Com a recém criada ligislação, que obriga os super e hiper-mercados a disponibilizarem acompanhamento personalisado, para as pessoas com Deficiência Visual efectuarem as suas compras, bem como a etiquetagem dos produtos, por elas adquiridos, em braille, todos passamos a usufruir de um serviço que, supostamente, nos garante maior autonomia em hábitos e tarefas domésticas onde a falta de visão poderia representar maiores dificuldades.
Com este tema na ordem do dia, como membro activo de uma família, cujas decisões e actividades familiares são partilhadas, ocorreu-me experimentar o serviço a fim de indagar se este representa uma mais valia ou se é supérfulo.
Assim, averiguei qual o estabelecimento comercial que melhor me convinha. Junto de uma funcionária, solicitei a ajuda personalizada e inquiri sobre o método de etiquetagem. A ajuda personalizada foi prontamente providenciada, (e de acordo com a minha preferência: uma senhora, pois pretendia adquirir produtos íntimos). Contúdo, o método de etiquetagem não se encontrava disponível por falta de funcionário habilitado para o efeito.
Procedi então ao acto de consumo devidamente acompanhada e auxiliada por uma funcionária muito simpática e competente. Prontamente me localizava os produtos que eu pretendia adquirir; correctamente me descrevia o producto em causa; com isenção e honestidade me referia os preços e datas de validade.
Cheguei a casa com o meu saco de compras e dispus-me a arrumá-las. Não tinha as etiquetas mas também não deixei de guardar tudo no lugar que lhes competia. Quando precisei de usar um dos produtos, como tantas outras vezes, não sabia se este já tinha aspirado o praso. Nesta altura reflecti: "se a etiqueta cá estivesse"...
Não sei o que fariam, eu guardei o producto e decidi usar outra coisa. Quando a oportunidade surgiu, pedi que me verificassem a validade duvidosa.
De facto, esta medida poderá facilitar as nossas vidas, conforme a minha experiência. No entanto, não deixamos de fazer e usar as coisas de que precisamos por não estarem marcadas, já que desenvolvemos esforços para os identificar, seja pelo recurso de memória adicional, seja por estratégias de identificação mais ou menos elaboradas.
Agora vejam o que entretanto me vem sucedendo:
O meu velho e excelente frigorífico decidiu não funcionarcorrectamente. Um combinado, de gama superior, com programação electrónica, perdeu a capacidade de refrigeração. O técnico alegou não existirem mais peças para a sua reparação, pelo que sugeria a aquisição de um novo equipamento.
Desloquei-me a uma superfície comercial para agir em conformidade. Fui acompanhada pelo meu marido mas, se assim não o entendesse, poderia ter usufruido do serviço de acompanhamento...Tenho plena convicção que este seria viável pois, á semelhança do meu marido, o funcionário ajudar-me-ia a procurar o equipamento correspondente ás minhas exigências. Além de que, a etiqueta Braille, perfeitamente possível, seria dispensável....
O que não era dispensável era a explicação do modo de funcionamento, já que o manual de instruções não estava em Braille. Pior ainda foi constatar que a maioria dos frigoríficos dispunham de um visor ,cuja informação era de acesso digital. Enfim, lá se encontrou um frigorificozinho, de programação manual, mas cuja temperatura apenas era revelada por meio de um visor.
Algum tempo depois, a máquina de lavar roupa teve precisamente a mesma idéia do seu companheiro doméstico. A apreciação do técnico foi idêntica e O meu procedimento foi o mesmo.
Agora as coisas foram ainda mais complicadas. O frigorífico não carece de constante regulação, bastará quando muda a estação. Ora, uma ajudinha destas não é pedir muito....Porém, com a máquina de lavar roupa já não é bem assim, não vos parece? Não se pode estar á espera do marido, do vizinho ou de qualquer um que esteja a jeito para nos dizerem qual o programa mais indicado para colocar a máquina a funcionar. O dilema da escolha residia precisamente nesta tónica: a roupa tem de ser lavada em tempo útil e a máquina usada por todos os que a possam pôr a trabalhar nesse tempo. Ocorre que, lá em casa, sou eu que reúno melhor esse reqesito, pelo que, esta teria de ser acessível ao usuário em causa: deficiente visual.
Estão mesmo a ver, não é? Pois sim, todas as máquinas dispunham de um elaborado visor e de um sufisticado quadro digital. A electrónica era mais que muita e impossibilitava qualquer identificação manual do programa, temperatura e demais características de lavagem.
A muito escolher lá se encontrou uma máquina milagrosa: modêlo já quase em desuso, de botões de rotação para selecção dos programas e demais características de lavagem, com pouca electrónica e sem visor digital. No entanto, o manual de instruções não está em Braille pelo que foi preciso que o meu marido me désse umas dicas.
Finalmente, para acabar o rol das aventuras com os electrodomésticos, vou contar o que me sucedeu há aapenas alguns dias:
Ofereci uma máquina de fazer pão á minha irmã, a qual não se revelou de grande qualidade. Constrangida com o ocorrido, reembolsei a minha irmã com o valor correspondente e tentei a devolução do equipamento. Como já tinha prescrito o prazo legalmente reservado para o efeito, a máquina foi para reparação.
Reparada e resgatada a máquina, fomos forçados a ficar com ela, já que esta não tinha revelado qualquer problema de funcionamento. Decidimos experimentá-la para despistar qualquer anomalia. O meu marido foi comprar a farinha indicada no manual, (que só ele podia ler), e prestou-se a ser "padeiro".
O pão ficou bom. Talvez a minha irmã não tenha percebido o seu modo de utilização. Paciência.... Agora já não nos queremos ver livres do objecto nem do pão fresco todos os dias.
Mas que problema... quando comprámos a bendita da máquina não nos ocorreu que esta tinha programação digital, visor electrónico, e era impossível de ser utilizada correctamente por um usuário com falta de visão. Chegámos á triste conclusão que, lá em casa, o padeiro tem de ser o marido e não a esposa...
Com todas estas peripécias surgiu no meu pensamento essa questão da legislação a que acima me referi. Não seria ainda mais necessário implementar legislação que obrigue as marcas de qualquer tipo de instrumento, aparelho ou engenhoca que, na sua concepção, não ignore o "dezenho universal", a "acessibilidade", e que, ao construirem o dito objecto, sejam obrigados a ter em conta a diversidade do seu público?
Se bem virmos as coisas não é assim tão grave: estamos na era da conciliação da vida proficional, pessoal e familiar. Afinal ele sempre pode ir fazendo o pão enquanto eu estou no trabalho, não é?
E apenas referenciei equipamentos essenciais, já nem referencio os lúdicos: televisão, aparelhagem, leitor de DVD, etc, etc, etc...
LDias
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