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Ano europeu das pessoas com deficiência - Balanço parcial, referido a 13/09/2003.

por Lerparaver

Analisar o AEPD, em todas as etapas, - da preparação à realização - permite identificar e avaliar o impacto, na construção da sociedade inclusiva, das acções desenvolvidas, do cumprimento dos planos, destacando os factores condicionantes - positivos e negativos - que influenciaram o insucessos ou conquistas, posto que o projecto inicial, (constante da Declaração de Madrid) colidia com o contexto político-social característico das últimas décadas, em Portugal.

Análise retrospectiva dinâmica, porque novos factos amplificarão e esclarecerão a interpretação e juízos subsequentes, geradores da História do AEPD.

1. A preparação do AEPD, em Portugal, foi incipiente, por parte do Governo, visto que a Comissão Coordenadora foi constituída em 20/11/2002, - desencadeando um processo de duvidosa regularidade - e não promoveu a elaboração de qualquer plano, prevalecendo o improviso e discricionariedade, introduzindo instabilidade no seu próprio funcionamento.

A ausência de plano nacional - e planos regionais - foi pretexto para dar prioridade ao folclore e mundanismo, relegando, para plano secundário, opções de transformação do panorama de retrocesso nas políticas de inclusão.

A CNOD - Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes - aprovou (16/07/2002) - divulgando posteriormente - um Plano Modesto, condicionado pela previsão de insuficiência de recursos, cujo objectivo fundamental «inscrever na agenda político-social a construção da sociedade inclusiva»

seria atingido, através da realização de acções - seminários, colóquios, encontros - destinados a sensibilizar, formar, e motivar/mobilizar a opinião pública, comunicação social e decisores: - Órgãos de Soberania (Governo) Autarquias Locais.

2. Em Julho de 2002, pressagiava-se o agravamento da crise económica que flagela, actualmente, quer as ONG’S de Pessoas com Deficiência, quer as Organizações prestadoras de serviços, com prejuízo evidente para a qualidade do atendimento dos utilizadores. A CNOD divulgou um comunicado, advertindo para as graves consequências desse facto, e sugerindo medidas efectivas de salvaguarda da qualidade de serviços fruídos pelas Pessoas com Deficiência.

Prognosticámos o panorama actual de crise cujos efeitos perversos paralisam os projectos/planos do AEPD e fazem temer a desactivação de programas e serviços essenciais à garantia dos Direitos das Pessoas com Deficiência, inscritos na Constituição da República e múltiplos textos doutrinários e normativos internacionais ratificados/reconhecidos pelo Estado Português.

3. Subitamente, no início do AEPD, irrompeu um processo de revisão da legislação estruturante, plasmado num calendário de tal modo irrealista e perverso que afastava a participação, requisito fundamental de legalidade/ democraticidade, à luz do modelo teórico/doutrinário dos órgãos europeus. - Conselho da Europa e FED (Fórum Europeu da Deficiência) -

O projecto de revisão do Dec-Lei 319/91 - regime do ensino especial - parecia um texto escrito por qualquer escritor surrealista; o primeiro absurdo - sinal de conservadorismo ou supina ignorância - residia na definição de pessoa com deficiência tão despropositado que não se poderia incluir nos modelos teóricos de inclusão conhecidos.

O projecto mereceu «geral reprovação», em virtude do conteúdo retrógrado, ambiguidade, inconsistência de procedimentos de gestão e propósito de reduzir ou suprimir requisitos fundamentais à escola inclusiva, interpretando-se, com mediana claridade «como antagónico à escola inclusiva», manifesta conculcação à Declaração de Salamanca.

A CNOD transmitiu a rejeição deste famigerado projecto, apresentando um parecer que incluía numerosas propostas alternativas.

O conteúdo e conceitos, inequivocamente retrógrados, antagónicos à escola inclusiva, mantêm-se intactos na Proposta de revisão da Lei de Bases da Educação.

Oriundos do SNRIPD foram distribuídos dois documentos designados «contributos» para a revisão das Leis 9/89 - Lei de Bases da Prevenção, Reabilitação, e Integração das Pessoas Portadoras de Deficiência - e Lei 127/99 - Lei das Associações de Pessoas Portadoras de Deficiência.

Ponderada a inserção do SNRIPD na hierarquia do Estado (equiparado a Direcção Geral) afigura-se desajustado o procedimento, porque essa iniciativa caberia nas funções atribuídas a Secretaria de Estado ou Ministério. Os documentos caracterizam-se por reproduzir as ideias, conceitos, princípios e procedimentos arcaicos, de índole conservadora, obstinação permanente de controlo e tutela dominante no aparelho tecnocrata do SNRIPD. A formulação vaga dos documentos, a ausência do articulado - forma habitual dos projectos de lei ou decreto-lei - complicava a interpretação, análise e debate dos ditos.

A CNOD elaborou propostas substantivas de alterações aos dois textos e, após reuniões com as associações filiadas, remeteu-as ao gabinete do Ministro da tutela e ao autor.

As reuniões confirmaram as propostas e ratificaram a rejeição manifesta e fundamentada dos dois documentos.

Saliente-se o simulacro de audiência, porque, desrespeitando as insuficiências das ONG’S, reiteradamente expostas, o SNRIPD estabeleceu prazos de oito dias para análise de instrumentos modeladores da inclusão das pessoas com deficiência e função insubstituível das organizações representativas, em flagrante violação da Declaração de Madrid. Tal circunstância mereceu severos protestos da CNOD.

Outra legislação impactante na inclusão - código do trabalho; lei de bases da segurança social; legislação da saúde - gravemente lesiva dos Direitos e conquistas das pessoas com deficiência não cumpriu o requisito de audiência das organizações das pessoas com deficiência, apesar dos efeitos extremamente negativos, para este extracto, desta contra-reforma legislativa cujo modelo e causas obedecem a orientações contraditórias ao discurso retórico da solidariedade.

Recentemente tomou-se conhecimento da proposta de lei da Televisão, constatando-se que as disposições anteriores sobre a acessibilidade das pessoas com deficiência - nas diversas modalidades - tinham sofrido alterações que comprometem esses direitos.

O processo legislativo descrito, em síntese, explicita retrocesso objectivo no caminho para a sociedade inclusiva e inscreve-se na opção política de restrição de recursos destinados às políticas sociais, favorecendo opções economicistas, enquanto crescem a pobreza, a exclusão - expandindo-se, progressivamente, manifestações de crescente desequilíbrio social - e marginalização, exclusão e discriminação das pessoas com deficiência.

4. Desde 1975, fixou-se a participação como direito universal inalienável das pessoas com deficiência, quer a título individual, quer, de modo mais efectivo e operativo, através das suas organizações representativas - organizadas em modelos democráticos, garantindo genuinidade da representação. O princípio da participação, definido de modo plural, na conceptualização, tem sido repetido, aperfeiçoado, reclamado e exigido, a partir da Resolução 3447/75 da Assembleia Geral da ONU - Organização das Nações Unidas - e foi consignado, como inovação, no Dec-Lei 346/77/08/20 - criação do SNRIPD - e, de modo mitigado, transposto para a Lei 9/89. O legislador transcreve para a lei citada o artigo 66.º da Lei 28/84, - Lei de Bases da Segurança Social - omitindo ou recusando propostas constantes do Projecto-Lei 294/V, fonte da Lei 9/89. O princípio universal participação mereceu consagração mais clarificada na Lei 127/99, mas tem sido, impunemente ignorado, prática costumada, por ausência de mecanismos sancionatórios das reiteradas infracções à legislação promotora da inclusão.

Adscrito ao Secretariado Nacional de Reabilitação o Dec-Lei 346/77 criou o Conselho Nacional de Reabilitação, definido como órgão consultivo garantia a intervenção activa das ONG’S/PD, concretizando, de modo falacioso, o princípio/direito à participação. As mudanças posteriores na composição, competências e orgânica do CNR limitaram/reduziram o exercício do diálogo, a oportunidade de apresentar propostas, subalternizaram as ONG’S, transformando o CNR num espaço desvalorizado de debate, dominado pela agenda do SNR, determinada pelos órgãos da tutela, ao sabor da conveniência política dos diversos governos. Portugal é, por ventura, o Estado da União Europeia com maior déficit de participação das ONG’S na definição, planificação, execução, supervisão e avaliação das políticas estruturantes da inclusão.

Os indícios manifestos nos projectos divulgados de alteração legislativa compaginam a perda de oportunidade de acertar o passo com os estados modernos, isto é, estabelecer mecanismos de diálogo, negociação e consenso, (participação) cumprindo os critérios de verdadeira modernidade, - fundados na consolidação da inclusão «como questão de Direitos Humanos» - dominantes nos parceiros europeus.

Sintoma perturbador, no AEPD, tempo propício ao diálogo fecundo, revela-se na ausência de convocatória de qualquer reunião do CNRIPD, facto justificado pela obsessão de protagonismo e ambição de Poder, com traços de prepotência, por parte dos tecnocratas do SNRIPD.

5. A realização do AEPD suscitou procedimentos contraditórios: Conhecida a Decisão do Conselho de Ministros da União Europeia, os órgãos de soberania, em Portugal, reagiram com indiferença. O Governo pareceu desinteressado, porque as diligências para criar a Comissão iniciaram-se em Novembro, concluindo-se em 20/11/2002, na base dum procedimento de duvidosa legalidade. A Comissão tem reunido regularmente, mas inibiu-se de promover a aprovação dum Plano que aglutinasse todos os parceiros - entidades oficiais e ONG’S intervenientes - e potenciasse a cooperação como estratégia para atingir os grandes objectivos, sintetizados na Declaração de Madrid - 1.º Congresso Europeu das Pessoas com Deficiência.

A criação de Comissões Distritais, na dependência dos Governos Civis, não contribuiu para descentralizar as acções programadas, porque aqueles órgãos da administração não coordenam e geram suspeições em outras entidades.

Outro factor importante na justificação da paralise do AEPD foi a escassez de recursos disponibilizados que bloqueou o trabalho da Comissão Coordenadora Nacional e Comissões Distritais. Exemplo incontroverso é a posposição “sine die” do Festival previsto pela Comissão Coordenadora Nacional.

O largo leque de actividades organizadas, ao longo do território, teve carácter casuístico, improvisado e fugaz, primando pelo folclore e mundanismo, em detrimento da mudança necessária, principalmente nas regiões afectadas pela interioridade, causa de subdesenvolvimento e acrescentados índices de exclusão, marginalização e discriminação.

A Comissão Coordenadora Nacional assumiu, inopinadamente, funções extra-competência, transformando-se em julgadora de alguns membros, e parecendo querer substituir outros órgãos. Competindo-lhe promover, a nível nacional, o programa de desenvolvimento do AEPD, auto-limitou a acção a actividades voláteis e, acintosamente, renunciou à promoção de trabalho de estudo da complexa problemática da inclusão, incluindo o impacto da propalada crise, no presente e futuro das pessoas com deficiência e suas ONG’S.

Nas Organizações intervenientes na inclusão, estimulado pelo conhecimento das necessidades e indómita generosidade, eclodiu um caudal de projectos e propostas, precocemente «nado-morto», em virtude das opções de contenção económica anunciadas pela tutela. Cabe interrogar-se, surpreendendo a ingenuidade do universo associativo, sobre a euforia, porque os sinais de redução de recursos apareciam nítidos, porque as opções economicistas avassalavam.

Sendo clara a conjuntura, parece intransparente a complacência submissa do universo associativo.

O sucesso do AEPD materializa-se em resultados verificáveis, objectivamente, salientando-se: - reconhecimento incontestável da função insubstituível das ONG’S; - pleno respeito pela autonomia e independência; - valorização da actividade, princípios, projectos e implantação territorial - critérios objectivos cuja aplicação deverá conduzir a superação da discriminação baseada em preconceitos e favores subjectivos.

6. No plano das relações institucionais subsiste um comportamento mais próximo da tolerância, inspirada numa visão assistencialista, que um procedimento correcto, baseado no respeito e urbanidade protocolar, em condições de verdadeira garantia da participação, como prática exigida entre parceiros, dotados de igualdade.

Salvo reduzidas excepções, os órgãos de soberania obliteraram o AEPD.

Ignoramos a posição oficial de Portugal a propósito da metamorfose anunciada como traço histórico indelével em 2003. «Directiva Específica sobre a antidiscriminação» Como se tem posicionado o Governo Português, no interior da Comissão Europeia, no debate da Directiva Específica? As ONG’S/PD participaram na formulação da posição de Portugal em matéria tão transcendente e estruturante?

Portugal participou na 2.ª Conferência Interministrial do Conselho da Europa sobre a problemática das Pessoas com Deficiência; (Málaga, 7 e 8 de Maio de 2003) de acordo com informação colhida em Conferência preparatória (Madrid 7 e 8 de Abril de 2003) com participação da CNOD, no âmbito do FED, sabe-se que teve lugar, na maioria dos países, amplo trabalho preparatório com a participação activa das ONG’S; sucedeu algo parecido entre nós, isto é, como se assegurou a audição das ONG’S? que razões obscuras explicam a ausência de diálogo, quando a experiência e conhecimento - infinitamente comprovados - das ONG’S valorizaria o contributo de Portugal para a evolução da Europa, como espaço exemplar na promoção dum modelo social moderno e harmonioso - objectivo repetidamente proclamado na União?

«6.1 Os mecanismos de implementação devem ser instituídas ao mais alto nível de administração sob dependência directa da autoridade ministerial.

Estes mecanismos devem ser estruturados de modo que as necessidades dos deficientes se projectem em todos os sectores da administração».

Transcreve-se o conteúdo da Declaração de Harare para realçar a estagnação do princípio «participação» e a obsessão de conculcar o Direito Internacional, quando favorece a sociedade e submete o Estado ao «imperium legis».

Outra consequência estratégica do texto transcrito deve ser a garantia do tratamento da problemática da inclusão ao mais alto nível da administração, sob dependência ministerial.

afloramento desta opção correcta parecia exprimir-se na colocação do CNRIPD na dependência do Ministro da tutela Dec-Lei 225/97, mas desvaneceu-se, observando-se, actualmente, a inibição ou dissolução oculta, por renúncia de competência a favor do SNRIPD, (mera direcção geral) revelando, simultaneamente, desinteresse e favorecendo a hostilidade indisfarçada e prepotência do aparelho tecnocrata ao universo associativo - fonte activa de conflitualidade, discriminações e paralise do AEPD e política de inclusão. A tendência para desvalorizar a política de inclusão acentua-se pela delegação no Secretário de Estado do Trabalho (circunstância invulgar) de tudo quanto diga respeito à «política de inclusão».

Conclusão - O AEPD, em Portugal, caracteriza-se pela inércia do Estado. Não foi tomada, nem se vislumbra nenhuma medida, em sintonia com o projecto, cuja matriz teórica é a Declaração de Madrid.

Se avaliarmos, objectivamente, a evolução da mudança legislativa promovida pelo Governo – legislação relativa aos sectores significativos: saúde; educação; segurança social; emprego; acessibilidades; e outras – detectaremos retrocesso inédito no caminho para a construção da sociedade inclusiva.

O processo de revisão legislativa, a ausência de planificação, o reduzido orçamento, o folclore, mundanismo e a mais despodorada manipulação são sintomas inequivocamente objectivos do radical antagonismo «construção da sociedade inclusiva» - objecto de discurso retórico - «política economicista» - de recorte anti-social - cujas consequências catastróficas - inauditas nos últimos decénios - fustigam as pessoas com deficiência, em todos os domínios, e pretendem condenar à eutanásia «morte lenta» as suas organizações representativas, sublinhando-se a discriminação ilícita das mais intransigentes e combativas na «defesa dos direitos humanos das pessoas com deficiência.

Em Portugal o AEPD será antagónico ao projecto original, inscrevendo-se na História como negação, por acção ou omissão, das transformações anunciadas como resultado do AEPD.