Por Janice Silveira
Eu tinha, naquele começo de tarde de Abril de 1996, quarenta e seis anos.
Fui para casa sem olhar para a minha sala, no andar térreo do edifício e sem saber que jamais voltaria a trabalhar ali.
Depois de meses de licença, fui aposentada por invalidez e o neurologista me "receitou" uma cadeira de rodas... eu fiquei desesperada, pois estava determinado e comprovado: eu me transformara numa pessoa inválida... e a depressão tomou conta de mim.
Os meus filhos ficaram desesperados e eu mais ainda por vê-los naquele estado. Os três "meninos" se fizeram presentes e me deram presentes. Mas, o mais significativo foi um computador, pois eu já não podia manuscrever.
Amigos iam me visitar e muitos levavam livros: emprestavam-me ou presenteavam-me. Certa vez um livro veio com um marcador de textos de um metal qualquer e eu ouvi a explicação bem humorada:
"- O marcador de textos é presente, mas o livro é só emprestado."
Quando, no final da tarde, a dona do livro, antiga colega de trabalho, foi embora, eu abri o livro (autobiografia da Ágatha Kristie) e vi a dedicatória assinada pelos filhos, ainda crianças, da minha amiga e entendi porque ela o queria de volta. Eu nada sabia sobre a vida da famosa escritora e fiquei curiosa. Apoiei o livro sobre as pernas, abri com dificuldade, mas:
- Que transtorno!
Esbravejei porque as letras "dançavam" diante dos meus olhos, fazendo com que eu começasse a ler numa linha e terminasse em outra, de modo que nada fizesse sentido. Mas eu ouvi minha própria voz esbravejando e me policiei... e pensei que já havia vencido outros transtornos.
Então eu segurei o marcador no sentido horizontal e fui colocando-o sob cada linha, de modo que as letras não podiam "sair" do lugar. Quando eu chegava ao final de uma linha, adoptava o mesmo procedimento para a linha seguinte e, depois de quinze minutos, eu havia lido uma folha.
- Uma folha só? Quanto tempo eu levarei para ler o livro todo?
Perguntei-me e desanimei. Já era tarde. Fechei os olhos e deixei o livro pra lá. Tomei um antidepressivo e dormi.
Era quase a metade do dia seguinte quando acordei. Lembrei do livro e da minha amiga afirmando que eu gostaria dele e pensei que não pretendia sequer lê-lo.
Mas eu me perguntava como teria sido a vida da famosa escritora...
E recomecei com o mesmo procedimento, improvisado, do dia anterior... Era desanimador, mas eu sou teimosa e um mês depois, ao terminar aquele livro, as letrinhas já não "dançavam" mais.
Enquanto isto, o Terapeuta Ocupacional insistia para que eu usasse o computador. Mas me causava um enorme desgosto "catar milho" lentamente. Um dia ele pegou aquele livro, abriu-o, deixou-o ao lado do computador e disse que eu tentasse copiar.
E eu tentei. Juro que tentei. Só que me faltava motivação, porque por mais interessante que fosse o livro, já estava pronto... Eu até já tinha lido!
A esta altura eu já morava numa casa apropriada para pessoas com dificuldade de locomoção... Eu? Eu.
Muito contrariada a princípio, eu me comunicava através do computador. E fui tomando gosto. Mas, gosto mesmo eu tomara pela leitura e comprava livros pelo computador. E lia, lia, lia...
Eu já não tomava remédio contra a depressão.
Um dia comecei a digitar um texto: num dia eu registrava o que me lembrava da minha vida, desde o meu nascimento e, no dia seguinte, o que me acontecia no presente. Eu procurava pôr as lembranças em ordem cronológica no papel, pensando que um dia os acontecimentos passados e presentes se encontrariam ali...
O arquivo com o tal texto foi ficando grande e assim nasceu o É ASSIM, o primeiro livro que escrevi. Nenhuma editora se interessou, então eu editei-o de forma independente: que dificuldade! Como eu tinha algumas poesias feitas e engavetadas e, em paralelo, alguns assuntos já resolvidos sobre os quais eu não sentia necessidade nem vontade de falar, uma pequena parte do É ASSIM
é em verso.
Eu sempre gostei de escrever e o que escrevia sempre agradou a todos mas, além dos escritos a que me obrigava o trabalho, eu sempre me limitara a bilhetes e cartões...
Fiquei motivada pelo É ASSIM, e enquanto batalhava por ele, eu fazia poesias que retratavam o que eu penso da vida e que ficavam cada vez mais sintéticas. Com o propósito já estabelecido previamente, nasceu o EM VERSOS, que quando ficou pronto, me pareceu uma continuação do É ASSIM (esta característica do EM VERSOS não foi proposital, eu juro!).
Hoje eu tenho um "escritório" adaptado na garagem da minha casa e estou ultimando um livro dedicado a todos os deficientes e dirigido a qualquer pessoa: o 'NA PERIFERIA DA VIDA?', deverá ser publicado no final de novembro do corrente ano (2001).
Evidentemente, sem copiar nada, toda pessoa que quer ampliar seu mundo lê muito e eu leio ...leio... leio. E escrevo ainda bem devagar, "catando milho"...
Entre leitura e escrita, eu traço planos para o futuro...
Eu não sei se haverá amanhã para mim, mas ouvi uma frase que fez valer a minha vida inteira, quando um dos meus filhos, já pai, entrou no meu escritório, olhou para as prateleiras abarrotadas de livros e disse:
"- Mãe, a recuperação da sua auto-estima não tem preço."
Gosto de pensar que vou ser, para a minha descendência, uma pessoa da qual se orgulhem... para colaborar com a auto-estima deles.
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