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O primado da leitura e o recusso de ouvir ler

por Lerparaver

OS DEFICIENTES VISUAIS E A LEITURA

Colóquio

TEMA 2 - Ler e/ou ouvir ler: Semelhanças e Diferenças

O PRIMADO DA LEITURA E O RECURSO DE OUVIR LER

por F. P. Oliva

O fulcro da questão

No contexto em que se insere este trabalho, a abordagem da matéria que nos propusemos tratar afigura-se-nos oportuna e pertinente, a reclamar uma análise comparativa da natureza e função dos mecanismos sustentadores das acções de ler e de ouvir ler - uso de livros sonoros e utilização de sintetizadores de voz -, visando uma ponderada avaliação quanto à eficácia e eficiência dos respectivos sujeitos face aos processos próprios de cada uma das actividades.

Oportuna porque, por um lado, assiste-se à contradição gritante entre o anúncio de que já não faz sentido falar de ensino integrado, uma vez que já se está no tempo da escola inclusiva, por outro lado, a saída de professores dos cursos de formação, sem terem ouvido uma palavra sobre braille ou, o que é pior, tendo-lhes sido inculcada a ideia de que «o braille não é importante». Pertinente porque, como mais adiante se verá, não cessam as tomadas de posição públicas, por parte de insuspeitas organizações internacionais, a acentuar a importância do papel do braille no processo de integração. No entanto, queremos sublinhar desde já que, ao contrário do que poderia parecer, não é nosso propósito repudiar o ouvir ler em favor do ler. É certo que preferimos ler, mas reconhecemos que ouvir ler constitui um importante recurso complementar da leitura e, por outro lado, representa a única alternativa viável para todos aqueles que se encontram impossibilitados de ler braille ou não podem atingir na leitura a fluência necessária a um aproveitamento minimamente satisfatório. Pretendemos, isso sim, evidenciar a supremacia que a leitura silenciosa, ao longo da história, incontestavelmente consolidou face à leitura em voz alta, e daí extrair as consequências que se evidenciarem.

Uma espreitadela na História

Sabemos que a Literatura começou por ser transmitida por via oral e que, nos primeiros tempos da escrita, a leitura era feita oralmente, como forma de ajudar a ultrapassar mais facilmente as dificuldades impostas pelas características próprias da scriptio continua, traduzidas na inexistência de espaços entre as palavras, na ausência de pontuação e de maiúsculas. Por outro lado, sendo diminuto o número de livros e de pessoas aptas a ler, à leitura em voz alta, a mais difundida em toda a Antiguidade, foi muito praticada como meio de transmissão de conhecimentos. Contudo, a leitura silenciosa também aparece documentada na Grécia, no início do século V a.C., levando os historiadores a admitir que ambas as formas de ler, a leitura em voz alta e a leitura silenciosa, já coexistiam nesse período. Mas a oralidade gozava entre os gregos duma enorme pujança. A celebração dos heróis, entre os quais se contavam os vencedores dos Jogos, oferecia o pretexto para uma sonora proclamação de glória.

Veja-se como Jesper Svenbro (CNRS, Paris) se refere a este assunto no ensaio « La Grèce archaique et classique. L'invention de la lecture silencieuse»: « Si, pour les Grecs, le but de l'écriture alphabétique a été, ainsi que je l'ai affirmé plus haut, la production de son, de paroles efficaces, de gloire retentissante, pourquoi aurait-on eu l'idée de lire en silence? Pourquoi aurait-on lu de façon silencieuse dans une culture qui fait du silence le synonyme de l'oubli?» E na «Introduction» à «Histoire de la Lecture dans le Monde Occidental», dirigida por Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, estes autores escrevem, depois de citarem diversos testemunhos: «(...) " Quand, sur mon navire, -j e me l i s pour moi -même l'Andromède" (pièce d'Euripide, représentée en 413), (...). On ne saurait exclure que, dans ce cas, l'expression "pour moi" (...) renvoie à une lecture non seulement individuelle mais silencieuse, à une voix lectrice tout intériorisée et donc adressée seulement à soi-même».

Mas veja-se também o que escreve Roger Chartier na sua obra

«Libros, Lecturas y Lectores en la Edad Moderna», em tradução espanhola dé Mauro Armino: « Dado que así ocurre en nuestro mundo, la lectura ha sido percibida tradicionalmente como el acto por excelencia de la intimidad individual, como una práctica fundamentalmente privada. Y, por supuesto, textos y imágenes dan testimonio de esa fuerte relación entre la actividad lectora y el retiro del mundo. Pero tambièn debe reconocerse que hay otras lecturas distintas, que no se hacen en el aislamiento, que no son solitarias ni silenciosas. De ahí el interés, reciente en Francia, por las instituciones que permiten leer sin comprar y donde el encuentro con el libro se hace en un espacio colectivo: por ejemplo, las colecciones abiertas al público y los gabinetes de lectura, por ejemplo las bibliotecas municipales, nutridas por las confiscaciones revolucionarias, por ejemplo las bibliotecas escolares y las bibliotecas populares, en sus inspiraciones contrastadas, filantrópicas o asociativas. De ahí, paralelamente, la atención prestada a todas las formas de lectura en alta voz, comprendda no sólo como medio de hacer participar a los analfabetos en la cultura de lo espirito, sino tambièn, y sobre todo, como una forma de sociabilidad, familiar, mundana o culta, hecha por tanto por quien sabe leer a quien sabe leer. De la diligencia a la taberna, del salón a la academia, del encuentro amistoso a la reunión doméstica, son muchas las circunstancias entre los siglos XVI y XIX en las que leer en voz alta, para los demás, es un gesto normal, esperado. La lectura no es, por tanto, solamente una figura de lo íntimo o de lo privado; tambièn es cimente, y expresión del vínculo social. La historia del libro mudada en historia de la lectura se ha esfuerzado por restituir las formas contrastadas con que lectores diferentes aprehendían, manejaban y se apropiaban de

los textos puestos en libro.»

Oralidade e mergulhar na leitura

Como se vê, a partir do primeiro e aparente embate entre leitura em voz alta e leitura silenciosa, estas formas de ler foram-se afirmando nos seus contextos mais favoráveis e à medida que o desenvolvimento cultural e civilizacional veio impondo a alteração das circunstâncias, que vieram favorecendo a leitura silenciosa. Assim, a vulgarização da escrita, a criação e multiplicação das universidades, a invenção da imprensa de Gutenberg e a proliferação do livro, o desenvolvimento das ideias sócio-políticas, a generalização do ensino, etc., vieram enquadrando e condicionando as duas formas de ler, acentuando-se sempre, por razões de rapidez e inteligibilidade, a supremacia da leitura silenciosa face a ouvir ler em voz alta.

E isto porque, como já sustentámos na nossa intervenção aquando da celebração dos 40 anos do Centro Prof. Albuquerque e Castro - Edições Braille, «ler é mergulhar num texto e ficar imerso no pensamento do autor para lhe captar o conteúdo e a forma. Mas com o sucesso deste mergulho, permitam-me a expressão, tem a ver também a aptidão do leitor para assimilar a mensagem e tornar mais rica essa assimilação através da incorporação do contributo tirado do seu capital de experiência e da sua estatura cultural. A leitura surge, então, como um compromisso entre o que o autor escreveu e o enquadramento intelectual e emocional que o leitor for capaz de criar. (...) « Sendo a leitura eminentemente pessoal, como se viu, e dependendo também da capacidade de assimilação e dos apports cada leitor, torna-se necessário o contacto directo do leitor com a forma gráfica escolhida para transmitir o pensamento do autor. Só através deste contacto pode o leitor seguir o seu próprio ritmo de assimilação, acelerando nas passagens mais apelativas, ralentando, insistindo ou repetindo nos passos de elaboração mais complexa, captando e apreciando directa e completamente as intenções traduzidas pelos recursos gráficos empregados, imprimindo a interpretação suscitada pela sua própria sensibilidade. Por outro lado, o leitor contacta com a realidade ortográfica das línguas, contacto imprescindível para ajudar à interiorização das imagens gráficas dos vocábulos. O leitor pode, também, manusear facilmente os livros, compulsando rapidamente os volumes, fazendo desfilar diante de si secções sucessivas de duas páginas de texto para as explorar em leitura vertical, diagonal, paralela, etc. Pode ainda o leitor escolher sem constrangimentos nem dependências o local de leitura, uma vez que o livro não necessita de qualquer meio que viabilize a sua utilização.»

A importância destas questões de leitura assume particular relevância para os deficientes visuais, dado que a leitura representa para eles, impossibilitados de ver ou drasticamente limitados quanto à apreensão de imagens, a via privilegiada para o acesso à informação. No entanto, a pouca ou nenhuma atenção que entre nós e em alguns outros países se vem dispensando nos últimos anos ao ensino do braille, empurrando os alunos, sejam ou não capazes de aprender o braille, para a exclusiva utilização dos meios de sonorização de texto, tem tido como consequência imediata o alastramento preocupante do recurso à audição da leitura em voz alta em prejuízo da leitura silenciosa. Contudo, os sinais de alarme já se começaram a ouvir. Prestigiadas instituições internacionais já tomaram posição procurando influenciar em sentido contrário a perniciosa situação a que chegámos.

A UNESCO, que tem apoiado o braille como a única escrita táctil paralela à escrita a tinta, em cooperação com a IFLA - International Federatíon of Library Associations & Institutions, aprovaram o novo texto, revisto, do Manifesto UNESCO para as Bibliotecas Públicas. De acordo com a filosofia do documento, em que o conceito de público não exclui as minorias, os serviços devem ser prestados na base da igualdade de acesso para todos... devem ser fornecidos serviços e materiais específicos aos utilizadores que, seja por que razão for, não possam utilizar os serviços e materiais geralmente oferecidos. As Bibliotecas Públicas têm a responsabilidade fundamental para com os leitores de braille e, como sustenta tanto a IFLA como a UNESCO, é parte integrante da finalidade e das funções das bibliotecas proporcionar-lhes acesso a livros em braille e a serviços.

Em articulação com a TPB (Swedish Library of Talking Books and Braille), a WSLBPH (Washington State Library for the Blind and Physically Handicapped) e a CNIB (Canadian National Institut for the Blind) Library, a UNESCO e a IFLA difundiram em Agosto de 1998 um folheto intitulado « Guidelines for Library Service to Braille Users», do qual temos estado a socorrer-nos e onde se pode ler:

« Society accepts the strong association between literacy, education and individual economic and social well being as well as the prosperity of a community, its neighbourhoods and nation. Surveys of blind and visually impaired people conducted in North America and Europe by organisations such as the Swedish Library of Talking Books and Braille, the Washington State Library for the Blind and Physically Handicapped (WSLBPH) and the CNIB Library for the Blind reinforce what is accepted amongst the general population i.e. the strong reading or literacy skìlls enhances employability, opportunities for higher learning, and independence. In all three studies those who learned braille as their original reading medium and used it extensively were more likely to develop positive reading habits, were employed at higher rates and most likely to acquire graduate degrees. Neither technology nor tape recordings are acceptable substitutes for an ability to read and write in both the sighted and blind communities. The foundation of literacy in both communities is the ability to read and write print or braille.»

No mesmo documento encontram-se ainda um conjunto de princípios destinado a tornar o espírito do Manifesto UNESCO extensivo a todos os tipos de serviços de bibliotecas para deficientes visuais, em especial onde o analfabetismo e/ou o analfabraillismo constituam um factor crítico; e um conjunto de orientações mínimas para facilitar o acesso à informação em braille e tornar mais fiável essa informação.

Concluindo

O reconhecimento do primado da leitura ante o recurso de ouvir ler apresenta-se-nos, pois, incontestável, o que não quer dizer que o recurso de ouvir ler deva ser banido. Em seu favor foram aduzidas bastas razões a legitimar e tornar desejável, por necessária, a sua prática. Contudo, transposto para os suportes sonoros, e enquanto não for possível dispor de instrumentos eficazes de ajuda à exploração textual, o recurso de ouvir ler carece ser rodeado de todos os cuidados conducentes à facilitação da apreensão do sentido dos textos: boa qualidade da gravação, leitura correcta e expressiva, leitura da numeração das páginas, referenciação concisa e clara do material extra-texto, criteriosa referenciação das notas sem prejuízo da audição do texto sem descontinuidades, apresentação de índices; glossários, informação de capa sobre os autores e as obras, etc., no princípio dos livros, soletração de palavras estrangeiras, etc.

Mas a leitura por excelência, a eminentemente íntima e pessoal, essa é em silêncio que se atinge. Afirma-se constantemente esta realidade. Quem não recorda, por exemplo, a restolhada que enche uma sala, quando volta a folha o orador que lê a sua conferência, cujo texto foi previamente distribuído aos circunstantes, os quais se não resignam a ouvir, passivamente, a leitura do orador, preferindo fazer, silenciosamente, a sua própria leitura. Nada justifica, portanto, que os deficientes visuais que possam aprender o braille, estejam a ser empurrados para a exclusiva condição de ouvintes e fiquem privados do benefício da prática da leitura silenciosa, por o braille não lhes ser ensinado ou não lhes ser convenientemente ensinado.

Impõe-se, pois, a revisão da política do Ministério da Educação quanto ao ensino do braille «que constituye una de las bases de la identidad de las personas ciegas; que refuerza su autoestima, asegura su independencia y posibilita su integración;» e considerando também « Que por la significación que tiene en la personalidad y identidad de la persona ciega, el libre ejercicio del sistema brailie es un derecho que debe protegerse y volverse accesible a todos;», como, uma vez mais, foi recentemente reconhecido a nível internacional na Conferencia Iberoamericana del Braille (Buenos Aires, 1999). O importante, então, será habilitar os alunos deficientes visuais a ler e a escrever braille, na exacta medida em que se habilitam a ler e a escrever os alunos normovisuais.