Carla em Lisboa, na semana passada, a meio de mais uma viagem para reuniões onde consegue pequenos patrocínios para as suas iniciativas
Mãe de um rapaz com paralisia cerebral, Carla Vieira de Faria aproveitou um período de desemprego para mergulhar na programação de jogos de computador destinados a crianças deficientes e saudáveis. A indústria que criou, na companhia dos filhos e do marido, tornou-se num verdadeiro sucesso. Entretanto, o seu portal Ajudas.Com veio resolver a dispersão da informação portuguesa sobre os portadores de deficiência e o seu projecto para a oferta de brinquedos adaptados a portadores de deficiência internacionaliza-se. Mais um sonho de mulher.
Quando a Carla Vieira de Faria se pergunta qual é a sua profissão, a resposta é sempre a mesma: Mãe. Primeiro sou mãe. Licenciada em Matemáticas Aplicadas, com uma carreira prévia como técnica de computadores e um percurso já com quase dez anos na área da programação informática e desenvolvimento de projectos tecnológicos, Carla sabe que é ainda aquele momento ocorrido há 14 anos, quando nasceu o seu primeiro filho, a determinar tudo o que tenha a ver com a sua designação profissional ou mesmo com a sua atitude perante a vida. Portadora de paralisia cerebral, a criança motivou-a desde cedo a investir no software didáctico adequado a deficientes. Um período em que se encontrou desempregada em simultâneo com o marido, ambos sem compromissos ou rendimentos, fez o resto.
Não posso dizer que ter uma criança com paralisia cerebral seja uma grande felicidade. Preferia que isso não tivesse acontecido. Mas, quando o problema se põe, ou se lida com ele e se faz disso um projecto de vida, ou então a vida torna-se mais difícil para todos. E foi isso que eu fiz: transformei a deficiência do meu filho mais velho numa competência, explica. Comecei em 1998, tinha ele seis anos. Eu e o meu marido, ambos técnicos de informática, ficámos de repente desempregados ao mesmo tempo. E, então, num velho PC que tínhamos lá em casa, comecei a desenvolver um jogo, a que dei o nome de A Cabana do Papim. Papim era precisamente o nome que o meu filho dava ao padrinho, meu irmão, por ser incapaz de chamar-lhe padrinho.
Compilação de jogos educativos e lúdicos com capacidade para estimular áreas concretas do desenvolvimento das crianças, deficientes ou não, A Cabana do Papim cedo se tornou num sucesso, chegando ao top de vendas de várias lojas da especialidade e, inevitavelmente, motivando os seus criadores para a continuação da actividade. Ao longo dos últimos oito anos, os projectos foram de todo o tipo, quase sempre tendo em atenção, ao mesmo tempo, crianças ditas normais e as crianças portadoras de deficiência. Ao Papim seguiu-se O Meu Baú dos Brinquedos e a este Aventura na Ilha das Cores. Todos receberam pelo menos dois prémios importantes e todos ocuparam um lugar no top de vendas das lojas Fnac, encontrando-se cada um deles pelo menos na sexta edição. Quero Ser Presidente da República, o quarto grande software da série, deverá agora ser lançado ao longo do mês de Novembro. Nele, as crianças começam como presidentes de uma Junta de Freguesia e tentam percorrer toda a hierarquia do Estado até, através da resposta a desafios de todo o tipo, angariarem votos suficientes para chegarem a cargo de PR.
Como noutros jogos de Carla Vieira Faria, em Quero Ser Presidente da República há opções para os mais variados géneros de deficientes, desde a possibilidade de jogar com um teclado operado pelos pés (para o caso de deficientes sem membros superiores) até à prerrogativa de dispor de linguagem gestual (para os surdos). Para as crianças sem deficiência, basta desligar as opções especiais. E a personagem com que as crianças operam também tem significado. Raparigas em cadeiras de rodas, rapazes negros ou asiáticos qualquer um deles pode chegar a Presidente da República pela mão do jogador em causa, em mais uma clara manobra de sensibilização para a diferença.
Tornámos a nossa família numa indústria. É tudo feito cá em casa. Eu e o meu marido tratamos da concepção, desenho, programação e produção. As três crianças são os beta-testers [entidades encarregadas de testar a eficácia dos programas]. Neste caso, o meu filho mais velho, o que tem a deficiência, é de novo fundamental: nenhum jogo em que ele não consiga passar o primeiro nível vai para o mercado. Mas os outros dois também ajudam imenso: experimentam, tentam fazer batota, revelam os buracos que preciso de corrigir..., explica Carla. Cada cópia é gravada por nós, para depois ser posta à venda na Fnac ou na loja on-line Compensar. Mas grande parte do material somos nós quem o vende directamente. Além disso, os meus filhos dão as vozes, emprestam as suas fotografias... E a música, normalmente, é minha. Estudei piano até ao sexto ano do Conservatório e tenho um órgão barato que comprei na Toys R Us, com o qual componho e toco as melodias que acompanham os programas.
O problema é a pirataria, muitas vezes absolutamente descarada. Há pessoas que têm a distinta lata de me telefonar a pedir um jogo para instalar em 18 unidades. Ora, é verdade que cada cópia legal custa dinheiro, normalmente acima dos vinte euros. Mas também é verdade que cada CD produzido me exige pelo menos dez euros, fora o trabalho da família toda, diz Carla Faria. Mas, pronto, é uma situação com que temos de viver. Não há orçamento para software antipirataria... Eu sempre gostei muito de dar coisas às pessoas, mas a verdade é que ainda hoje vivo com bastantes dificuldades.
E foi porque gosta de dar que, de há um ano a esta parte, Carla Faria tem vindo a desenvolver ainda outro projecto, gratuito e sem qualquer fim lucrativo: o portal www.ajudas.Com destinado à compilação e divulgação de informações de todo o tipo sobre os cidadãos portadores de deficiência. Eu própria, como mãe de uma criança com paralisia cerebral, sentia falta disso. Ia à internet à procura de informação e só encontrava material em inglês ou em português do Brasil. O Ajudas.Com é precisamente para colmatar a falta desse material em português de Portugal, sublinha. Existem parceiros (ElectroSertec, Mobilitec, Loja do Avô, Compensar e Servimed), cada um deles especializado numa determinada área da medicina ou da comercialização de produtos para deficientes, mas os contributos são sobretudo em géneros, incluindo informação para incluir nos projectos ou materiais para iniciativas. Um dos projectos do portal foi a distribuição, no Natal passado, de brinquedos adaptados, com um custo de mais de 150 euros a unidade, a cem crianças portuguesas. Este Natal, Carla Faria pretende distribuir ainda mais brinquedos, desta vez entre crianças portuguesas, angolanas e moçambicanas. Residente em Vila Nova de Gaia, Carla Faria diz-se hoje uma mulher feliz. Passa a vida em reuniões demoradas que resultam em patrocínios de pouco mais de cem euros, mas não dá o tempo por perdido. Gosto do que faço. E já nem sequer me imagino a voltar à profissão de técnica de informática. Estou refém da reabilitação, explica.
CONCURSO NACIONAL DE TEXTOS INCLUSIVOS
Interessado em colocar os deficientes em acção e os não deficientes a reflectir sobre as limitações e os desafios dos primeiros, o portal Ajudas.Com decidiu criar um concurso nacional de textos inclusivos. Lançado em Julho, o Prémio Nacional Assis Milton, desenhado em coordenação com o Secretariado Nacional de Reabilitação e Reintegração da Pessoa com Deficiência, propõe-se ao mesmo tempo divulgar autores portugueses e aspectos relativos à cultura literária, valorizar a inclusão e integração da pessoa deficiente e promover a escrita criativa.
Cada texto deverá ser enviado até ao primeiro dia de cada mês, entre Outubro de 2006 e Maio de 2007, para Secretariado do Concurso Nacional de Textos Inclusivos, Rua de Moçambique, 177, 3.º D , 4430-135 Vila Nova de Gaia.
Ficheiro RNH n.º 34
Nome: Carla Maria Teixeira Lopes Vieira de Faria
Idade: 41 anos
Naturalidade: Luanda (Angola)
Profissão: Investigadora e programadora de projectos informáticos e tecnológicos
Fonte: http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=217836&idCanal=9
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