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- blog de Anacristina

No café, na rua e nas escadas rolantes

por Anacristina

Na Sexta-feira fui para a Batala esperar pela camioneta das sete e meia da tarde, depois da aula de Língua Portuguesa. Estava numa aula de Mobilidade.
Comecei a ter fome e pedi para entrar no café ao lado da garagem onde saem as camionetas. Era um cheirinho a frango, a prego no prato... enfim, todas aquelas coisas que fazem crescer água na boca de uma pessoa já um pouco esfomeada... mas quem não tem fome com aquele cheirinho?!
Entro no café e dirijo-me ao balcão para pedir um prego no pão, porque já não tinha tempo para o prego do prato. Espero pela minha vez. E... a minha vez nunca mais chegava! O professor de mobilidade afastou-se para que fosse eu sozinha a fazer as coisas... mas não me desenrasquei e ri-me depois. Porque é que a minha vez não chegava? porque quem estava por detrás do balcão apenas olhava para mim e não falava! Situação estranhíssima, porque nunca me aconteceu... o professor disse-me que era a minha vez e eu respondi ao tal senhor que se eu era cega, como é que eu ia ver que ele me olhava? E calado, ainda por cima...
E depois, quando me serviu, a situação ainda foi mais estranha. Não conseguia falar comigo, apenas com o professor. Comecei, é claro, a irritar-me e desta vez respondi que um cego não é atrasado mental!

Na rua:
Certa vez um amigo, que também é cego e que gosta de se rir à custa dos "normais", contou-me isto:
Ia na rua, o trânsito era muito. Chegou a altura de ele atravessar a rua. Todos os carros param. Acontece-me a mesma coisa, fico insegura se devo ou não atravessar. Ele teve este gesto. Uma pessoa que via estava atrás dele. Um indivíduo começa a acenar, a acenar e o meu amigo não se mexe! Abre o vidro e diz:
- eh pá! estou farto de acenar e não atravessas?
- A minha bengala não lhe diz nada?
- ah... ah... desculpe, desculpe, tem razão...
E ele próprio saiu do carro e atravessou-o.

Nas escadas rolantes
Isto já se passou comigo...
Fui uma vez ao shopping. Ia em aula de mobilidade e aprendia a andar nas escadas rolantes. uma pessoa vê-me com a bengala... e começa logo aos disparates que um cego nem sequer devia ver as escadas, que é um perigo enorme, que quem estava comigo era um irresponsável...
E eu, só para assustar a pessoa, passo à frente da professora e começo a fingir que caio... coitados! foi para eles um enorme susto... e no fim, quando saí, perguntei se não desci bem, se o facto de ser cega me impedia de fazer o que eles faziam... imaginem, não tiveram resposta.
E com alguns amigos acontece a mesma coisa. Mas isso eu compreendo. Têm medo que eu caia, mas nada de comentários... e eu gosto também de pregar minhas partidas... clool!
Sinceramente estas coisas fazem-me rir à brava. Será que os "normais" são assim tão normais? deixo-vos a reflectir, que eu também reflicto muito nisto.

Comentários

Olá Ana !!

O q é q aprendes nas aulas de mobilidade ??
Essas aulas são na rua, essencialmente práticas ou teóricas ??

Já me tinha percebido, e vejo que és impulsiva: irritas-te fácilmente e ages por impulso !! lol
Temos que aprender a controlar os nossos impulsos !! lool

Eu ontem, também fiz das minhas !! loool
Fui duro com a minha mãe, e depois fiquei arrependido, mas ela não me parava de chatear e o balão arrebentou !!
Mas é coisa rara de acontecer comigo, eu sou geralmente calmo !! loool
Logo à noite devo-lhe um pedido de desculpas !! loool

Só mais tarde, quando tudo passou, ficamos a rir !! looool

As pessoas em geral reagem mal perante a presença de cegos !!
E caem no ridículo de chamar coitadinho e outros palavrões ... !!
Mas ... nem todas as pessoas são iguais ... !!
E hoje em dia, já há algumas pessoas sensíveis a essas questões, q até ajudam a atravessar, ... !!
É tudo uma questão de sensibilidade !! Há pessoas mais sensíveis e outras menos a estas questões !!

E só com o nosso testemunho, é q poderemos inverter as coisas !! lol

Olá Ana!

Olha, amiga, realmente cada vez me surpreendes mais, pois tens sempre coisas interessantes para falar aqui neste espaço.

São três histórias ligeiramente distintas, mas cujo tema poderia ser muito bem como «a relação entre o cego com o meio Social», e mostram que ainda há muita ignorância neste país em relação à nossa deficiência.

Um destes dias estava eu, calmamente, à espera do autocarro, na Paragem da Feira, na Areosa, e qual não é o meu espanto quando o mesmo não parou!... Então ele não viu a minha bengala, que estava aberta? Nunca me tinha acontecido tal coisa... E repara que estive muito tempo em Lisboa...

Concluindo e respodendo às tuas colocações, claro que um cego pode perfeitamente utilizar a escada rolante, o Metro,..., tudo o que uma pessoa com visão normal faz, mas, claro, também não nos podemos esquecer que muitas vezes há barreiras que nos dificultam essa autonomia, e quando elas são falta de educação e civismo, tudo se torna pior!

Cabe a cada um de nós, de alguma forma, tentar mudar o cenário das coisas, muitas vezes através do diálogo com as pessoas.

Bjs e fica bem.

Tiago Duarte

Tiago Duarte

Olá, Tiago
Tens razão, ainda hoje há muita diferença e as barreiras arquitectónicas ainda hoje são uma grande dificuldade tanto para cegos como para os de cadeira de rodas.
Mas dizes que o diálogo é importante entre os "mal educados". Talvez tenhas razão, mas... já me deves conhecer minimamente... passo-me dos carretos quando vejo uma pessoa que me trata como mental... enfim... tenho de me habituar à ideia... lol! embora isso aconteça de dia para dia! mas fico contente quando eles me vêm chatiar o juízo e eu mostro que sou capaz... olha! fico com a impressão que alguns pensam que um cego é um bruxo! (risos)
Mas olha... levo tudo para a frente... e sabes como sou... começo-me a rir, a mandar respostas um pouco picantes, e quando for preciso lá vem a agressividade. Terei talvez de acabar com isso, mas acho que não é urgente. Quem for meu amigo tem de me aceitar como sou. Quem não for... paciência. Tenho o meu orgulho.

anacristina