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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

Áudio-descrição: Tecnologias Contemporâneas e seus Desafios para a Acessibilidade Digital

por Francisco Lima

Prezados,

No artigo abaixo vocês lerão que:
"No Brasil, a áudio-descrição iniciou-se com o fazer, e do fazer chegou-se à prática, e desta ao ensino. Depois, passou-se de um fazer acadêmico para uma pesquisa acadêmica. Agora uma mistura desses dois modelos principais convive, alguns indo para a universidade para pesquisar e aprender o que vê na prática, outros saem da Universidade para colocar em prática o que viram nos bancos escolares.
Em ambos os casos, porém, não se tem visto, com raríssimas exceções, a pesquisa exaustiva dos constructos imanentes da pessoa com deficiência, partindo destas para o exercício da formação acadêmica no campo da tradução visual. Isto significa que os aspectos perceptuais, os aspectos cultores de uma cognição da pessoa com deficiência têm sido deixados de lado por pesquisadores, formadores de áudio-descritores e, mais claramente, por parte de áudio-descritores.
Estes vêm de cursos de extensão de 40, ou pouco mais horas, onde se ministram as diretrizes tradutórias como sendo regras normativas, onde, em geral, não se dedica com profundidade ao estudo das barreiras atitudinais que podem interferir no ato tradutório, e onde não se tem tempo para tratar dos constructos cognitivos dos usuários da tradução visual áudio-descritiva.
Por outro lado, quando se faz pesquisa sobre áudio-descrição com pessoas com deficiência, ou se as têm nas chamadas pesquisas de recepção, as mostras utilizadas trazem vieses metodológicos de variáveis importantes, tais como: a experiência com o evento traduzido, a educação formal, a confusão entre memória e recepção da áudio-descrição etc. Nessas pesquisas, e em outras, não é raro, ainda, encontrar na base fundamental e metodológica do estudo, a preeminência da visão, o que constitui igualmente viés científico a ser considerado.
Os aspectos cognitivos eliciados pela áudio-descrição e pela experiência de enxergar o mundo por meio da audição ou do tato não têm aparecido no campo das pesquisas em áudio-descrição, denotando a não participação efetiva do sujeito cego no polo investigativo da tradução visual. Isto é, a pessoa com deficiência é vista como usuária da áudio-descrição, como destinatária desta, não como alguém que tem papel determinante no serviço para quem se vai prestar a áudio-descrição.
Deste estado de coisas, alguns desafios se nos impõem prementes, que não mais podem ser protelados, mormente quando se pensa na velocidade em que as imagens tomam as relações sociais, determinam a cultura contemporânea e certamente continuará conduzindo nossa sociedade nas décadas vindouras.
Isso inclui considerar tanto quanto o ambiente físico, o ambiente virtual. É neste que se dá grande parte da nova educação, é neste ambiente que a segurança e a saúde são providos e/ou cultivados. Exemplo disso são as situações em que a telemedicina é aplicável, onde se podem treinar operadores da saúde a oferecer seus serviços com segurança e rapidez aos que deles necessitam etc.
Também é no ambiente virtual, que a interação entre as pessoas, indispensável nutriente da saúde psicológica e social do homem, é cada vez mais frequente e corriqueiro.
Hoje, aquele que não está inserido no ambiente virtual, aquele que não partilha da interação social imagética do ambiente virtual, está excluído de uma sociedade em que o todo é a somatória dos ambientes físicos e sociais reproduzidos e produzidos no ambiente virtual, na rede mundial de computadores, no que se convencionou chamar de “redes sociais”. “Ninguém é uma ilha” passa a significar que ninguém mais pode estar fora do continente chamado de rede, em que o ambiente virtual é tão real quanto o ambiente físico.
A pessoa que é deixada de fora do ambiente virtual é, portanto, excluída para a margem da sociedade, para o mar do isolamento, para o oceano da ignorância tornando-se náufrago de uma sociedade em que as relações afetivas, emocionais e reais têm origem ou se concluem no ambiente das imagens e dos sons virtuais.
Portanto, atentar para esse espaço social é indispensável, entendendo que ninguém poderá ficar fora dele ou dele ser excluído há algum tempo.
Assim, a acessibilidade digital, o acesso ao ambiente e o seu melhor uso pressupõe a participação de todos, com todos nesse ambiente. Sem a partilha universal dos recursos virtuais, o indivíduo ficará fora do círculo social humano, fora da sociedade, será um excluído, um não-humano.
Isso significa dizer que hoje um novo direito humano fundamental precisa ser esculpido, para além dos que foram descritos na Carta dos Direitos Humanos de 1948, o direito fundamental de acesso e uso pleno ao ambiente virtual, em suas diversas formas e matizes.
Como nesse ambiente as imagens são componentes fortes, não se pode deixar de fora 10% da população humana, de acordo com a UNESCO, a saber, as pessoas com algum tipo de deficiência. E entre elas, as pessoas com deficiência visual.
Assim, desenvolver um ambiente virtual, um ambiente do mundo digital acessível é fator de extraordinária urgência.
A áudio-descrição nesse ambiente permitirá o acesso à educação, aos bens sociais de interação interpessoal, o acesso aos sistemas de saúde e de segurança, por exemplo, em situações de catástrofes em que as informações de saúde e de segurança forem disponibilizadas por meio de vídeos e imagens difundidas pelos celulares e outros dispositivos móveis de comunicação.
Os olhos eletrônicos estarão cada vez mais perto de nós e poderão ser nossos aliados na prevenção de acidentes, na prevenção de riscos à saúde e na correção de problemas sociais. O isolamento digital provocado pela falta de acessibilidade comunicacional poderá levar, pois, pessoas a situações de penúria, de tratamento desigual, indigno, efetivamente desumano. Por outro lado, começarmos já a tomar pé das exclusões ocorrentes e tornarmos o mundo virtual acessível, inclusivo, diverso ao que ocorre no ambiente real-físico, propiciará com que pessoas, hoje tratadas com menosprezo social, tornem-se verdadeiros cidadãos humanos, plenos no exercício de seu ser psíquico, emocional e social.
Nada mais é tão importante para uma pessoa humana que estar com outra pessoa humana, mesmo que esse contato seja o possibilitado por um computador, uma câmera de vídeo, um microfone, um fone. Num futuro próximo, com o advento das pesquisas com percepção háptica, com os contínuos vibrotáteis e sensíveis essa interação humana será, do ponto de vista das experiências sensoriais, ainda mais completa, significativa, “real”.
A percepção de que estas questões sejam futuristas é um equívoco. Estamos certamente partindo para um modelo social de interação que irá muito além de corpos físicos presentes, para um mundo em que as energias das mentes presentes serão tão importantes quanto a massa física.
Não chegaremos lá na plenitude da acessibilidade, na plenitude da inclusão de todos, se passos aparentemente pequenos não forem dados hoje, por exemplo, os que começam com a áudio-descrição de eventos visuais aos milhões de pessoas com deficiência visual.
A acessibilidade no ambiente virtual precisa ser empoderativa, deve ser feita em todas as situações, sob pena de essas pessoas ficarem, como estão ficando, marginalizadas no processo de avanço tecnológico em que estamos vivendo.
Certamente, as pesquisas de hoje precisam considerar questões básicas, como distinguir a natureza háptica que interfere no mundo cognitivo das pessoas cegas ou com baixa visão; as questões cognitivas da experiência visual e do domínio semântico dos eventos visuais, entre outras. Questões como memória semântica dos elementos imagéticos, o banco de memória visual, a experiência com elementos visuais e a transcodificação háptica e auditiva de padrões tridimensionais em experiências sensoriais não-visuais de que o mundo das pessoas com deficiência visual é formado precisarão ser seriamente estudadas, precisarão ser pesquisadas com requinte científico e não com os lumes de uma construção econômica e paternalista que a áudio-descrição tem sido promovida em nosso país e em muitos outros países."

Para lerem mais, fiquem com o artigo na íntegra, logo a seguir.
Cordialmente,
Francisco Lima
Áudio-descrição
Tecnologias Contemporâneas e seus Desafios para a Acessibilidade Digital

Francisco José de Lima

Resumo
O presente artigo reflete sobre as atuais tecnologias para a comunicação social no ambiente virtual, considerando a áudio-descrição de eventos visuais como acessibilidade comunicacional para pessoas com deficiência. Discute o papel da internet nas relações sociais, isto é, interação entre pessoas sem e com deficiência e o acesso destas ao trabalho e à educação via ambiente virtual. Conclui que o empoderamento advindo da áudio-descrição é em essência a tônica do ato tradutório. Ressalta que pesquisas que considerem as pessoas com deficiência precisam ser conduzidas levando em consideração a produção, a reprodução a difusão e a recepção da tradução visual, de modo que a áudio-descrição reflita a ciência e não os vieses culturais esteados nas barreiras atitudinais contra as pessoas com deficiência.

Palavras-chave: Tecnologia; Acessibilidade Digital; Áudio-descrição; Pessoa com Deficiência; Tradução Visual.

Abstract
This article reflects on the current technologies for the media in the virtual environment, considering the audio description of visual events as means of accessibility for people with communication disabilities. It discusses the role of the internet in social interactions between people with and without disabilities, and the access of people with disabilities to work and education via virtual environment lacking digital accessibility. It states that empowerment arising from the audio description is in essence the defining of the act of this type of visual translation. The article emphasizes that researches in the area of visual translation should always consider the needs of people with disabilities and be conducted taking into account the production, reproduction and dissemination of receiving visual translation by people with visual disability, so that audio description will reflect the science and the knowledge it provides and not the merely cultural way that sighted people describe to those who have or have had visual experience.

Keywords: Digital Accessibility; Technology; Audio Description; Visual Translation; Persons with Disability.

1. Tecnologias contemporâneas

Cotidianamente lidamos com as imagens, com as configurações imagéticas, com o que se vê e com o relato do que se vê ou é visto. A rapidez com que as tecnologias midiáticas permitem a difusão das imagens é tal que mal o evento imagético é capturado, ele pode ser reproduzido e disseminado, por exemplo, por meio de recursos como celulares, tablets, lap-tops e uma enormidade de variações desses recursos e dos demais, que a chamada rede mundial de computadores e as redes sociais viabilizam.
A possibilidade de apresentar, ao vivo, um evento visual, a possibilidade de o salvar/guardar para ser reproduzido posteriormente e a possibilidade de alterar o evento visual, ainda que sejam dinâmicos, trazem ao mundo de hoje possibilidades jamais pensadas até as tecnologias atuais estarem presentes. E elas vão, nos anos vindouros próximos, acelerar a difusão imagética e transformar a si próprias e ao nosso mundo visoimagético.
As relações sociais, jurídicas e econômicas estão sendo mudadas em função desta nova ordem tecnológica da difusão dos eventos visuais e a sociedade, em si, vai se transformando para acomodar os recursos que são despejados em frenética velocidade e abundância.
Se antes as pessoas se reuniam nas portas de casa para conversar, se antes as pessoas se uniam nas salas de estar para lerem em conjunto, se antes as pessoas enviavam cartas que demoravam dias, semanas e até meses para alcançar seu destinatário, trazendo deste, resposta que levaria igual tempo, se antes as imagens eram transmitidas de uma em uma, levando grande tempo para serem carregadas e transmitidas pela rede ou para delas serem baixadas, se antes apenas uma pequena parcela da população tinha acesso aos recursos tecnológicos de captura imagética como as câmeras fotográficas e as filmadoras, hoje toda essa realidade mudou/está mudando.
Hoje pessoas sentam-se em seus escritórios, no metrô, no ônibus ou em casa, conhecem pessoas às dezenas e com elas interagem por meio de facebooks, twitter, skypes e muitos outros serviços disponíveis na rede mundial de computadores.
Com essas pessoas trocam imagens, com elas partilham filmes e com elas constroem uma rede de afeto, mesmo quando estão a centenas de milhares de quilômetros de distância.
Com o acesso aos telefones chamados smart phones, os quais são, em síntese, pequenos computadores portáteis ou dispositivos com a capacidade de computadores, milhares de vezes mais potentes que os chamados PCs da década de 80 e 90, tudo aquilo que necessitava de contato físico, longos períodos de tempo e, possivelmente, conhecimento anterior e/ou apresentação prévia daquele com quem se interagiria, hoje se pode ignorar esses passos e na rapidez de um clique, na rapidez de uma conexão de banda larga, conversar, ver, conhecer pessoas em distintos pontos do planeta.
Logo, as relações sociais de hoje se ampliam, diversificam, não mais ficam restritas aos meios constringentes dos espaços físicos, geográficos e econômicos.
Mais ainda, as relações sociais hodiernas deixaram de ser isoladas. Cada vez mais fica difícil de se assumir uma postura ermitã e cada vez mais a expressão “ninguém é uma ilha” se torna real, palpável, pois as relações sociais estão mediadas pela divulgação do privado, em escala nunca antes possível, com velocidade simultânea. Pessoas comunicam-se verbalmente com as outras pelos celulares, mas mostram por meio desse recurso o que ele ou ela está fazendo, no momento em que se o está fazendo. Mais ainda, pode-se mostrar a milhares de quilômetros de distância o que terceiros estão fazendo, inclusive sem a aquiescência dele ou dela. Em outras palavras, pode-se filmar ou fotografar alguém sem que esse alguém saiba que está sendo fotografado ou filmado. De posse dessas imagens estáticas ou dinâmicas pode-se modificá-las, melhorá-las ou alterá-las com e sem o consentimento da pessoa cujas imagens foram capturadas.
Como as próprias pessoas colocam suas imagens nas redes sociais, estas imagens podem, a partir daí, serem capturadas e difundidas, de uma forma ou de outra. Sob essa nova forma de compartilhamento social “privado”, há, contudo, aqueles que não desejam que suas imagens sejam divulgadas, para além de seu círculo de relação social. Isso significa que João quer partilhar com Paula uma fotografia, mas necessariamente não quer que essa fotografia seja compartilhada com o círculo social de Maria, ao qual João não faz parte.
Toda essa trama de situações, por meio de um mero celular passou a ser possível muito recentemente e apenas agora se está aprendendo a entender o que significa, de fato, o direito à imagem, à autoria, à privacidade num ambiente que veio para promover a difusão da informação, da comunicação e do conhecimento, sem barreiras, sem censura estatal ou de qualquer outra fonte ou forma.
Contudo, a sensação de liberdade, que as possibilidades tecnológicas nos permitem, a partir de um ambiente em que não se relaciona fisicamente com outra pessoa ou pessoas, provoca, também, uma sensação de impunidade ou de desconsideração do outro.
Isso tem levado à divulgação de imagens privadas, de situações familiares particulares e relações laborais, e de saúde que antes eram restritas aos que estivessem envolvidas na situação. E isso tem levado a situações de risco, de agressão moral e de ordem psicológica e mesmo econômica, com a perda de emprego e situações de conflito familiar.
Por outro lado, a difusão dos eventos imagéticos, estáticos como as fotografias e dinâmicos como os filmes ou vídeos, tem propiciado a um sem número de pessoas, viverem, pela primeira vez, como partícipes de uma sociedade, como incluídos num mundo, que vai além do ambiente doméstico ou hospitalar e mesmo de privação da liberdade.
Assim, de um lado, pessoas que jamais tiveram oportunidade de alcançar um círculo grande de amizades, jamais puderam estar em lugares distantes, econômica e fisicamente acessíveis, passam, com o advento da sociedade digital, a ter uma ampliação de suas possibilidades de relação humana e de ter oportunidades laborais, antes a elas denegadas.
Exemplo dessa transformação na vida das pessoas são os diversos casos em que pessoas com deficiência física como tetraplégicos ou com deficiência múltipla, como os surdocegos, que podem com os recursos computacionais trabalharem pela internet e por ela conversarem com pessoas que sequer saberão da condição de deficiência de seus interlocutores e/ou contratados virtuais.
O benefício disso é que essas pessoas com deficiência não serão preteridas para o trabalho, ou círculo social, por razão de discriminação, esteada em barreiras atitudinais, tais como a de medo, a de ignorância, de rejeição, subestimação, estereótipo, etc.
Também as pessoas com restrições de saúde que não podem sair de suas casas ou de ambientes protegidos dos hospitais encontram na internet, nas redes sociais as possibilidades que a tecnologia material dos dispositivos portáteis e/ou móveis permitem.
Destarte para que entendamos o imbricado mundo em que as imagens e/ou eventos imagéticos se tornaram, percebamos o que acontece hoje na ocorrência de um latrocínio acontecido à noite, numa rua erma, onde não haja testemunhas e os documentos da vítima foram roubados.
Nessa situação, houve tempo que seria um caso praticamente insolúvel, e, não raro, sequer se saberia quem era essa vítima.
Mais tarde, com o desenvolvimento das tecnologias forenses, essa história muda e a identificação das vítimas passa a ser feita basicamente por meio de três técnicas: a papiloscopia (recolhimento de impressões digitais), exames de arcada dentária e verificação de DNA. Entretanto, isso permitiria identificar a vítima, não o assassino.
Todavia, tomemos agora a possibilidade de encontrarmos nas imediações, se não no local do latrocínio, uma câmera. Sim, agora essa testemunha eletrônica muda/pode mudar a história. Cruzada a hora estimada da morte, a imagem de um homem ou mulher no local e/ou nas proximidades, vestígios deixados, como pegadas, forma de ataque etc. e se pode identificar o perpetrador do assassínio.
No recente ataque com bombas na cidade de Boston, Estados Unidos, identificou-se, dentro de milhares de imagens, os dois irmãos que produziram e colocaram as bombas no local em que se daria uma corrida de rua. A partir do exame das imagens de câmeras do local e, em seguida, das imagens tiradas por estranhos, os quais, por um acaso, tiveram na captura de suas lentes de câmeras e celulares as imagens dos irmãos terroristas, foi possível não só precisar quem eram os perpetradores de tal crime, mas também conhecer o modus operandi daqueles terroristas.
Semelhantemente à identificação por imagens, ocorrida no caso de Boston, são exemplos as várias situações onde pessoas encontram parentes e amigos que já não viam há muito tempo; policiais encontram fugitivos, em meio a multidões filmadas ou fotografadas; pais encontram crianças raptadas, cujas imagens foram postadas em redes sociais, youtubes; famílias encontram idosos e pessoas com deficiência intelectual, identificando-os e resgatando-os a partir de imagens capturadas por câmeras de segurança espalhadas pelas cidades.
O uso dos recursos de captura e difusão imagéticos pode servir a objetivos nem sempre desejáveis. Assim como ocorreu com o advento dos scanners e impressoras coloridos de alta resolução, os quais foram utilizados para copiar cédulas de dinheiro e enganar os incautos, usou-se o celular para fotografar pessoas que retiravam dinheiro nos caixas de banco, transmitindo essas imagens para comparsas que assaltariam aquelas pessoas quando saíssem das agências. Outro exemplo do mau uso de captura imagética pode ser percebido no crime de autoria, que cresceu significativamente na área fílmica. Com o uso de filmadoras nas salas de cinema, pessoas capturam o áudio e as imagens da tela, para vendê-las em DVDs, no que se conhece como um ato de pirataria.
Como fica claro, portanto, a utilização dos recursos tecnológicos de reprodução imagética e de difusão dos eventos visuais pode, como ademais ocorre com qualquer outra tecnologia, servir ao homem para o bem ou para o mal. Indiscutível, porém é o fato de que não se pode deixar de considerar esses recursos na vida da humanidade contemporânea, seja como recurso de lazer, de trabalho, educação, cultura, saúde ou de interação afetiva com outras pessoas.

2. Áudio-descrição: princípios e reflexões

Mas, se a utilização das imagens fílmicas e fotográficas é assim tão forte no mundo atual, como ficam as pessoas que não têm acesso ao polo imagético da reprodução e difusão da informação e da comunicação nas redes sociais e de outros matizes da rede mundial de computadores?
Como as pessoas com deficiência visual caminham no mundo das imagens quando estas não só falam por mil palavras, mas falam com velocidade inaudível as mil palavras?
Em meados da década de 70, nos Estados Unidos, essas questões passaram a ser foco de estudo científico e especial atenção foi dada para a falta de acessibilidade comunicacional a que as pessoas com deficiência visual eram submetidas. Daí é que com o trabalho de Gregory Frazier, depois colocado em prática pelo casal Pfainstiehl, passou-se a disseminar a tradução visual, hoje conhecida como áudio-descrição.
Os Pfainstiehl, naquela década e na seguinte, formaram áudio-descritores, viajando o país e mostraram, com a prática de seu trabalho e a formação de seus estudantes, que a áudio-descrição era muito mais que a mera narração de eventos visuais, distinguindo-se ela da narração, a que as pessoas com deficiência visual estavam acostumadas a ter, a partir de seus professores, pais e amigos, os quais descreviam para as pessoas cegas a escola, espaços culturais e mesmo familiares (LIMA; LIMA, 2012).
De fato, Margaret Pfainsteihl demonstrou o quanto as pessoas que enxergavam não viam o que enxergavam.
Ela, que era cega, ensinava pessoas videntes, termo usado para definir pessoas que enxergam, em oposição semântica às pessoas cegas, coisas que ela própria não via, mas que sabia como extrair verbalmente dos que efetivariam a áudio-descrição.
Com o passar do tempo, aquilo que começara nos EUA alcança a Europa, Ásia, América do Sul e mais recentemente a África, donde se pode dizer que os frutos do trabalho dos Pfainstiehl, por intermédio de seus estudantes têm largamente florescido, tirando do limbo cultural imagético milhões de pessoas com deficiência visual.
Entretanto, é mister dizer que a descrição de eventos visuais não começou com Gregory Frazier, nem nos Estados Unidos, mas sempre fez parte da história da pessoa com deficiência, como ademais, a descrição tem feito parte da vida humana desde sempre.
Por outro lado, a áudio-descrição não começou nas escolas especializadas para cegos, nas instituições escolares para cegos, nem com professores, psicólogos e familiares de cegos. Começou com a trabalho acadêmico cujo autor tendo submetido sua ideia a uma pessoa com deficiência visual a escutou, desenvolveu o conceito e o defendeu em dissertação de mestrado, me meados da década de 70, em São Francisco, Estados Unidos.
Na década de 80, como mencionado, Margaret Pfainstiehl coloca em prática a áudio-descrição, forma áudio-descritores e difunde a áudio-descrição por meio de palestras, cursos, trabalhos, sensibilizações etc.
Então, foi a partir daí que a áudio-descrição, enquanto ato tradutório, passou a fazer parte do cotidiano de pessoas com deficiência visual, ou com outras deficiências.
Somando essas duas vertentes (a da ampliação do uso imagético nas relações sociais e o surgimento de um campo acadêmico de estudo da tradução visual, cuja prática interfere na vida de milhões de pessoas com deficiência), passamos a conhecer uma expressão que não pode ser definida de outra forma: a áudio-descrição é tecnologia assistiva, que vem para garantir, promover, assegurar e confirmar o empoderamento da pessoa com deficiência.
Assim, se empoderamento não for a tônica da tradução visual, não se estará fazendo áudio-descrição, mesmo se alguém estiver descrevendo oralmente para uma pessoa cega ou com baixa visão.
Para fazer uma descrição, basta ver um dado evento, ou ainda tocá-lo, uma vez que o tato também captura atributos daquilo que toca.
Opostamente à mera descrição, a áudio-descrição só pode ser feita por quem enxerga, ainda que para enxergar, se o faça por meio de recursos corretivos/aumentativos da capacidade visual, a exemplo de lupas, lentes de aumento, óculos, etc., recursos técnicos assistivos que suprem total ou parcialmente a perda da visão.
Portanto, se uma pessoa tem apenas visão parcial, baixa visão, o grau de apreensão visual dessa pessoa será ou poderá estar prejudicado, donde a tradução visual que ela fizer ficará ou poderá ficar prejudicada, quiçá alterada ou deturpada. Obviamente, isso prejudicará o empoderamento da pessoa cega ou com baixa visão que estiver fazendo uso do serviço de áudio-descrição provido por quem não esteja vendo com a capacidade visual necessária para a apreensão do evento visoimagético específico.
Entretanto, a pessoa humana alcança estratégias distintas e inusitadas para superar barreiras, tanto fazendo uso de recursos internos como externos, o que muda o ponto de limite do indivíduo, pondo por terra a incapacidade que a sociedade impõe à pessoa com deficiência (Lima, Questão de Atitude ou classificação).
Dessas reflexões deduz-se que a áudio-descrição poderá ser feita por uma pessoa com deficiência visual que faça uso daqueles recursos assistivos e/ou outros, mas deduz-se, também, que ela encontrará limites no trabalho tradutório a que se dedicar, devendo informar a seus clientes de tais limites, por razão ética e profissional. A observação dos componentes éticos para com o cliente da áudio-descrição, do contratante ao usuário, quando este não for o contratante, é crucial e não pode ser deixada em segundo plano no ato tradutório.
Áudio-descrição é a tradução visual do que se vê e, se não se vê, não se pode traduzir. Se uma pessoa é cega, ela não pode ver, não se pode ser áudio-descritora, muito embora ela possa ser formadora de áudio-descritores, como foi a matriarca da áudio-descrição no mundo, Margaret Pfainstiehl, e no Brasil, o psicofísico sensorial professor Francisco Lima.
Na esteira das reflexões acima, pode-se fazer a assertiva de que para ser áudio-descritor não basta enxergar, mas é necessário saber ver, saber observar e ver aquilo que o comum das pessoas não veem numa obra, ainda que enxerguem (LIMA, 2011).
Outrossim, como todo trabalho de tradução, o tradutor deve ter formação para tal, pois da mesma forma que não se é tradutor, meramente porque se fala duas línguas e não se é professor de uma língua, meramente porque se a fala, não se é áudio-descritor, meramente porque se é capaz de enxergar, com recursos corretivos/aumentativos da visão ou não. A áudio-descrição requer formação do tradutor visual para áudio-descrever e para ensinar áudio-descritores. Obviamente, é necessário que o formador tenha conhecimento das diretrizes da tradução visual, tenha sido formado professor de áudio-descritores por profissional reconhecidamente preparado para esse fim, por instituição capacitada para o exercício da função de formador de áudio-descritores, e é necessário que o formador de áudio-descritores conheça das vicissitudes do “ver sem enxergar” do mundo das pessoas cegas e dos modos de enxergar das pessoas com baixa visão. É mister que o formador de áudio-descritores conheça as barreiras atitudinais que perpassam a tradução visual e, acima de tudo, tenha atitude empoderativa em relação aos clientes do serviço de áudio-descrição, a saber, as pessoas com deficiência usuárias do serviço tradutório (LIMA; GUEDES; GUEDES, 2010).
Com efeito, a eliminação de barreias atitudinais que possam interferir no ato tradutório deve ser uma preocupação constante do áudio-descritor, e o respeito máximo ao usuário deve ser cultivado. De outra forma, não se estará fazendo áudio-descrição, mesmo se se estiver fazendo o que muitos chamam de “audiodescrição”, descrição narrada ou narração descritiva.
Em suma, como a áudio-descrição é uma área da tradução visual, não basta que se descreva algo para chamar essa descrição de áudio-descrição, é mister que se conheça a fonte imagética, se estude o evento visual, que se pesquise o assunto que o origina, e que se conheça a forma de processamento da informação (quando uma mensagem imagética, transmitida sonora ou tatilmente, vai ser recebida e decodificada pelo sistema auditivo ou háptico).
Em outras palavras, assim como não se é tradutor sem conhecer a língua de partida e a de chegada, tanto quanto a cultura delas, a sociedade em que elas estão inseridas, o contexto em que elas estão sendo faladas ou escritas, não se faz áudio-descrição se o tradutor visual não conhecer da obra traduzida e da forma de recebimento/processamento da informação pelas pessoas cegas ou com baixa visão, inclusive quando os usuários não têm experiência visual.
Para além disso, as ferramentas de transmissão e recepção da mensagem terão importante papel no ato tradutório. Exemplo disso são as completudes gestálticas que se fará a partir das ferramentas cognitivas do espectador, mas também dos equipamentos que ele fará uso.
Uma áudio-descrição poderá não ser necessária se a informação sonora complementar estiver disponível, e ela será indispensável se o equipamento utilizado não oferecer o detalhamento sonoro necessário para a compreensão cognitiva ou contextual do evento visual.
Por isso, a áudio-descrição não é mera transposição da imagem em palavras, mas uma tradução que respeita a transdução da informação, inclusive por meio de recursos sensoriais presentes ao evento tradutório.
Assim, o acompanhamento háptico numa tradução simultânea pode exigir escolhas tradutórias distintas de uma tradução visual escrita ou de uma áudio-descrição em que o espectador não tem a oportunidade de uso do sistema háptico.
Para falar além desse fator, no que tange ao uso de dispositivos tecnológicos de transmissão da áudio-descrição, o ritmo pessoal do espectador e as barreias sensoriais, mormente as auditivas, podem requerer estratégias tradutórias diversas, com escolhas tradutórias específicas à modalidade de tradução, neste caso, a tradução visual chamada de áudio-descrição. Como ademais ocorre numa tradução lingual simultânea, legendada ou dublada, cada modalidade tem sua especificidade, logo, os recursos de transmissão deverão ser adequadamente escolhidos, como deverão ser escolhidos os áudio-descritores, por exemplo, em função de suas vozes, em situação simultânea, em que o ambiente seja ruidoso e os dispositivos não tenham abafadores auriculares, ou não se esteja fazendo uso de dispositivo de transmissão eletrônico, mas apenas a voz. E isso não pode ser confundido com uma descrição despreocupada que amigos fazem num encontro fortuito em que uma ou algumas das pessoas não partilham a mesma via visual de captura imagética.
Entender as questões subjacentes à áudio-descrição, portanto, conhecer os clientes da áudio-descrição e os pilares éticos e formais que a sustentam, é crucial para que se faça uma áudio-descrição e não uma mera descrição, descaracterizada do empoderamento, regra que efetivamente não se pode infringir, sob pena de não se estar fazendo áudio-descrição, ainda que se esteja narrando oralmente um evento visual, que se esteja descrevendo uma imagem ou situação visualmente experimentada por um e relatada ao outro.
Em Língua Portuguesa a construção do que é a tradução visual, distinta do que é descrição, fica fácil de ser percebida se, em consonância com as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em sua base XV (ACADEMIA BRASILEIRA, 2011). Se compreender que áudio-descrição não é um termo somatório de duas palavras que se juntaram meramente, mas que, mantendo a prosódia e significado individuais, juntas compõem um terceiro significado: a áudio-descrição é mais que descrição de áudio, é a tradução visual de evento imagético que tem como objetivo o empoderamento da pessoa com deficiência (LIMA; LIMA; VIEIRA, 2009; TAVARES et al., 2010).
A áudio-descrição pode aparecer em palavras escritas (em tinta, em relevo ou na forma eletrônica), oralizadas/verbalizadas, sinalizadas, em Libras, por exemplo, ou na forma tátil em caracteres produzidos na palma da mão de uma pessoa cega, ou ainda, na forma tátil vibratória, capturada pela técnica do tadoma, usado por pessoas surdocegas.
Cada uma dessas possibilidades de transmissão da áudio-descrição ou recepção dela vai influenciar o ato tradutório, assim como vai influenciar a recepção de uma tradução, se o filme ou texto traduzido for veiculado por meio da tela da televisão, do cinema, do computador ou do celular, mantida as devidas proporções de analogia aqui empregada, é claro.
Logo, o que determina uma áudio-descrição não é a forma em que ela é veiculada, transmitida ou produzida, mas sua característica peculiar, distinta de uma descrição que todo mundo faz há centenas de anos para as pessoas com deficiência visual, a saber, o empoderamento da pessoa com deficiência, para enxergar por meio da áudio-descrição o que os olhos do observador/tradutor veem. Não obstante, o veículo em que se difunde a áudio-descrição poderá influenciar o ato tradutório e requerer do tradutor visual considerar questões técnicas da reprodução, difusão e recepção da áudio-descrição.

3. Áudio-descrição, tecnologia e ciência.

A áudio-descrição, de há muito deixou de referir-se, pois, à tradução visual produzida de um evento visual para um evento auditivo, donde áudio-descrição pode aparecer em distintas mídias, continuando a ser áudio-descrição, se for empoderativa do evento visual a quem não o vê ou, ainda que o vendo, não tem completa apreensão semântica, como ocorre aos indivíduos com autismo e com outras deficiências intelectuais.
Sendo uma ferramenta empoderativa de tecnologia assistiva, portanto, a áudio-descrição impõe desafios para ser implementada, a despeito de em muitos países ela fazer parte da acessibilidade comunicacional, direito legalmente constituído aos indivíduos com deficiência, mormente aos com deficiência visual (LIMA; LIMA; GUEDES, 2009).
Esses desafios vão da disseminação dos princípios ou diretrizes do campo específico da tradução visual, isto é, da áudio-descrição, até a certificação dos áudio-descritores, a saber, da formação destes e dos meios de produção, difusão e recepção da tradução visual.
No Brasil, a áudio-descrição iniciou-se com o fazer, e do fazer chegou-se à prática, e desta ao ensino. Depois, passou-se de um fazer acadêmico para uma pesquisa acadêmica. Agora uma mistura desses dois modelos principais convive, alguns indo para a universidade para pesquisar e aprender o que vê na prática, outros saem da Universidade para colocar em prática o que viram nos bancos escolares.
Em ambos os casos, porém, não se tem visto, com raríssimas exceções, a pesquisa exaustiva dos constructos imanentes da pessoa com deficiência, partindo destas para o exercício da formação acadêmica no campo da tradução visual. Isto significa que os aspectos perceptuais, os aspectos cultores de uma cognição da pessoa com deficiência têm sido deixados de lado por pesquisadores, formadores de áudio-descritores e, mais claramente, por parte de áudio-descritores.
Estes vêm de cursos de extensão de 40, ou pouco mais horas, onde se ministram as diretrizes tradutórias como sendo regras normativas, onde, em geral, não se dedica com profundidade ao estudo das barreiras atitudinais que podem interferir no ato tradutório, e onde não se tem tempo para tratar dos constructos cognitivos dos usuários da tradução visual áudio-descritiva.
Por outro lado, quando se faz pesquisa sobre áudio-descrição com pessoas com deficiência, ou se as têm nas chamadas pesquisas de recepção, as mostras utilizadas trazem vieses metodológicos de variáveis importantes, tais como: a experiência com o evento traduzido, a educação formal, a confusão entre memória e recepção da áudio-descrição etc. Nessas pesquisas, e em outras, não é raro, ainda, encontrar na base fundamental e metodológica do estudo, a preeminência da visão, o que constitui igualmente viés científico a ser considerado.
Os aspectos cognitivos eliciados pela áudio-descrição e pela experiência de enxergar o mundo por meio da audição ou do tato não têm aparecido no campo das pesquisas em áudio-descrição, denotando a não participação efetiva do sujeito cego no polo investigativo da tradução visual. Isto é, a pessoa com deficiência é vista como usuária da áudio-descrição, como destinatária desta, não como alguém que tem papel determinante no serviço para quem se vai prestar a áudio-descrição.
Deste estado de coisas, alguns desafios se nos impõem prementes, que não mais podem ser protelados, mormente quando se pensa na velocidade em que as imagens tomam as relações sociais, determinam a cultura contemporânea e certamente continuará conduzindo nossa sociedade nas décadas vindouras.
Isso inclui considerar tanto quanto o ambiente físico, o ambiente virtual. É neste que se dá grande parte da nova educação, é neste ambiente que a segurança e a saúde são providos e/ou cultivados. Exemplo disso são as situações em que a telemedicina é aplicável, onde se podem treinar operadores da saúde a oferecer seus serviços com segurança e rapidez aos que deles necessitam etc.
Também é no ambiente virtual, que a interação entre as pessoas, indispensável nutriente da saúde psicológica e social do homem, é cada vez mais frequente e corriqueiro.
Hoje, aquele que não está inserido no ambiente virtual, aquele que não partilha da interação social imagética do ambiente virtual, está excluído de uma sociedade em que o todo é a somatória dos ambientes físicos e sociais reproduzidos e produzidos no ambiente virtual, na rede mundial de computadores, no que se convencionou chamar de “redes sociais”. “Ninguém é uma ilha” passa a significar que ninguém mais pode estar fora do continente chamado de rede, em que o ambiente virtual é tão real quanto o ambiente físico.
A pessoa que é deixada de fora do ambiente virtual é, portanto, excluída para a margem da sociedade, para o mar do isolamento, para o oceano da ignorância tornando-se náufrago de uma sociedade em que as relações afetivas, emocionais e reais têm origem ou se concluem no ambiente das imagens e dos sons virtuais.
Portanto, atentar para esse espaço social é indispensável, entendendo que ninguém poderá ficar fora dele ou dele ser excluído há algum tempo.
Assim, a acessibilidade digital, o acesso ao ambiente e o seu melhor uso pressupõe a participação de todos, com todos nesse ambiente. Sem a partilha universal dos recursos virtuais, o indivíduo ficará fora do círculo social humano, fora da sociedade, será um excluído, um não-humano.
Isso significa dizer que hoje um novo direito humano fundamental precisa ser esculpido, para além dos que foram descritos na Carta dos Direitos Humanos de 1948, o direito fundamental de acesso e uso pleno ao ambiente virtual, em suas diversas formas e matizes.
Como nesse ambiente as imagens são componentes fortes, não se pode deixar de fora 10% da população humana, de acordo com a UNESCO, a saber, as pessoas com algum tipo de deficiência. E entre elas, as pessoas com deficiência visual.
Assim, desenvolver um ambiente virtual, um ambiente do mundo digital acessível é fator de extraordinária urgência.
A áudio-descrição nesse ambiente permitirá o acesso à educação, aos bens sociais de interação interpessoal, o acesso aos sistemas de saúde e de segurança, por exemplo, em situações de catástrofes em que as informações de saúde e de segurança forem disponibilizadas por meio de vídeos e imagens difundidas pelos celulares e outros dispositivos móveis de comunicação.
Os olhos eletrônicos estarão cada vez mais perto de nós e poderão ser nossos aliados na prevenção de acidentes, na prevenção de riscos à saúde e na correção de problemas sociais. O isolamento digital provocado pela falta de acessibilidade comunicacional poderá levar, pois, pessoas a situações de penúria, de tratamento desigual, indigno, efetivamente desumano. Por outro lado, começarmos já a tomar pé das exclusões ocorrentes e tornarmos o mundo virtual acessível, inclusivo, diverso ao que ocorre no ambiente real-físico, propiciará com que pessoas, hoje tratadas com menosprezo social, tornem-se verdadeiros cidadãos humanos, plenos no exercício de seu ser psíquico, emocional e social.
Nada mais é tão importante para uma pessoa humana que estar com outra pessoa humana, mesmo que esse contato seja o possibilitado por um computador, uma câmera de vídeo, um microfone, um fone. Num futuro próximo, com o advento das pesquisas com percepção háptica, com os contínuos vibrotáteis e sensíveis essa interação humana será, do ponto de vista das experiências sensoriais, ainda mais completa, significativa, “real”.
A percepção de que estas questões sejam futuristas é um equívoco. Estamos certamente partindo para um modelo social de interação que irá muito além de corpos físicos presentes, para um mundo em que as energias das mentes presentes serão tão importantes quanto a massa física.
Não chegaremos lá na plenitude da acessibilidade, na plenitude da inclusão de todos, se passos aparentemente pequenos não forem dados hoje, por exemplo, os que começam com a áudio-descrição de eventos visuais aos milhões de pessoas com deficiência visual.
A acessibilidade no ambiente virtual precisa ser empoderativa, deve ser feita em todas as situações, sob pena de essas pessoas ficarem, como estão ficando, marginalizadas no processo de avanço tecnológico em que estamos vivendo.
Certamente, as pesquisas de hoje precisam considerar questões básicas, como distinguir a natureza háptica que interfere no mundo cognitivo das pessoas cegas ou com baixa visão; as questões cognitivas da experiência visual e do domínio semântico dos eventos visuais, entre outras. Questões como memória semântica dos elementos imagéticos, o banco de memória visual, a experiência com elementos visuais e a transcodificação háptica e auditiva de padrões tridimensionais em experiências sensoriais não-visuais de que o mundo das pessoas com deficiência visual é formado precisarão ser seriamente estudadas, precisarão ser pesquisadas com requinte científico e não com os lumes de uma construção econômica e paternalista que a áudio-descrição tem sido promovida em nosso país e em muitos outros países.

4. Considerações finais

Em conclusão, as reflexões deste artigo são mais um alerta para a importância de se fazer a áudio-descrição fazendo pessoas interagirem entre si, trazendo o bem-estar para todos que dessa e nessa sociedade fazem parte.
Sem a ciência, e sem uma ciência cujos objetivos sejam o bem-estar da pessoa humana, a áudio-descrição, que começou há 30 anos, não passará de mera verbalização de peças teatrais, filmes e fotos, pinturas e esculturas, áreas que hoje recebem foco quase exclusivo dos áudio-descritores.
É certo que essas áreas são de suma importância, mas não serão plenamente acessíveis aos usuários da áudio-descrição se não desenvolvermos instrumentos de qualidade para a produção da tradução visual, aí incluindo recursos tecnológicos de tradução automatizada com o reconhecimento de síntese facial, reconhecimento de padrões tridimensionais e de configurações bidimensionais etc. Incluindo dispositivos de recepção como sistemas de áudio tridimensional miniaturizado, sistemas de transmissão à longa distância multilingual etc. E, mais especificamente nos meios da rede mundial de computadores e dos distintos vértices que a compõem, as técnicas de programação e de acessibilidade e usabilidade, inclusive para recursos educativos e de lazer, como os jogos audiovisuais com recurso de áudio-descrição, os de interação háptica e de realidade virtual sensorial.
Por fim, e não menos importante, o desafio será viabilizar economicamente tudo isso e levar esses recursos aos mais longínquos recantos do planeta. Logo, quando a acessibilidade for uma realidade para todos e significar bem mais que entrar, significando chegar, entrar e permanecer, fazendo o melhor uso dos bens e serviços disponíveis nos ambientes virtuais, e deles emanentes para os ambientes físicos e sociais, aí sim teremos uma sociedade em que a acessibilidade digital será uma realidade.

REFERÊNCIAS
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