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O Ônus da Audiodescrição: depoimento de uma mãe

por Lerparaver

Nota do Blog: depoimento de Rosangela Gera durante a realização do seminário "Avaliação dos Primeiros 45 Dias da Audiodescrição na TV"

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Boa Tarde a todos,

Eu fui pega de surpresa com o Projeto de Lei - a Lei Laurinha pelo livro acessível - anunciado pela deputada Rosinha e espero que a Laura traga sorte para sua aprovação porque a luta pelo livro acessível já vem sendo travada por muita gente antes de nós.

Apesar de não ter procuração para falar em nome dos pais e mães das crianças cegas do Brasil, tenho certeza de que aprovariam minha fala.

Compartilho com todos eles, desde que a minha filha nasceu, a experiência de viver em uma sociedade que não pensa em todos os cidadãos. A escola que matricula por força da lei ainda não compreendeu que a educação inclusiva é muito mais do que isso: significa garantir aprendizagem e que o aluno cego tenha o mesmo direito de aprender que o colega que está sentado ao seu lado, isso é compromisso da escola, sua responsabilidade.

Compartilho com esses pais a experiência de ir a uma livraria ou biblioteca e me deparar com a fartura de títulos infantis, todos inacessíveis à demanda de leitura de uma criança cega, e é assim com os sites infantis que produzem jogos que trazem apenas informações visuais, com os brinquedos de tabuleiro que não trazem nenhuma marcação tátil que possa sinalizar e viabilizar sua utilização, com as revistas em quadrinhos e também com os desenhos animados, com os filmes infantis que passam na TV ou no cinema.

Por que será que as pessoas acham que criança cega não gosta de assistir filmes ou ler revistas em quadrinhos?

Não foram poucos os e-mails que enviei a autores como a Ruth Rocha, a Ana Maria Machado e o Ziraldo, perguntando por que não cobram das editoras que coloquem um encarte digital da obra para que as crianças cegas possam ler o livro através do computador ou para que possam imprimir em braile de maneira mais rápida os livros que produzem? Alguns me responderam, disseram sim, que pensam nas crianças cegas, mas que tem o ônus, o ônus da editora.

Também enviei e-mail à produção de revista em quadrinho da turma da Mônica, me responderam novamente sobre o ônus, são mais de 30.000 pontos de distribuição de venda da revista, só dá para pensar em um projeto de acessibilidade para crianças cegas se houvesse uma parceria. Então, falei, não precisa imprimir em braile, disponibiliza no site a revista com audiodescrição, põe um selo de acessibilidade, indicando que naquele lugar do site as revistas podem ser lidas por crianças cegas, mas não obtive resposta.

E também continuei enviando e-mails para revista UOL para crianças, Recreio, Ciência hoje, todos com jogos infantis que criança cega não pode brincar, e até o site Plenarinho da Câmara dos deputados não tem jogo acessível, com eles fiz inclusive contato por telefone, mas nenhum jogo foi desenvolvido pensando nas crianças cegas.

Então, é nesse universo infantil de exclusão que nós, pais, tentamos educar nossos filhos cegos, e dizer a eles que são crianças como outras quaisquer, que têm os mesmos direitos, para que cresçam fortes, com uma boa autoestima, e tudo o mais que querem os demais pais de crianças sem deficiência, mas é dificil responder quando ele ou ela pergunta: Por que não tem livro em braile aqui pra gente comprar? Ou então quando diz, Eu não quero ir ao cinema só com a minha amiga e a mãe dela porque não vão me explicar tudo que está acontecendo no filme, e a gente não gosta do que não pode entender ! Filme não é coisa pra cego.

E então, eu continuei mandando e-mails falando sobre audiodescrição e é por isso, provavelmente, que estou aqui hoje. E se há algo a falar sobre a importância da audiodescrição para crianças cegas eu pergunto: Qual é a importância dos filmes, do cinema, do teatro, das apresentações na escola para qualquer criança? Sabemos a resposta: tudo isso representa lazer, cultura, educação e oportunidade de convívio social, coisas que igualmente são importantes para a criança cega e que só estarão disponíveis a estas através da audiodescrição.

A criança cega precisa caber nesse “todos” de quem produz entretenimento, lazer, cultura e educação. É seu direito.

Mas, não podemos esquecer o ônus. A audiodescrição tem um ônus, por isso foi tão difícil conquistá-la 2horas / semana na TV aberta brasileira.

E agora que falamos do ônus da escola, das editoras, dos produtores de revistas em quadrinho, de sites infantis, e de quem é obrigado por lei a oferecer audiodescrição na TV eu, em nome de todos os pais de crianças cegas, gostaria de saber: E sobre o ônus de ser excluído da aprendizagem em uma escola porque essa ainda não capacitou seus professores como deveria? E o ônus de quem não pode se divertir como seus amigos lendo deliciosamente uma revista em quadrinho ou jogando no computador? E o ônus de quem fica aflito ao seu lado durante um filme perguntando: Quem é a Fiona? Quem está falando agora? Que barulho é esse? O que aconteceu com o burrinho? E o ônus de achar desde criança que cinema, teatro, espetáculos, não são coisas para cego?

Gostaria muito de acreditar que vamos continuar sendo rigorosos em exigir o cumprimento do direito à audiodescrição, o ônus de uma pessoa com deficiência em uma sociedade realmente inclusiva deveria ser apenas o biológico.

O problema da minha filha, das demais crianças e pessoas adultas cegas não é o seu modo de leitura, se utiliza o código braile, ou um programa de computador, o problema delas é encontrar esses livros.

O problema da minha filha não é ter que assistir a um filme com audiodescrição, é a falta da mesma, essa sim que lhe tira o filme.

Bom, espero que possamos realmente refletir sobre o ônus alegado por aquelas pessoas que deveriam fornecer os recursos acessíveis em contrapartida ao ônus dos usuários dessa acessibilidade, porque precisamos realmente pensar em que mundo queremos que essas crianças cresçam.

Obrigada!

Rosangela C. Gera - médica, mãe de Laurinha (11anos)

Fonte: blog da audio-descrição