neste momento não passo de um aprendiz, mas um dia serei o Mago.

Thomas J. Ward