Certa vez, encontrei um colega que não via há tempos. E então, meu amigo, soube que iniciou a faculdade. Que coisa boa! Como caminha na nova empreitada? Com um longo suspiro de desânimo, disse-me: Na verdade, não muito bem. As pessoas não ajudam. Todos os dias, os professores indicam novas leituras. Pedi a colegas de classe que gravassem os textos em cassetes. Lá estão sempre a fugir. Dizem que não podem por este ou por aquele motivo. A verdade é que não querem fazer mesmo. Faço tudo quanto posso, mas é inevitável desanimar. Acham que não conseguimos. Você conhece o velho preconceito...
Fiquei estarrecido e tentei reconstituir a cena. Estão todos a tatear os seus relacionamentos. Um riso sem graça, uma palavra formal... Aos poucos a conversa ganhará naturalidade, mas no início é protocolar, é medida. Então, deparam-se com um aluno cego. Eis a nota, a princípio, dissonante. Sonhou com o orgulho dos familiares, com os arvoredos do campus, com as reuniões do grêmio, com as festas de amigos, mas jamais sonhara com a presença de um cego na sala de aula.
Não, não era ruim. Era simplesmente diferente. Porque sonhara com todo o resto, eis que se havia preparado para receber o seu sonho. Na verdade, teria preferido não dizer nada. Porque cegos estão a passar por mim, tenho de dirigir-lhes a palavra? Todos os dias, deparamo-nos com centenas de pessoas e não temos de dizer nada... A autocomiseração se lhe inscreve no rosto e, afinal, mais estou para os sorrisos do que para as lamúrias.
Sim, o cego sabe que não pode atravessar toda a jornada sem ajuda. Por isso, vale-se do semblante treinado para a piedade. Talvez não se reverta em simpatia, mas atrai o espírito de ajuda. O professor distribui as tarefas. Há tantas leituras para o semestre quantas houve em sua vida. Não há livros em Braille. Se não os obtiver em cassetes, não poderá prosseguir. Compreende-se que esteja tenso. Para alcançar aquele passo, a luta foi renhida.
Então, chega o momento de desferir o golpe. Alguém se aproxima. É o primeiro a aproximar-se. Tem de ser preciso. Tem de adiantar-se as manobras evasivas. Se lhe pedir que grave este texto neste cassete, você o faria? Se não fizer, inauguro o ano com um zero. Pouco importa que gagueje ou tenha má dicção. Não é coisa com que se tenha de preocupar. Pronto! Não há de fugir. Fê-lo à frente dos demais colegas. Seu espírito de solidariedade está posto à prova.
Muito rapidamente o seu interlocutor descobriria o verdadeiro sentido da igualdade. Sim, cegos são pessoas iguais a quaisquer outras para o bem, mas também, para o mal. Cativam e manipulam; agradecem e insultam; sujeitam-se, mas também oprimem.
Estava ganha a ajuda e perdido o amigo. Todos entenderam que era justo o pedido. Entretanto, ponderaram que não tinham muito talento para a locução e, por isso, como medida preventiva, optaram por manter-se à distância segura. Só mais um pouquinho e um amigo, sim, porque teria amigos, ter-lhe-ia perguntado como é que pretendia estudar. Teria dito que estava um tanto preocupado, mas que tudo havia de arranjar-se. E este amigo, conquistado com o calor da afeição sincera, ter-se-ia oferecido não a ajuda, mas a partilha. Teria descoberto que na partilha, não há débitos ou créditos em favor de qualquer das partes; que cada um se dá, não porque deseje receber, mas porque é inevitável.
- Partilhe no Facebook
- no Twitter
- 4124 leituras