Reportagem: Paulo Kehdi
Marta Ruffoni Guedes, 53 anos, vivenciou uma experiência crítica de vida. Após mais de quatro décadas contando com a visão, passou a perdê-la progressivamente, até que apenas um resquício no olho esquerdo foi preservado. Depois de um período de dúvidas, angústias e readaptações, ela encontrou no trabalho com a argila uma nova forma de conduzir a si mesma. Contando com o apoio dos familiares e, principalmente do filho Felipe, fez dessa a sua principal atividade.
Porém, muito mais do que uma ocupação, o trabalho tornou-se uma paixão. Ao perder um sentido, descobriu outro. A magia das mãos, que comandadas pelo seu instinto criativo, dá forma e vida ao barro.
Marta, conte-nos sobre a sua vida profissional antes da perda da visão.
Sou arquiteta, formada pela Universidade de Brasília, curso que conclui em 1984. Trabalhei no Ministério da Aeronáutica, na seção de engenharia da Secretaria da Saúde, em projetos de hospitais e centros de saúde. Depois ingressei na Secretaria de Planejamento Urbano no governo do Distrito Federal até 1998, quando perdi a visão.
Sua perda de visão foi progressiva?
Sim. Os primeiros sintomas chegaram em 1996 e durante dois anos fiz uma verdadeira peregrinação por vários médicos sem uma definição do diagnóstico. Foi quando em dezembro de 1998, de um dia para outro, que a visão se foi quase que totalmente. Não conseguia mais dirigir e tinha dificuldades ainda maiores nas tarefas diárias. Finalmente em janeiro de 1999 o diagnóstico foi dado. Atrofia do nervo ótico, causado por um pseudotumor. Como procedimento, foi colocado um dreno na coluna, para facilitar a descida do líquido que estava acumulado no cérebro, comprimindo o nervo. Porém, tudo já estava bastante comprometido e não houve reversão do quadro. Sobrou um pequeno resíduo no olho esquerdo, o qual me permite enxergar vultos, diferenciar o claro do escuro. Enfim, um restinho de visão que me permite uma certa mobilidade em espaços familiares.
E como foi lidar com a nova situação?
Foi bastante difícil. Passei por um longo período de adaptação e, principalmente, aceitação. Algo em torno de um ano. Tenho um filho, o Felipe hoje com 12 anos, que na época tinha 4. Ele foi e é a grande alavanca da minha vida, que me levou a perceber que era necessário reagir. No início de 2000 dei um passo decisivo. Fui visitar o Centro Especial de Deficientes Visuais do Distrito Federal, uma escola pública que trabalha não só com crianças, mas na reabilitação de adultos. Matriculei-me e comecei a freqüentá-la em 2001. Foi lá que tive contato com a argila.
Quais as principais mudanças que a perda da visão acarretou?
Bom, as mudanças foram radicais, tanto no campo pessoal, como no profissional. Aposentei-me por invalidez em maio de 1999. Esse período, até ingressar na escola, foi a pior parte. Primeiro parei de dirigir, o que foi dolorido. Passei a depender de outras pessoas para qualquer atividade, o que até hoje é difícil de aceitar plenamente. Para qualquer movimento precisava de "outro", algo com que tive que me acostumar, pois me considerava absolutamente independente.
Repito. Restava-me aceitar e adaptar-me e a escola teve papel preponderante nesse sentido. A grande surpresa foi iniciar o trabalho na oficina do barro, numa das muitas atividades oferecidas lá. O objetivo é apurar o tato para se iniciar o aprendizado com o braile. Foi quando descobri as inúmeras possibilidades que o barro oferece. Com a ajuda e incentivo da professora Ângela Pimentel, que ministra a oficina, comecei a arriscar os primeiros trabalhos. O engraçado é que o braile ficou em segundo plano e continua até hoje. Encantei-me com aquilo e descobri um enorme prazer, principalmente porque o seu manuseio metira quase completamente da dor de não enxergar. Fui desenvolvendo técnicas intuitivamente e aprendendo outras em diversos ateliês que tenho freqüentado, não só em Brasília, mas também em Porto Alegre, onde normalmente passo férias.
Dessa forma você começou a fazer suas esculturas?
Não faço esculturas. Trabalho com peças decorativas, como vasos, flores e principalmente utilitários. Não me considero exatamente uma artista, mas uma artesã. Como minha formação é de arquiteta, tenho grande afinidade com arte em geral. Acho que ainda chego a arriscar um trabalho de escultura, mas tenho um caminho a trilhar para isto acontecer realmente.
Quando começou a fazer dos trabalhos em argila sua principal atividade?
Bom, desde que iniciei na oficina do barro meu tempo é todo dedicado a esse trabalho. Improvisei um ateliê em casa, tenho alguns equipamentos como o torno e forno e dou aulas. Divido meu tempo com a argila e meu filho, meu grande companheiro e também incentivador .
Quantos trabalhos você já realizou?
Participei de algumas exposições aqui em Brasília. Foram dois eventos no Senado Federal. Fiz uma exposição no Rio de Janeiro, no Museu Histórico Nacional em 2005. Ano passado, fui convidada a dar algumas palestras para os alunos do 2º grau da escola Marista João Paulo II, onde foram feitas algumas oficinas.
Depois fiz sessões com os alunos do 1º grau para o dia das mães, onde cada criança confeccionou seu trabalho.
O que sente quando está criando? Como você definiria esse processo?
Não sei muito bem o que dizer aqui, nem mesmo definir o que sinto, mas é um momento muito especial. A dor de não enxergar não existe, a sensação do prazer em transformar o barro, a argila em qualquer objeto e "vê-lo" com as mãos, por mais simples que seja é quase indescritível. Eu realmente esqueço que não o vejo, mas sei exatamente como ele é. A imagem imediatamente se forma e até mesmo detalhes são percebidos, sentidos.
Têm atividades paralelas?
Não, a não ser curtir meu filhote.
Qual o papel da família na sua construção como ser humano?
Fundamental. Como já disse, meu filho tem um papel muito forte nesta caminhada. Somos eu, ele e uma grande família que sempre esteve e está ao meu lado. Cada um a seu modo me fortalece para que eu afinal aceite, conviva e adapte-me a esta "nova vida".
Têm hobbies?
Bom, antes de estar cega, adorava ir a cinema, ler um bom livro, encontrar amigos em um boteco, etc, etc. Com essa transformação meu trabalho é meu hobbie. E sentir meu filhote crescer, também!
E os seus planos futuros?
Tenho alguns projetos em andamento e tentando implantá-los como, por exemplo, trabalhar com adolescentes em situação de risco ou em reabilitação social. Esse é um dos grandes sonhos que acredito este ano se realiza. Mas quero muito ensinar meu trabalho ao maior número possível de pessoas. Mostrar e ensinar a magia do barro, o quanto ele fortalece e alimenta o espírito com as suas infinitas possibilidades. E, quem sabe, fazer belas esculturas!
Fonte: http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpag=11646&canal=talento
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