Certo dia, estive em São Paulo, onde participava de um evento e quis aproveitar o horário do almoço para conhecer a Pinacoteca do Estado, pois só contava com aquele momento para esta atividade. Fui com duas colegas de trabalho que estavam no mesmo evento. Imaginei que poderia chegar, entrar e sair como qualquer pessoa. Mas, a nossa visita se converteu em uma experiência malograda e constrangedora.
Na recepção, descobrimos que somente elas pagariam o ingresso, pois a entrada é gratuita para pessoas com deficiência. Mal começamos a percorrer o espaço e percebi que se tratava de uma exposição de arte liberada para os olhos e não para as mãos. Ao ouvir a descrição de minhas colegas, toquei em uma das esculturas de bronze e fui prontamente barrada pelo funcionário, que se comportou de modo impecável como fiel guardião do tesouro. Ele argumentou que era necessário agendar uma visita orientada conforme prevê o programa educativo para públicos especiais e eu disse que minhas colegas estavam em condições de acompanhar-me. Afinal, elas trabalham na área da deficiência visual além de sermos adultas e idônias. Esclareci, também, que viajaria no final daquela tarde. Ele se mostrou solícito e foi consultar os seus superiores. Entre as idas e vindas de um e outro funcionário para solucionar o problema, eu tocava em uma escultura de bronze e logo vinha o sentinela para me impedir. Então, eu disse a ele para me mandar prender.
Ele voltou com algumas pessoas e todas elas me convidavam a integrar um grupo de alunos cegos com visita programada àquela tarde. Eu explicava que o horário não era compatível com o meu compromisso e elas insistiam com argumentos e explicações acerca do agendamento para públicos especiais. Alegavam que eram normas estabelecidas, que teriam prazer em me apresentar o programa, que eu iria gostar muito. Enquanto isto, o tempo passava e o impasse continuava. Argumentei que minhas colegas poderiam me auxiliar no deslocamento e na descrição das obras e tudo que eu queria era apenas apreciar, à minha maneira, aquela exposição. A responsável pelo programa explicou que isto não era possível porque somente ela tem o contexto do projeto e disponibilidade para orientar visitas previamente agendadas. Meus argumentos eram rebatidos com a mesma ladainha: as normas, a especificidade do programa e a insistência no convite para aguardar o grupo de estudantes cegos. A esta altura o mal estar estava instalado e todos mostravam desconforto diante da situação.
Perdi a paciência ao ouvir o mesmo argumento repetidas vezes. Perdi também a racionalidade e deixei rolar as lágrimas de uma emoção impregnada de múltiplos sentimentos. Para aquele grupo, eu precisava compreender que as normas não permitiam que uma pessoa cega tocasse em uma obra de arte a não ser em uma visita monitorada por eles. Para mim, o silêncio perplexo diante da insensibilidade travestida de cortesia e complacência. Ouvia repetidas explicações acerca das normas estabelecidas. O toque só era consentido em certas circunstâncias e por meio de um ritual programado para este fim. Assim, eu deveria contentar-me com a concessão de aguardar o horário do grupo programado para aquela tarde, integrar-me a ele e conhecer a pinacoteca. Não me autorizavam a fazer a visita individualmente porque há um ritual previsto e orientado. Tudo é uma questão de preservação das obras que estariam em risco se as pessoas não cumprissem as normas do museu. Em suma, fui tratada como se fosse uma predadora em potencial ou uma criança que não tem autonomia nem idoneidade para se responsabilizar por seus atos. Nesta instituição, vale mais a rigidez das normas, o protagonismo dos programas do que a livre apreciação da arte por qualquer pessoa.
Este episódio me lembra as palavras de Oscar Wilde: Os que encontram significações belas nas coisas belas são os cultos, Para esses há esperança.Eleitos são aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza
Elizabet Dias de Sá
Psicóloga e Educadora
Belo Horizonte, dezembro de 2006
Elizabet Dias de Sá
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