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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

A QUESTÃO DA ÉTICA FRENTE ÀS DIFERENÇAS

por Francisco Lima

Prezados,

Este é um dos textos de que mais gosto e, embora já o tenha partilhado com os leitores mais antigos deste blog, penso que vale resgatá-lo para a leitura dos que estão chegando.
Aproveitando, convido-os a ler os posts mais antigos e, se assim desejarem, postar seus comentários, questões ou dúvidas.
Desfrutem da leitura,
Francisco Lima
A QUESTÃO DA ÉTICA FRENTE ÀS DIFERENÇAS

Prof. Dr. Francisco J. Lima (UFPE)

Prezados senhores e senhoras:

O tema de nossa mesa redonda de hoje (A questão da ética frente às diferenças), embora pareça residir no lugar comum, nem de longe pode ser visto assim.
De fato, os temas “ética” e “diferença” têm servido de propaganda, de palanque e de discursos, para políticos, educadores, associativistas, entre outros, por vezes nada contribuindo para os indivíduos, a respeito dos quais os discursos versam, mesmo quando estes são proferidos sob o enfoque da “ética” e da “diferença”.
Esperamos não cair nesse lugar comum, nem sermos entendidos dessa maneira. Portanto, o que falaremos aqui tende a não agradar alguns, desagradar profundamente a outros e provocar, em outros mais, a reflexão.
Assim, espero que alguns de vocês me acompanhem até o final.

Ao iniciarmos nossa apresentação e antes de entrarmos no tema mais diretamente, gostaríamos de oferecer algumas das fundações sobre as quais estaremos construindo nossas reflexões.
Logo, tomemos como primeira fonte de sustentação para nossa fala o significado de direitos humanos e pessoas humanas, já que consideraremos a ética como estando imbricada nesses direitos e como sendo o pilar estrutural e sustentador da humanidade, responsável por uma “resposta natural’ a esses direitos. E consideraremos pessoas humanas, aquelas a que se vem chamando eufemisticamente de “portadoras de diferença ou deficiência”.
Então, aqui, entenderemos direitos humanos no seu sentido mais amplo, no sentido daquilo que cada um, ao olhar para dentro de si, sente como sendo o direito do conjunto de todas as pessoas, isto é, da humanidade: o direito à vida (o direito de ter e manter a vida); o direito à saúde (alcançar, ter e manter a saúde mental, física e psicológica); o direito ao trabalho (ter um emprego, preservar as condições de o manter, ser pago dignamente pelo trabalho feito); o direito à educação (ter acesso à escola e à educação com qualidade, ter condições de igualdade na aprendizagem, ter respeitado seu tempo e modo de adquirir e manifestar conhecimento e ser reconhecido/avaliado condizentemente no seu conhecimento manifesto ou adquirido); o direito ao lazer (ter acesso digno, respeitoso e com freqüência ao lazer e aos locais de lazer, sem restrições ou tutelas de outrem).
Consideraremos pessoas humanas, as pessoas que, sem exceção, são sujeitos desses direitos, isto é, são sujeitos agentes desses direitos; são sujeitos éticos e com toda sorte de diferenças, pois são todos iguais na condição de pessoas humanas.
A pseudo redundância da expressão “pessoa humana” se faz necessária, visto que nem todas as pessoas, no modelo social em que vivemos, são tratadas como humanos. Pelo contrário, há bem mais pessoas sendo tratadas como algo menos que animal que como humanos dotados dos direitos anteriormente mencionados.
Referimo-nos, pois, como sendo tratados como menos que humanos, aqueles muitos alunos com deficiência, a quem é negado o direito à educação por diretores, coordenadores de curso, donos de escolas, professores, tutores legais, pais etc., por acharem que são eles que devem decidir a respeito da vida das pessoas com deficiência. E fazem isso, sob o argumento pueril de que “será melhor para o aluno com deficiência.”!
Ocorre que, sob o manto da proteção do outro, esse professor desnuda toda sua capacidade de ser desumano, de jogar fora sua ética profissional, a qual deveria estar esteada no ensino e não na discriminação, enfim, revela a crueldade de tomar para si, o direito de decretar aos outros, em geral, crianças indefesas, a morte social, o limbo cultural e mesmo, a própria morte física.
Obram esses professores, coordenadores, donos de escola etc. (que tiranicamente determinam ou tentam determinar quem vai aprender ou quem não vai) como déspotas, como carrascos de inocentes, quando deveriam ser os defensores de uma sociedade do conhecimento ético, em que o maior dos conhecimentos começasse pelo conhecimento do próprio homem enquanto ser transformador do mundo para o bem da humanidade.
Referimo-nos como “pessoas humanas” que são tratadas como algo menos que animais, àquelas muitas pessoas com deficiência a quem é negado o direito à saúde porque orientações religiosas, arcaicas e torpes (fora do e infiltradas no meio científico) coíbem, dificultam impedem avanços científicos capazes de evitar, curar e impedir o agravamento de doenças e de outros quadros graves à saúde humana.
Referimo-nos como “pessoas humanas” que são tratadas como algo menos que animais, àqueles muitos trabalhadores que, por conta de uma deficiência, são “retirados” de seus empregos porque donos de empresas, médicos do trabalho e outros personagens de RH pensam que uma pessoa com deficiência perde sua eficiência quando perde um de seus sentidos ou uma parte de seu corpo, ou porque teve ou tem uma doença mental, ou ainda, porque tem uma deficiência intelectual.
Referimo-nos como “pessoas humanas” que são tratadas como algo menos que animais, àquelas muitas pessoas a quem o direito ao lazer é denegado por donos de área de lazer, para quem seus parques aquáticos, seus “playcenters” etc. não estão preparados para “receber” pessoas com deficiência.
Referimo-nos como “pessoas humanas”, àquelas muitas pessoas com deficiência a quem os hotéis, centro de convenções, restaurantes, teatros, cinemas, órgãos de gerência municipal, estadual ou federal desrespeitam, negam, passam por cima do direito dessas pessoas de ir e vir para o trabalho, para escola para os estabelecimentos de saúde e de lazer, porque não tornam seus espaços físicos, acessíveis.
Referimo-nos como “pessoas humanas” que são tratadas como algo menos que animais, aquelas muitas pessoas com deficiência a quem médicos e demais profissionais da saúde, da educação, da justiça, dos poderes legislativos e executivos maltratam, destratam, ou tratam mal, porque simplesmente desconsideram essas pessoas como sendo dignas de respeito, visto que, para eles, essas pessoas são “deficientes”, “menos válidos”, “menos gente”, “portadores de diferenças maiores e menores”, portanto não merecendo que lhes sejam prestados cuidados em sua língua de comunicação social (Libras, por exemplo); em seu código de escrita acessível (em Braille, por exemplo) ou numa comunicação em linguagem acessível, como se deve usar em situações de atendimento médico, jurídico, educacional e outros (com pessoas com deficiência mental, com síndromes e com dificuldade de comunicação ou cognição).
Enfim, pessoas humanas são todas as pessoas, inclusive aquelas que no modelo social atual, estão fora.
Outro ponto de sustentação de nossa fala é o conceito de inclusão, o qual exige que a sociedade se transforme para respeitar, acolher e atender às necessidades de todos os seus membros, num contínuo fazendo. Sob a égide da inclusão, as incapacidades de uma pessoa com deficiência estão na sociedade e não na deficiência do indivíduo.
Ao se entender isso, verifica-se que um aluno com deficiência pode não aprender, não por sua incapacidade de aprender, mas pela incapacidade de a escola o ensinar, respeitando o direito ao modo e tempo de aprendizagem individual do aluno.
Ao se reconhecer que está na sociedade o limite de uma pessoa com deficiência e não na sua própria deficiência, constata-se que um aluno ”cadeirante”, por exemplo, só estará “incapacitado” de fazer o curso de comunicação se não houver acesso físico à sua sala de aula, ou aos locais de que necessite complementar seus estudos, como nas próprias salas de cinema.
Semelhantemente, no trabalho, uma pessoa surda só será “incapacitada” para trabalhar como locutora de rádio, se a ela não for dada a oportunidade de aprender a língua oral do grupo social em que está inserida e do qual faz parte. Se, pelo contrário, a ela for dada a oportunidade de ser falante da língua oral de comunicação de sua sociedade, então ela poderá ser locutora de rádio, como outro profissional qualquer.
Como se pode notar, a Inclusão é um transformar-se, e assim o sendo, significa pôr termo ao atual modelo social, o qual é excludente e que teve origem nos primórdios da raça humana, quando o homem pouco se diferenciava dos bichos.
Ocorre que os animais evoluíram, porém, muitas pessoas não acompanharam sequer essa evolução, estando muito aquém dos animais, embora freqüentemente elas ofendam estes, ao se dizerem melhores.
Sei que estas são palavras duras, porém, precisamos deixar de ser “diplomatas”, “políticos” ou “cautelosos” com o desrespeito aos direitos dos outros, para ser éticos, numa sociedade humana de respeito à diferença de seus membros.
Logo, já é mais do que tarde para que deixemos de ser atores passivos dessa sociedade de exclusão que marginaliza pessoas que só querem (e devem) ter respeitado o seu direito de serem pessoas humanas.
Então, falar de “ética frente à diferença” significa falar de ética e significa falar de diferença. No entanto, o resultado dessas falas não significa a mera somatória desses dois conceitos. Pelo contrário, significa algo totalmente diverso, por sua natureza real e subjetiva.
Assim, acompanharemos para a “ética” a idéia de que ela é a “película” que envolve as pessoas e que lhes dá a característica de humanos, independentemente de sua instrução formal, de sua origem geográfica, étnica, religiosa, social, enfim, independentemente de um dado indivíduo saber o que significa ética. Note que não estou tratando aqui de valores morais, pois estes são mutáveis, temporários, e sopram ao sabor dos ventos, hora para cá, hora para lá, de acordo com o momento e as conveniências sociais sincrônicas.
Para o termo “diferença”, acompanharemos a idéia de que ela é a própria natureza do homem, aquilo que faz o homem ser igual ao outro, aquilo que lhe dá a identidade de pessoa humana.
Assim, não falaremos que o léxico diferente, flexionado a partir do termo diferença, é ou significa deficiente. Tratado dessa maneira, o termo “diferente” é um eufemismo para termos que incluem dizer honestamente que uma pessoa é cega, surda, ou tem deficiência física, intelectual cerebral etc.
Então, o primeiro ponto que se precisa estabelecer é que o recorte desta fala é a ética frente à questão das deficiências, mais ainda, questões que envolvem as pessoas com deficiência.
O segundo ponto a estabelecer é que não devemos ser desonestos com as pessoas com deficiência, falando delas, enquanto alegamos estar falando de sua deficiência. Exemplifiquemos: uma pessoa com síndrome de Down é um indivíduo (menor unidade do homem, indivisível, indissociável, único), portanto, se se estiver tratando da síndrome de Down, se estará tratando de uma pessoa humana, que como outra, tem características diversas e que, neste caso, uma delas é a síndrome de Down.
Aqui estabelecemos, portanto, que estamos falando da própria pessoa e não mais da deficiência.
Logo, a nossa fala, assim posta, é da “ética” frente às “pessoas”; é daquilo que torna as pessoas seres humanos e, pelo estabelecido, suas diferenças.
A equação, então, fica agora reduzida e dela podemos tratar, quem sabe, para chegarmos a uma linha de resolução.
Para materializarmos um pouco nossa fala, tomemos o seguinte trecho da grande jornalista Cláudia Werneck :

"Acredito na força de um lar no qual os adultos, questionados sobre temas que lhes incomodem, abram seus corações e seus dicionários com o mesmo orgulho que orientam os filhos sobre política ou economia. Portadores de diferenças querem ser levados à sério. Assumirão sua condição com cada vez mais dignidade.
Se nós, portadores de diferenças menores, permitirmos... Como diz o personagem do livro Um amigo diferente?: “Você está preocupado comigo? Obrigado. Mas eu vou em frente. Essa é a minha vida”' (Cláudia Werneck, Um tiro no preconceito, Jornal do Brasil Sábado, 14/09/96).

Antes de que eu continue, contudo, deixe-me dizer que considero os escritos da Cláudia verdadeiros tratados e os recomendo a todos. Eles têm constituído em verdadeiras lições para mim, e refletem uma consciência inclusiva, externadas por poucos.
Antecipo isso, porque o que analisarei adiante poderá ser mal compreendido pelos que não conhecem o trabalho daquela autora. E eu não quero levar ninguém a crer que tão bom trabalho venha ser visto como algo menor que o valor que merece.
Mas, então, vamos lá.
Destaquemos a seguir:
“...Se nós, portadores de diferenças menores, permitirmos...
Pergunto: “diferenças” .... “menores”?!
Como vimos, a diferença faz parte da pessoa humana; é o que lhe presta o status de igual, isto é, todos somos diferentes e, por sermos todos diferentes, essa diferença é a própria igualdade entre e dos homens.
Assim, a diferença, sendo um status, um atributo da humanidade, ela não pode ser quantificada, comparada em mais ou menos diferenças, em maiores ou menores diferenças.
Sim, diferença é um atributo da humanidade e, o sendo, não deve servir para comparar seres humanos, mas para identificá-los como tais.
João não é mais diferente que Paulo, que Maria ou Genésio. Cada um deles é diferente entre si, e do resto da humanidade.
Até se pode buscar comparar as características que “assemelham” as pessoas (Joaquim tem olhos castanhos, como os de Paula, cabelos crespos, como os de Paula, nariz aquilino, como os de Paula; é jovial, como Paula etc, etc, etc.), mostrando a existência de atributos que se assemelham, mas que nunca igualam as pessoas. Entretanto, essas pessoas continuam diferentes, é só, pois a diferença não pode ser quantificada.
Mas então, que vem a ser diferenças menores? Será que significa ter “menos deficiências”? Será que significa que não se tem deficiência, enquanto o outro a tem? Será que significa que o outro tem atributos, os quais nós não temos coragem de nomear? Será que “diferença menor” significa acreditar que o outro não tem a mesma capacidade que eu penso ter?
O que significa “diferenças menores”, se não há igualdade na humanidade, a não ser pelo fato de cada um de seus membros serem diferentes?
Essa reflexão, eu os convido a fazer comigo, sob a égide da ética, sob a égide da inclusão, sob a égide do que é ser humano e do respeito que cada um de nós deve ter para com seus pares, independentemente do conjunto de diferenças que se escolha para referenciar a tão propagada “normalidade”.
Normalidade!
Sim, agora trazemos outro fator para nossa equação que já houvera sido reduzida, na busca de se entender a ética frente à diferença, que, em última instância, significa a ética perante à pessoa com deficiência, aqui considerada como nosso recorte de fala.
Normalidade exprime-se por sua sincronicidade histórica, regional, social etc. Exprime-se por interesses e por atos excludentes.
Considerar-se normal é considerar a existência de outros, cujos atributos diferem dos que você elegeu para a normalidade e, ao fazê-lo, promoveu a exclusão dos que desses atributos não partilham, ou apenas, não são considerados como capazes de partilhar.
As questões anteriormente apresentadas, portanto, tomam uma dimensão própria. Elas referem-se à condição humana de alguns membros da sociedade, excluídos pelos parâmetros da normalidade (convenientemente estabelecidos por alguns), a fim de extirpar de seu meio outros, ou nela não permitindo entrar.
“Diferenças menores”, portanto, implicam “deficiências”, e deficiências não devem ser confundidas com normalidade.
Logo, uma pessoa com deficiência, ou não, é tão normal quanto qualquer outra, dependendo do padrão de normalidade que se elegeu para aquela sociedade, naquele momento, sob circunstâncias específicas.
Historicamente, os padrões de normalidade excluem a possibilidade de um indivíduo ter esta ou aquela deficiência, considerando a deficiência uma diferença e esta, razão de exclusão social. Tal postura, afirmamos, não é ética, rompe com aquela película que dissemos envolver e dar à pessoa o status de pessoa humana, e o grau de pertença à humanidade.
Considerar que uma deficiência é mais um dos atributos humanos, nada mais, nada menos diferente de qualquer outro atributo, é considerar que ter uma deficiência é ter o status de pessoa normal, com deficiência, com 1,60m de altura, com cabelos curtos, com olhos puxados, etc.
Sob essa égide, uma sociedade não pode estabelecer padrões de normalidade outros que não o de que ser normal é ser diferente, e que as diferenças não implicam em graus ou outros tipos de quantificação: “apenas se é diferente”, e ser diferente é normal.
Então, a cegueira é diferente da visão, mas a pessoa cega é tão normal quanto a pessoa que vê; a surdez é diferente da audição, mas um surdo é tão normal quanto um ouvinte, e assim por diante.
Não estamos negando a existência da deficiência, mas estamos negando que uma pessoa com deficiência seja deficiente. Não estamos negando que uma deficiência fuja do padrão de normalidade atualmente aceito, mas estamos negando a possibilidade de que, por conta dessa normalidade, se exclua pessoas com deficiência da sociedade. Também, não estamos negando a existência das diferenças, porém, estamos refutando a existência de “deficiências menores ou maiores” como se fossem sinônimo de deficiência e significasse algum tipo de falha, incompletude ou incapacidade.
Reflitamos, agora, a respeito do que levou a se considerar “deficiência” como “diferença” e a mensurar esta, como sendo maior ou menor.
Desde a história mais antiga, relatos há que dão conta da busca pelo que é belo e pelo que é perfeito.
Em que pese essa busca ser relatada, desde sempre, na história da humanidade, os conceitos de beleza e de perfeição são conceitos de padrão de normalidade e, como tal, são mutáveis, temporários e refletem a conveniência social de um dado grupo, em uma dada situação etc.
Assim, beleza e perfeição não pertencem ao escopo da ética. E tomá-los para diferenciar pessoas humanas é antiético.
Entretanto, isso não tem impedido de a humanidade fazer uso desses atributos para diferenciar, sempre para menor, membros da sociedade que fogem ao previsto para esses padrões.
Têm contribuído para esse uso, a própria filosofia, por meio de seus filósofos, e a religião, por meio de seus religiosos.
Os empiristas, por exemplo, consideravam, na falta ou ausência de um sentido, a incapacidade da pessoa. Sob essa ótica, uma pessoa era cada vez “menor/menos”, quanto de menos sentidos se pudesse valer.
A igreja, elegendo a perfeição como atributo máximo de Deus, coloca o homem à caminho da busca da perfeição, mesmo fazendo o reparo de que esta só a Deus pertence.
Esse paradoxo da igreja cristã (Deus é perfeito; o homem busca a “perfeição”; a perfeição é divina; o homem é criado à imagem e semelhança de Deus; o homem não é perfeito) deixa de fora da sociedade aquelas pessoas, cujos atributos físicos, sensoriais, intelectuais etc. são diferentes dos preconizados pela igreja, isto é, por ela considerados dentro do padrão de normalidade, ou seja, de “perfeição”.
Percebamos neste percurso, portanto, que “diferença” substituiu deficiência, distanciou-se de “normal” e foi considerada algo menos que “perfeito”, servindo para perpetuar o lugar das pessoas com deficiência, fora da sociedade. A isso, não se pode considerar ético, e sim exclusão, o que é oposto à inclusão, isto é, a participação de todos numa sociedade para todos e por todos.
Por conta desse entendimento do que é a “diferença”, portanto, a sociedade, como está, expulsa de seu meio muitos de seus membros, e a muitos mais nega a entrada.
Fica patente, então, a necessidade de transformação da sociedade atual, para uma sociedade ética, inclusiva, de pessoas humanas e não de algumas pessoas tão somente.
Mudar, pois, é preciso e essa mudança tem de começar já. A hora é agora, o lugar é este e os agentes da mudança é cada um de vocês. Somos todos nós! Basta que sejamos corajosos para dizer em voz alta que esta sociedade, da qual fazemos parte, não nos serve mais; não responde à nossa compreensão de mundo, não contempla nosso entendimento de quem é pessoa humana entre nós, enfim, que esta sociedade está bichada e precisamos dedetizá-la.
Isso significa, portanto, que devamos aproveitar o que dela está bom e há muito de bom nela, mas que devemos igualmente reparar o que não presta e há muito que não presta nesta sociedade.
A transformação de que falo aqui é a própria transformação de nossos sentimentos, crenças e atitudes perante nossos pares, perante nós próprios, descobrindo, a cada momento, que somos capazes, pela descoberta de que o outro é capaz e descobrindo que temos um grande potencial, pela descoberta e reconhecimento do potencial do outro.
Trata-se, pois, de uma transformação ética, contínua e consciente, e se trata também de uma transformação concreta, já que ela tem de refletir em nossas atitudes, em nossas ações, em nossas falas, e, acima de tudo, em nós mesmos.
A inclusão, portanto, não é algo de que se fala, mas algo que se vive, intensa e conscientemente, contínua e tenazmente, concreta e francamente. A Inclusão é a participação de todos pelo todo, com todos.
A inclusão não é uma mera teoria da moda, mas uma atitude de vida; uma expressão de sociedade e cidadania; uma compreensão de que todos os seres humanos são humanos sem distinção.
Claro deve ficar, então, que inclusão é um processo de transformação, contínuo, que deve ser consciente e que deve começar pela transformação em nós, para emanarmos para os outros, através de nossas ações concretas, éticas e conscientes. Destarte, a Inclusão pressupõe, na prática, reconhecer no outro (pessoa com deficiência ou não), o potencial para aprender e a capacidade de ser. Isso significa quebrar tabus em relação à pessoa com deficiência, implica em pôr por terra barreiras atitudinais; pressupõe um novo modo de ser e viver, sob valores éticos sociais e humanos. Pressupõe viver na cooperação, na parceria, no respeito e, porque não, no amor.
Nesse momento, os que conseguiram chegar até aqui, devem estar pensando que a Inclusão pode ser fácil na fala, na teoria, mas que na realidade, ali “no pega pra capar”, com a pessoa com deficiência de verdade, isso é impossível.
Eu digo que na fala, na teoria é mais difícil que parece, e na realidade, tenho notícias para vocês, é possível sim. Exemplo disso é estarmos tratando desse assunto aqui e agora; é termos pessoas neste exato momento lutando a batalha da acessibilidade, do desenho universal, do respeito aos idosos, do acesso à educação, ao trabalho e ao lazer, com qualidade para todos, enfim, a batalha da sociedade de pessoas humanas contra a sociedade de alguns humanos, fortes sim, mas não invencíveis.
Cabe a vocês decidirem em que lado lutar, pois em um deles estarão, já que nesse embate, os “neutros” tomam o lado da sociedade excludente e segregadora, por omissão, conivência e cumplicidade.
Na revolução do “todos somos diferentes” e não do “todos são iguais”, não se mata o “oponente”, ganha-se-lhe para nosso lado; não se tem o outro como “adversário”, mas como parceiro na solidificação de nossos princípios e ações, enfim, na revolução pela inclusão de todos no todo social, vive-se a totalidade, não o totalitarismo; vive-se a participação de todos e não a de uma parte; vive-se e não apenas se aceita a sobrevivência.
Assim, sendo uma revolução que começou há muito tempo, mas que nos dias de hoje ganha cada vez mais força; sendo uma revolução do contínuo transformar-se; e sendo a revolução das pessoas humanas, o que hoje se chama de Inclusão, e que no futuro se poderá chamar de outra forma, não é uma moda, ou modismo, não é uma mera teoria, é o caminhar para o sempre, é o caminhar para a busca da felicidade de todos, com todos e entre todos. É e será, em última instância, a nova ética frente à diferença, frente à pessoa humana, frente a você e a mim.
A ética, pois, frente à diferença, é a ética de se estar perante a pessoa, em sua totalidade indivisível, com todos seus atributos, sem que um ou mais desses atributos sirvam para oferecer à pessoa o status de “portador de diferenças menores”.
Tratar de ética, aqui, portanto, é tratar da postura humana perante cada uma das pessoas humanas, sem deixar ninguém de fora da humanidade e sem expulsar dela ninguém, sob nenhuma “DESCULPA” ou argumento.
E como vem a humanidade tratando seus membros? Não bem, é fato.
Sustenta-se essa assertiva na necessidade de se estar constantemente elaborando documentos que estabeleçam quais são os direitos humanos, reiterem a existência desses direitos humanos, busquem garanti-los etc.
A postura da sociedade humana, que hora conhecemos, é excludente, desrespeitosa dos direitos de seus membros, subsiste sob uma ótica de “normalidade” e não de uma ética de reconhecimento, de respeito e observância das diferenças inerentes à humanidade.
Nossa fala hoje, portanto, tem como objetivo, desnudar essa postura, colocando-a para fora do que é uma sociedade ética, com valores éticos e com postura ética. Sociedade, em que a ética tem o papel de nortear as pessoas humanas na convivência de todos, com todos, dentro de um todo social, e não de referendar a exclusão de parte dos membros dessa sociedade, por conta da existência de “diferenças”, vistas como inferiores, perante padrões de normalidade, eleitos para uma dada sociedade.
Ora, só será sob os ditames éticos do reconhecimento do homem pelo homem, com suas diferenças, que se verá uma consciência inclusiva ser construída e a sociedade, hoje excludente, passe a ser uma sociedade de cooperação, de respeito e de sabedoria.
Não há inclusão se não houver transformação e não há inclusão plena se a transformação não for contínua, consciente e concreta.
Ao chegarmos ao término de nossa fala, gostaríamos de fazer a seguinte assertiva:
A existência de preconceitos, a respeito da pessoa com deficiência, vem historicamente batendo à nossa porta, encontrando guarida nas casas dos que não têm bem fundados os pilares da ética perante à diferença; da crença no potencial da pessoa com deficiência; na crença na capacidade da pessoa com deficiência; e como somos todos frutos dessa história, cabe a cada um de nós detectarmos onde estamos sendo promotores dessa sociedade segregacionista e excludente, para que possamos ser agentes operadores da transformação social, mesmo que para isso precisemos lutar contra nossos próprios “princípios”, como lutaram aqueles que perceberam que era errado escravizar pessoas humanas, por conta de sua cor de pele.
Em face dessa assertiva, gostaria de deixar as seguintes questões para reflexão:
Que diferença o deficiente tem?
O Que é necessário para que ele alcance o status social de membro pertencente da sociedade em que vive?
O que cada um de vocês está fazendo para a manutenção de uma sociedade de “normais”? e o que cada um de vocês está fazendo para a promoção de uma sociedade humana, onde a diferença é um atributo tão comum, que se é “normal”, pelo simples fato de não se ser “igual”, já que a igualdade não existe na humanidade?

Além de deixar estas questões para reflexão, gostaríamos também de compartilhar com vocês um dos grandes ensinamentos que aprendi, entre outros, com a Cláudia Werneck, autora de grande valor, cujos ensinamentos sustentaram, em grande parte, minha fala de hoje.
Aprendi, e penso que vale a pena reconhecer isso, que na busca de uma sociedade inclusiva, muitas vezes vamos errar, vamos “deslizar” e deixar transparecer o efeito histórico da descrença na pessoa com deficiência, que a sociedade excludente teve sobre nós, vamos ter posturas excludentes, quando nosso objetivo era o contrário, vamos desconsiderar o outro em sua totalidade, quando queremos deixar claro nossa crença na potencialidade dessa pessoa etc. Entretanto, tudo isso não deve tirar de nós a garra de lutar por essa sociedade; isso tudo não pode diminuir nosso valor na revolução que hora se nos apresenta e com a qual estamos envolvidos.
Que revolução é essa?
A revolução em prol de uma sociedade das diferenças; de uma sociedade, onde todos não são iguais, mas todos são diferentes e o sendo, todos estão no mesmo patamar de humanidade.
Então, 3 vivas:
Viva a revolução! Viva a diferença! Viva com a deficiência!
Muito Obrigado.