Kátia Catulo (texto)
Leonardo Negrão (foto)
Sem ajuda não teria dado dez passos seguidos
Começo pelo fim. Isto é, pelos agradecimentos. Só não sei a quem devo estar grata. Não vi o rosto, nem tão-pouco sei o nome dos que me ajudaram a atravessar a rua; de quem evitou que tropeçasse nas grades de cerveja no meio da estrada; daqueles que me desviaram dos carros mal estacionados, das caixas de electricidade, das abas de acrílico das cabinas de telefone, dos vidros das paragens dos autocarros ou de tantos outros obstáculos que a minha bengala de cego foi incapaz de detectar a tempo de evitar um acidente em Lisboa.
Sem as mãos que me guiaram pelo melhor caminho, sem os toques no ombro que me conduziram para longe das calçadas esburacadas, sem os avisos que me salvaram até de pisar cocós de cãezinhos esquecidos nas ruas, sem aqueles ou aquelas que me abriram portas, seguraram cancelas, me compraram bilhetes de metro, me adoçaram o café, me temperaram a salada do almoço, esta semana não existiria a rubrica Na pele de...
Sozinha não teria dado dez passos seguidos. Caminhar com uma faixa dupla de gaze colada nos óculos de sol é mais ou menos o mesmo que tentar ver através de uma serapilheira. Distinguem-se as formas e os vultos, mas isso não chega para ultrapassar as barreiras que existem a cada 20 ou 30 metros desta cidade. Os passeios não são rebaixados, os mupis de publicidade tanto estão no meio como à esquerda ou à direita, os fornecedores de cafés e restaurantes descarregam a mercadoria em qualquer lugar, os pilaretes, os degraus, as árvores, as bocas de incêndio, as cadeiras e as mesas das esplanadas, as obras, tudo isso surge no meio do nada e é suficiente para provocar um trambolhão.
Mal pus o pé na rua, lembrei-me dos conselhos do cego que me vendeu a bengala, no dia anterior. Rui Fontes, um dos proprietários da loja Tiflotecnia, na Avenida Álvaro Pais, avisou- -me para estar atenta aos ruídos da cidade porque são um bom método de orientação. Mas as dicas de nada me serviram. Para um ouvido pouco treinado como o meu não há como distinguir os sons que uma cidade produz a cada segundo. Os motores dos automóveis e dos autocarros, as sirenes dos bombeiros e da polícia, os toques de telemóveis, as buzinas, as conversas à entrada das lojas, os alarmes dos carros, não mostram o caminho a quem não teve muito tempo para aprender a andar às cegas na capital.
Prestáveis e desastrados
E, portanto, entreguei o meu destino aos lisboetas com quem me fui cruzando sem saber. O auxílio veio de todos os lados e em abundância. Por vezes em demasia e de forma desastrada. "Por favor, onde é que está a passagem de peões?", quis saber junto de um homem, que se aproximou de mim para me ajudar no cimo da Rua Conde de Redondo. "É já mesmo ali, menina. Está a ver?" A resposta saiu sem pensar, mas foi preciso esclarecer que "não, por acaso não estou a ver", para o meu interlocutor cair em si. "Ó pá, tem toda a razão, mas não ligue que é a força do hábito", desculpou-se e logo depois agarrou-me no braço e levou-me até ao outro lado da estrada para compensar o mal-entendido.
Outros, ainda, confundiram cegueira com surdez, subindo o tom de voz para facilitar a comunicação: "Vá sempre em frente e depois dobre a esquina à direita, não tem nada que enganar", explicou-me uma idosa quase aos gritos. Disse que sim a tudo e fugi dela, com o passo acelerado e com a desconfortável sensação de que toda a gente estaria a olhar para mim.
Atravessei também estradas que não queria, pois viram-me parada à beira do passeio e deduziram que pretendia passar para o outro lado. Levaram-me para caminhos opostos ao que tinha inicialmente planeado com o repórter fotográfico só porque decidiram que era o melhor trajecto para chegar à Avenida da Liberdade, tal como tinha pedido. "Mas eu prefiro ir pela Gomes Freire, virar para a Conde Redondo e apanhar a Alexandre Herculano." A frase ficou a meio porque quem vê é quem tem razão. E eu, que pensava estar na Rua Luciano Cordeiro, estava afinal na Gomes Freire. "Não senhor, vá pela Duque de Loulé que é a descer e põe-se lá num instantinho", interrompeu-me o proprietário do café que me serviu uma bica na esplanada, em frente às instalações da Judiciária. Puxou pelo meu braço, ziguezagueou por entre os transeuntes, conduziu-me até à esquina e tenho cá a impressão que ficou no cimo da avenida para se certificar de que eu seguia à risca as suas instruções.
Os morangos mais bonitos
Outro remédio não tive senão descer às apalpadelas dois quarteirões, virar à direita, virar outra vez à direita, virar à esquerda, regressar à Gomes Freire - que julgava ser a Rua Luciano Cordeiro - e atravessar até à Bernardino Ribeiro para fazer aquilo que toda a gente faz. Ir à mercearia, à padaria e ao talho. "Tem morangos? Quero dos grandes, por favor", pedi ao comerciante à porta da loja. "Tenho morangos, mas eles não são muito grandes", confessou o homem. "Então, por favor escolha-me os melhores que não quero os que estão machucados", avisei, abrindo um sorriso trocista. "Ó menina... eu não sou de enganar ninguém e vou escolhê--los a dedo para si."
E, de facto, escolheu os frutos mais bonitos. Só quando pousei o saco das compras em casa percebi que os morangos estavam inteiros, que as bananas eram "maduras q.b. e as maçãs vermelhas e rijas". Exactamente como pedi. Nem no troco, o merceeiro se enganou. Tirei da carteira um punhado de moedas, espalhei-as em cima do balcão e ele, por sua vez, tirou a quantia certa e devolveu-me o resto. Não foi caso único. Repeti o gesto na padaria, na esplanada do Rossio, na Loja do Cidadão dos Restauradores, nas bilheteiras dos barcos para o Barreiro, no Terreiro do Paço, com o funcionário da estação do Metro do Marquês de Pombal e no quiosque da Rua Alexandre Herculano, onde comprei tabaco. Nenhum deles levou um cêntimo a mais ou a menos. Até eu, que sempre tive fé na raça humana, fiquei incrédula quando cheguei à redacção e conferi várias vezes os trocos que guardei em bolsos separados.
Não sei se foi honestidade genuína ou se ninguém tem coragem de enganar uma ceguinha. Em todo o caso, percebi que a minha condição temporária fez de mim uma pessoa privilegiada em algumas situações. Entrei na Loja do Cidadão dos Restauradores disposta a passar por tudo aquilo a que os outros se sujeitam - tirar a senha, sentar-me na sala de espera, aguardar a minha vez e comprar os impressos para renovar o bilhete de identidade.
Passar à frente de todos
Dirigi-me ao balcão de informações para saber qual o guichet, mas não me deixaram dar nem mais um passo. A funcionária chamou o colega pelo intercomunicador. O colega desceu as escadas, conduziu- -me até ao elevador e juntos subimos até ao primeiro piso, onde passei à frente de toda a gente. Ninguém protestou. Comprei os impressos e desci, sempre acompanhada, até à porta da rua. Se quisesse, explicou-me o funcionário, poderia usar a sua ajuda para "preencher os papéis, tirar as fotos e tratar de tudo em poucos minutos". Confesso que me senti tentada. Mais tarde ou mais cedo, terei de voltar à Loja do Cidadão para renovar o meu BI, caducado em Fevereiro. Terei de tirar a senha e esperar pela minha vez. Terei de perder uma boa parte da manhã para tratar destas burocracias, que, se pudesse, até pagava para alguém as fazer por mim. Mas o descaramento tem limites e, por isso, agradeci a boa vontade e recusei a oferta.
Até porque não queria perder mais tempo. Tinha ainda de almoçar numa esplanada do Rossio, apanhar o barco no Terreiro do Paço para a outra margem e regressar a Lisboa. Há mais de três horas que varria as ruas com a minha bengala e confesso que fiquei exausta. Custa muito ter de caminhar com medo de cair, de tropeçar e, sobretudo, de sentir que muitos olharam para mim com piedade. Tive vontade de ser malcriada e de responder que era cega e não uma coitadinha. Controlei o meu mau feitio porque, afinal, uma das vantagens de vestir a pele de alguém é poder despi-la a qualquer momento. E mesmo nas alturas mais complicadas soube que bastaria tirar os óculos de sol para recuperar a visão. Com os verdadeiros cegos já não é assim.
Fonte: http://dn.sapo.pt/2008/04/27/sociedade/e_mesmo_menina_esta_a_ver.html
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