HOMENAGEM A JOAQUIM GUERRINHA
PELO QUADRAGÉSIMO ANIVERSÁRIO DA SUA MORTE
Passados longos vinte e sete anos de silêncio após a sua morte, já muito foi dito sobre Joaquim Guerrinha desde 2005, a partir da publicação da sua Biobibliografia intitulada “Uma Luz na História / Joaquim Guerrinha 1913-1976/ Um verdadeiro impulsionador da causa dos Cegos em Portugal”, de que sou autora.
Houve diversos Lançamentos e também algumas Conferências, Debates, Comunicações a propósito da figura central deste livro; posteriormente, repetiram-se estas cerimónias a quando da ligação do seu nome à toponímia de Sines (25 de Abril de 2008), tal como ficou assinalado em placa:
RUA
JOAQUIM GUERRINHA
(1913-1976)
MÚSICO E TIFLÓLOGO
No ano de 2013, na comemoração do centenário do seu nascimento, novas oportunidades surgiram e, tal como nas cerimónias anteriores, o Diário de Notícias e, sobretudo, a Imprensa Regional Alentejana (Sines, Santiago do Cacém, Santo André, Évora…) deram voz a todos estes eventos, nas datas respectivas, ao mesmo tempo que apresentavam uma nota biográfica sobre o homenageado, ainda conhecido de muitos como um mito, em terras alentejanas.
Do mesmo modo, as Revistas Tiflológicas “Poliedro” – Porto e “Ponto e Som” – Biblioteca Nacional de Portugal, bem como os “sites” da “Acapo” e do “Lerparaver” adoptaram a mesma política, ou seja, divulgaram os acontecimentos e biografaram sempre Joaquim Guerrinha, nestes casos, mais como reflexão pedagógica que visaria sobretudo os mais novos, dando-lhes a conhecer em curtas, mas sintéticas linhas, a luta titânica que os primeiros cegos cultos enfrentaram para desbravar caminhos e proporcionar às novas gerações uma vida menos dura…
Como mera curiosidade, acresce dizer que no dia 30 de Outubro de 2005, no Programa “As Escolhas de Marcelo”, o actual Presidente da República, na análise semanal de livros que fazia nessa época, comentou a referida Biobibliografia, definindo J.G. “como um indivíduo notável, que esteve na origem de Associações de Cegos, atravessando tempos difíceis, pois era um Comunista na clandestinidade”.
Isto significa, “a priori”, que, sendo tão diversificados, hoje em dia e, neste caso específico, os canais de informação ao serviço das pessoas com deficiência visual, só não acedeu quem não quis, só não se inteirou de toda esta dinâmica quem a excluiu, à partida.
Porém, e porque se cumpriram a 21 de Fevereiro p.p. quarenta anos sobre a morte de Joaquim Guerrinha, importa reavivar memórias, tocando ao de leve nos pontos mais enriquecedores da sua formação e do seu desempenho como humanista, músico e tiflólogo.
Esta abordagem dirige-se, não só à habitual imprensa regional e tiflológica, como a todos os ouvintes e intervenientes deste novo modelo de comunicação, para o qual fui convidada e que tem lugar no próximo dia 2 de Abril, às 22H. Uma espécie de audioconferência, em que, com toda a seriedade, se debatem temas de interesse comum, neste caso específico, de natureza tiflológica.
É meu objectivo que esta comunicação vise sobretudo os mais jovens, aqueles que pisando hoje uma passadeira de esperança, encontram na sociedade actual uma resposta mais adequada e mais imediata às suas necessidades e, por isso, já não chegaram a confrontar-se com os porquês, o como e o quando de outras eras.
Assim sendo, e porque há alguma bibliografia que pode ser consultada sobre o homenageado, em diversos suportes: livro (a negro e em Braille), áudio e digital, passarei à frente o momento do seu nascimento, os desvarios que lhe causaram a cegueira irreversível aos 18 meses de idade, o seu crescimento no seio de uma família pobre, servindo os latifundiários alentejanos no auge da primeira guerra mundial e, finalmente, a sua mudança radical de vida pela abertura das portas do Alentejo face à sua entrada no Instituto Branco Rodrigues, na zona de Lisboa, Estoril, com sete anos incompletos, a que se seguiu a sua formação exemplar neste Instituto. Aproveito, aliás, a oportunidade para salientar o alto nível cultural que se praticava nesta Escola e que marcou de forma indelével todos os seus ex-alunos.
Quem lê, quem acede e, por isso, conhece… será agora confrontado apenas com uma curta retrospectiva de carácter biográfico, em que ouso recordar a nota brilhante de 19 valores no seu Curso Superior de Piano do Conservatório Nacional de Música de Lisboa, bem como o facto de ter sido o primeiro cego que ganhou o Prémio do Conservatório na disciplina de Piano; de como foi amparado por duas Instituições – a Associação de Beneficência “Louis Braille” e o “Rotary Club” de Lisboa e do Funchal, cidade esta em que se lançou, aos 23 anos de idade, como grande Concertista, noticiado em toda a Imprensa local por ter sido amplamente aplaudido nos melhores salões do Funchal, nomeadamente no Casino da Cidade e no Teatro Municipal Arriaga, posteriormente chamado Baltasar Dias; os mesmos êxitos se repetiram no Continente – Lisboa, Évora, Região da Curia, Porto. Em simultâneo com estas actividades concertistas e com frequentes audições a Solo, noticiadas nos Boletins da Rádio, integra a formação do Sexteto de Cegos da Emissora Nacional, na qualidade de Pianista, entre 1938 e 1973, com audições semanais, (ou seja, entre os seus 25 e 60 anos de idade). Feitas as contas, num total de 35 anos e, sublinhe-se, sem qualquer direito a reforma.
Numa outra dinâmica, que decorreu em paralelo com a sua formação musical e o consequente desempenho, acima referido em instituições públicas, abraçou o tifloassociativismo de alma e coração, em diversas vertentes:
Pela via da escrita, entre 1936-38 publicou na Imprensa do Funchal e de Évora duas Séries de Artigos: a primeira, sobre a Vida dos Cegos Através dos Tempos, em 16 capítulos; a outra Sequência, 11 Artigos sobre a Vida Experiencial da Pessoa Cega.
Pela expressividade da sua comunicação oral, fez um número impreciso de conferências, debates, palestras e foi também entrevistado em todas as Rádios de Lisboa que desabrochavam na década de trinta e se consolidavam em quarenta.
Pelo seu sentir, pelo seu humanismo e pelo seu carácter impulsivo, dedicou-se à problemática da cegueira, inserindo-se, de corpo inteiro, na vida associativa: aos 22 anos já ocupava cargos de chefia na Associação de Beneficência “Louis Braille”, interrompidos pelas suas deslocações ao Funchal em 1936 e 1937, sendo, contudo, aguardado com ansiedade, para se entregar à resolução de problemas emergentes da classe.
De facto, por razões devidamente explicitadas na Biografia, só em 1941 se assumiu como Director desta Instituição, tendo trabalhado intensamente para a integração da pessoa cega na Sociedade, pela via da cultura. Manteve-se nesta Associação durante 10 anos, ao fim dos quais, devido a uma cisão entre os associados, Joaquim Guerrinha encabeçou um movimento separatista e, em 23 de Julho de 1951, é co-fundador da Liga de Cegos “João de Deus” que, por ausência de instalações, esteve sediada durante os primeiros seis meses, na sua própria casa.
A “Liga”, como familiarmente todos chamávamos, tornou-se, devido à acção pedagógica e cultural de Joaquim Guerrinha numa casa de cultura, com o alvará do Ministério da Educação, onde se acolhiam estudantes de todos os níveis de ensino e onde aqueles que já tinham atingido níveis de formação mais avançados se iniciavam, eles próprios, na prática da docência, dirigida aos principiantes. Nesse sentido, para além das conhecidas Salas de Estudo, criaram-se condições para que o desempenho desses estudantes (professores e alunos) pudesse ser maximizado, pelo recurso permanente a gravações áudio e a leitores voluntários, bem como à produção possível da escrita Braille e recurso a copistas.
Em toda a sua vida, Joaquim Guerrinha usou sempre da palavra em festividades e aniversários oficiais das Colectividades. Na década de sessenta deu o seu contributo em Simpósios e Mesas Redondas, sendo-lhe reconhecido o mérito de abrilhantar relatos autênticos, alguns anteriores ao associativismo, mas devidamente enquadrados numa sequência cronológica, fruto da sua prodigiosa memória.
Como é do conhecimento geral, a ACAPO (Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal) é hoje a herdeira dos destinos destas duas Associações, bem como do Instituto S. Manuel, no Porto.
Para concluir esta visão de um homem multifacetado, que na Música foi um virtuoso, na Tiflologia, polivalente, permito-me citar um pequeno excerto da sua Biografia, Capítulo 7, pág.93:
“A TRAVESSIA DO SUCESSO
A bordo do Paquete LIMA, Joaquim Guerrinha fazia a travessia do Atlântico para alcançar a Ilha da Madeira, a Pérola do Oceano, como os poetas a designavam. Vinte e dois anos sonhadores! Que expectativas teria este jovem?
Tornar-se, simplesmente, um Concertista afamado?
Continuar, isoladamente, a sua luta pela emancipação da pessoa cega?
Ou usar, conscientemente a MÚSICA COMO VEÍCULO para atingir este último objectivo?
É que ao revelar-se ele próprio ao público, consciente do seu bom desempenho e do seu exemplo, despertaria, quiçá, uma Sociedade adormecida, para, sem entraves, passar a reconhecer a igualdade de direitos da pessoa deficiente visual e descobrir-lhe potencialidades que lhe permitissem desempenhar um papel activo e responsável, em cooperação com os outros cidadãos, na construção dessa mesma Sociedade.
Então a sua “performance” teria de ser excelente, a sua apresentação muito digna e, se possível, dar a conhecer a sua instrução e cultura, com a maior modéstia e humildade.”
E foi assim o seu agir: pela Música se deu a conhecer, teve acesso à Imprensa, à Rádio, abriu caminhos para a inserção social das pessoas com deficiência visual pelos mecanismos culturais que desencadeou e, na sua dura e prolongada luta associativa que durou 44 anos “abriu os olhos” a um país desinformado, mostrando que um cego culto pode ombrear com os que vêem.
JOAQUIM GUERRINHA casou-se em Lisboa aos vinte e oito anos, com uma jovem madeirense da sua idade, que conheceu no Funchal em 1936, a quando dos seus Concertos e com a qual viveu uma linda história de amor. Teve três filhos, nascidos na década de 40, com quem partilhava toda a sua alegria. Mas… a intensidade da vida associativa veio a interferir profundamente no equilíbrio familiar. Contudo, ainda teve tempo para renovar aquele encantamento com os quatro netos que conheceu, sobretudo com os dois primeiros.
Nos últimos anos da sua vida ganhou prémios em vários Jogos Florais, promovidos, à época pela Associação de Beneficência “Louis Braille” e pela Biblioteca Nacional, este, já como prémio póstumo.
Falando de Joaquim Guerrinha como humanista, todos que o conheceram o identificavam como uma alma mística e sensível; defendia o Comunismo desde jovem, como opção política, talvez em estreita relação com as suas origens. Curiosamente, nasceu em 1913, como Álvaro Cunhal e, movido pelos ideais comunistas, infiltrara-se numa célula do Partido, transportando nas suas algibeiras Jornais e Panfletos que distribuía na clandestinidade, não correndo tantos riscos, pelo facto da Pide não desconfiar de um Cego, assim dizia ele.
Este ideal comunista enquadrava-se, aliás, no seu perfil espiritual, de tendência esotérica que o acompanhou, desde muito jovem, até ao fim dos seus dias. Frequentou organizações Místico-Filosóficas como a Ordem Rosa Cruz, Sociedades Teosóficas, Federação Espírita… Mas, pelos compromissos familiares e de trabalho teve que abandonar estas Reuniões; ocupava, porém, largas horas da noite a fazer Meditação… e a sua vida tornou-se uma entrega permanente de si próprio. Não sabia negar qualquer pedido, nunca construía uma frase na negativa, nunca se queixava e, também nessa óptica, ninguém o ouvia dizer “estou doente!”. Por isso, o seu enfarte fulminante nos deixou a todos perplexos e num luto amargo, mas que agora interpreto como uma bênção dos Céus, pois nem o seu corpo nem a sua mente conheceram a degradação física e moral.
A sua força interior era luminosa, avessa aos pensamentos negativos e o que verdadeiramente ressaltava no seu perfil psicológico era uma jovialidade constante e um optimismo inabalável; uma genuína bondade e um sorriso bonacheirão; um querer bem a toda a gente … num amor incondicional… Perdia-se pelos amigos… dava-se inteiramente.
Foi sempre pobre em recursos materiais, mas viveu a opulência da partilha e do amor!
Dalila Guerrinha
19.03.2016
MENSAGEM PARA O DIA DO PAI
Querido Pai, partiste há 40 anos… e em que dimensões te encontras agora?!
Intuitivamente sei que estás rodeado de luz e que percorres espaços sem fim absorto numa felicidade total.
Creio que tenha sido fácil para ti libertares-te do corpo físico após o momento de transição desta oitava terrena para os domínios do espírito.
Tinhas percorrido na vida quantas estradas místicas, davas-te momentos de intensa meditação, onde sentias passar por ti, de quando em vez, uma espécie de brisa… anunciando a presença inequívoca de seres sublimes, porventura de outras esferas mais elevadas que te trariam o conforto e o amparo necessário para que te mantivesses firme na senda, na escalada daquela montanha que te projectava para dimensões etéricas, onde terias ouvido, sem dúvida, as mais belas harmonias que nem tu terás executado, como virtuoso que foste da arte pianística.
Creio, repito, que tenha sido fácil para ti libertares-te do corpo físico, dada a tua vivência destas matérias esotéricas que não só fizeram de ti o Homem que foste, o Homem que te fez agarrar intensamente a vida, com devotado empenhamento, mas que, ao mesmo tempo, te ensinaram a desprender-te suavemente da matéria, da vida terrena, da luta quotidiana… sem medos, sem emoções infantis, sem apegos.
Sim, reitero essa faculdade imediata de desprendimento do corpo pela ânsia de luz e de ascensão que em ti preexistia. Não ficaste a pairar na Terra, a adaptar-te à tua nova condição; antes, o teu espírito, livre do peso e das limitações do corpo, de imediato se desprendeu do túnel de luz, aquele canal que liga a Terra ao infinito, e subiste, subiste… até te expandires na atmosfera celestial, face a face com a luz autêntica, com a plenitude, com a beleza suprema onde, em harmoniosas sinestesias, emerge a tua Presença do EU SOU, envolta nos círculos concêntricos que formam o teu Corpo Causal, manancial de virtudes e de tesouros que acumulaste no Céu.
Acuso a tua marca, esta percepção mística do Alto que me fortalece e ampara, a passo descortinada…
Um dia, na doçura do entardecer, no meu regresso a casa, partilharemos esses espaços infinitos e seremos luz radiante!
Dalila de Jesus Guerrinha
19.03.2016
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