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Ver ou não ver... - blog de Ângelo Pinho 3730

Aminha história de vida

por Ângelo Pinho 3730

A minha história de vida

Sou o quartofilho de uma família de oito irmãos. De origem humilde, fui educado segundo princípios e valores cristãos. Os meus pais, apesar das enormes dificuldades, tudo fizeram para que tivéssemos uma vida melhor que a deles.

Conhecedor de algumas profissões, o meu pai trabalhou sempre por conta de outrem. A minha mãe, ocupava-se das lides de casa, o que já não era pouco!

Todos nós estudamos e sete dos oito filhos concluíram cursos superiores, na área da Educação, Medicina, Engenharia e Ciências Sociais. Terminei o meu curso (Serviço Social) no ano de 1982. Nesse mesmo ano, iniciei a minha actividade profissional como professor na Escola Secundária de Vale de Cambra, tendo sido incorporado no serviço militar obrigatório, em Março de 1983, em Tancos, na Escola Prática de Engenharia, onde permaneci até finais de Agosto de 1984.

Em Outubro deste mesmo ano, fui contratado, pela Fundação Luíz Bernardo de Almeida, como assistente social, assumindo as funções de director técnico da instituição. Em Julho de 1987, fui admitido na Câmara Municipal de Vale de Cambra, onde ainda permaneço.

Casei em 1992. Do casamento com a minha esposa, Helena, tenho dois filhos: o Miguel Ângelo, com 13 anos e a Ana Margarida, com 10 anos.

Tinha uma vida óptima!

Fiquei cego há 6 anos. Mas mantenho a mesma força de viver. Não sei se queria voltar a ver. O meu problema não é entre mim e a cegueira mas entre esta e os valores hegemónicos de incapacidade. A hipocrisia e a “piedade” da generalidade das pessoas, faz-me sentir muito mal. Actualmente, com o desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, existem instrumentos e ferramentas que possibilitam uma vida profissional tão excelente como os demais profissionais. Ao carpinteiro, picheleiro ou electricista, retirem-lhes as ferramentas de trabalho i ordenem-lhes que consertem ou façam algo. O que é que acontece? Nada.
Não fazem nada, rigorosamente nada! Assim, também acontece connosco, pessoas com cegueira. Sem ferramentas ou instrumentos adequados, não podemos trabalhar. Aliás, quando as possuímos somos mais autónomos i menos dependentes do que a maioria das pessoas. Por exemplo: pensem nos nossos ministros ou nos presidentes das Câmaras, nos gabinetes de apoio pessoal. Possuem chefes de gabinete, adjuntos e assessores. Ah! Não podemos esquecer a secretária e a pessoa responsável pelas relações públicas e imagem e ainda, o motorista! Ao Presidente da República lêem-lhe os jornais. E nós mesmo sem ver, não precisamos de ajuda. Somos amigos do ambiente. Poupamos energia, mesmo quando trabalhamos com o computador (não precisamos do monitor) e andamos quase sempre a pé. Vemos para além do que a maioria das pessoas conseguem ver, porque estão habituadas a ver o que lhes salta à vista enquanto nós, tomamos atenção às sensações e emoções que as coisas e as pessoas nos transmitem. Vemos de uma forma mais profunda.

Na Câmara Municipal de Vale de Cambra, subi degrau a degrau até chegar a chefe de divisão.

Paralelamente, desenvolvi intensa actividade associativa de âmbito desportivo, cultural, social e político.

Como técnico de serviço social trabalhei sempre com pessoas socialmente desfavorecidas e não houve projecto social em que não tivesse colaborado, dinamizado ou impulsionado. Foi assim com os projectos de criação dos Centros de Acolhimento existentes em Vale de Cambra. Com o Centro juvenil de S. Pedro de Castelões, no âmbito do Projecto de Luta contra a Pobreza, com a criação da Associação Valecambrense de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente e outras mais. Lembro os diversos cursos de Formação Profissional levados a efeito em Arões , onde a confecção de roupas ligada à tecnologia tradicional da cultura do linho e a arte tradicional da encadernação , aqui na sede do concelho, são marcas actuais da minha actividade em prol das populações desfavorecidas. Os cursos levados a efeito em colaboração com o Centro de Formação Profissional de Rio Meão, na área social, proporcionou emprego a inúmeros formandos , nos diversos equipamentos sociais, ligados à infância e aos idosos, que entretanto foram surgindo pelo concelho . Na minha passagem pelo executivo da Junta de Freguesia, a criação e aprovação da heráldica da freguesia, a que estive directamente ligado, teve para mim um significado especial bem como a publicação do Foral de Cambra , que todos falavam mas que nunca o tinham visto. A homenagem feita ao Dr. Eduardo Coelho, ainda em vida, a quem lhe foi atribuída a medalha de ouro, em Fevereiro de 2004, em que estive também envolvido, gerou alguma polémica . A verdade é que, após o seu falecimento em 23 de Julho do mesmo ano, não faltam homenagens e placas no cemitério local! É curioso que na vida política local , algumas “cabeças”por quem eu dei a cara, gastei dinheiro e apoiei, decepcionaram-me completamente. É evidente que uma das pessoas foi a candidata pelo PS, à Câmara Municipal, nas penúltimas eleições autárquicas. Mas tudo mudou. As pessoas têm memória curta e são ingratas.

Um dia, no anode 1996, Estava no trabalho e, ao fazer determinado movimento, fiquei com a vista esquerda completamente ás escuras. Consultei um oftalmologista que me disse que eu tinha um descolamento de retina e devia ir ao hospital. Foi aí que tudo começou. inha 37 anos. Por esse motivo, e apesar de operado, acabei por perder a vista esquerda passado ano e meio. Perdi a esquerda mas fiquei com a direita. Entretanto diagnosticaram-me glaucoma. Encarei naturalmente a situação e continuei a fazer a minha vida normal, até há 6 anos. Ceguei em Julho de2003. Entre meados de 1996 e Junho de 2003 fui alvo de 12 cirurgias , 10 das quais à vista direita. Mas as coisas teimavam em não correr bem e por último, surge uma catarata que me conduziu praticamente à cegueira. Fui operado mas eu fiquei a ver duas imagens que me dificultavam e faziam confundir as coisas. Decidi então, voltar a operar e foi aí que perdi tudo ou quase tudo. Estávamos em Junho de 2003. De facto, em quase uma dezena de cirurgias não houve uma que tivesse corrido bem, estabilizando a doença. E acabei por cegar. Aí é que me pareceu que o mundo tinha acabado para mim!

Pensei que já não podia fazer mais nada, enfim, foi um desespero terrível. Tinha filhos pequenos, a minha esposa não trabalhava na altura, eu precisava de trabalhar e vi-me confrontado com uma situação que me parecia um “beco sem saída”!

Entretanto, apresentei a minha demissão da Direcção da Fundação Luíz Bernardo de Almeida, não pelo meu problema de visão, mas porque aconteceram situações muito graves sobre as quais eu jamais poderia esconder. Fui ameaçado e publicamente humilhado. As coisas transformaram-se numa novela. Os jornais locais mão falavam noutro assunto. Recorri ao Ministério Público, mas não acreditou em mim e não promoveu qualquer inquérito judicial! Em defesa da minha pessoa, decidi publicamente revelar alguns indícios de supostas práticas de crime. Aí, o Ministério Público foi obrigado a mudar a sua atitude. Eu fui alvo de uma queixa-crime por difamação de que fui ilibado em termos criminais mas civilmente responsabilizado pelo “normal acontecer das coisas”. A novela continua mas agora na barra dos Tribunais. Somente agora neste ano de 2009 as coisas começam a serem esclarecidas!

Na Junta de Freguesia cumpri o meu mandato que terminou em finais de Dezembro de 2005. Aliás , desempenhei três cargos diferentes em outros tantos mandatos.

Como chefe de divisão, cargo de imensa responsabilidade, precisava para continuar a desempenhar as minhas funções, da confiançça e compreensão de todos para desenvolver capacidades e competências que a reabilitaçção poderia proporcionar. Mas fui surpreendido pela forma como algumas pessoas encararam o meu problema! No entanto, a meu pedido, a Câmara adquiriu, então, software próprio e adequado (JAWS), um leitor de ecrã, muito completo e extraordinário que torna possível a leitura de qualquer formato, no ambiente Windows, porpessoas com cegueira. Aprendendo tudo de novo, passei a dedicar-me, horas infinitas a explorar o novo programa e a relembrar os inúmeros comandos e atalhos do teclado do computador. Precisei também de automatizar os dedos das minhas mãos às teclas do teclado. O “rato”, um acessório indispensável para a maioria dos utilizadores, para nós, pessoas que perderam o sentido da visão, deixa de ter qualquer utilidade.

Fui sempre uma pessoa muito exigente comigo mesmo e com os outros. Trabalhando tantos anos com pessoas desfavorecidas, e aconselhando-as sempre a tentarem dar a volta por cima, como é que eu, agora, não o ia fazer? Só que eu não contava com a descriminação. Sempre me senti capaz de desempenhar o meu cargo de chefe de divisão, que consegui manter durante 3 anos. Não fui bem aceite e senti-o de uma forma muito dura. Os colegas de serviço mudaram o seu comportamento de uma maneira que eu nunca pensei possível. Mediante os obstáculos, o afastamento de pessoas que tinha como amigas, dos próprios colaboradores e subordinados,
vi-me confrontado com um dilema: Ou mergulhava nesse poço sem fundo ou dava a volta por cima. E foi o que eu fiz. Entretanto, em Março de 2006, os serviços foram reorganizados e divididos em duas estruturas orgânicas, a parte social e a parte cultural. Quando isto acontece é de lei que “caiam” as chefias, e é assim que eu perco o cargo de chefe de divisão. Sem me deixar abater, aceitei de bom grado a proposta que me fizeram para exercer funções na área cultural, ligado á História local, uma vez que gostava da área e possuía habilitações para tal. Tenho uma especialização que me permite exercer tais funções. Uma
especialização em assuntos culturais no âmbito das autarquias de 4 semestres, tirada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra que me confere o nível 5 de qualificação (equivalente a licenciatura).

Apesar da descriminação que senti na pele por ter ficado cego, não guardo rancores. Hoje estou grato a todos os que me deram bofetadas, porque serviram para eu ganhar ânimo e coragem para ultrapassar as dificuldades. Actualmente exerço funções no âmbito da história local, na divisão cultural da Câmara Municipal de Vale de Cambra.

Agora que o mais difícil está ultrapassado. Quero retomar tudo o que fazia antes. Até porque, depois de cegar, as pessoas deixaram de acreditar em mim! Mas posso garantir que vou voltar. Nesse sentido, tenho trabalhado para me adaptar o melhor possível ao meu estado. Entendo que estou o suficientemente adaptado ao meu quotidiano, mas ainda quero ganhar maior autonomia. É assim que, em Outubro de 2006 , ingresso na ACAPO. Aprendi Braille e técnicas de orientação e mobilidade por forma a minimizar os efeitos da perda da visão.

Em 2007, após concurso de ingresso, matriculei-me no mestrado de Ciências Sociais e Saúde e espero concluí-lo em meados de 2009. Uma nova etapa para quem, desde há 6 anos, aprende tudo por sua iniciativa.

A minha força e a coragem não advêm apenas da minha personalidade. Na realidade, a família tem sido o principal apoio que teve de mudar hábitos e reorganizar a vida familiar. Vivo o dia-adia , sem complexos e hesitações. Tenho o caminho traçado e será difícil demover-me dos meus objectivos. Ainda há muito pouco tempo fui novamente candidato à presidência da Direcção da Fundação Luiz Bernardo de Almeida, com o único propósito de recocolocar aquela casa no caminho delineado já no ano de 1995, data a partir da qual exerci as funções de Secretário até 14 de Janeiro de 2004. Aliás, é do conhecimento público a dedicação com que exerci tal cargo. No entanto movimentações políticas locais e distritaisdo Partido Socialista, opuseram-se aos meus propósitos. Pode ser que venham ainda a “engolir um sapo”! O curioso
dos protagonistas dessas movimentações políticas , é que , de igual forma, não se mexeram para se constituirem novos corpos gerentes para a Banda de Música de Vale de Cambra que, há bem pouco tempo, passou um momento difícil! Mas eu estou lá. Sou o Presidente da Assembleia Geral. Recentemente fui eleito Presidente da Delegação Distrital de Aveiro da ACAPO.

E quanto o mais, o tempo o dirá.

Esta, em traços gerais, a minha história de vida.

Comentários

Oi Ângelo !!

Sim senhor, aqui está um bom exemplo de vida .... !!
Tiveste e tens uma vida profissional e social muito activa, como aliás tb acontece comigo, com a única diferença q eu não sou cego ... !! loool

Apesar de tudo, tb sou deficiente e ouço as bocas das pessoas, tipo "coitadinho", .... !!
Mas o importante é q não nos deixemos ir a baixo, mas q demos sempre a volta por cima ... !!
Que vivamos a vida intensamente, estando com os amigos num bar, em familia .... viver cada momento como se fosse o último ... e fazer desses momentos, momentos especiais .... !!
E concerteza que com toda essa força derrubaremos todas as barreiras ... !!
Mas tb é importante passaar o nosso bom testemunho .... fazer ver que somos só diferentes ... mas q conseguimos fazer o mesmo que os ditos "normais" ... sensibilizar a comunidade ....!!

Avida não é fácil...
Cada dia que começa, é um desafio que nos surge..., e cada dia que termina, é um obstáculo ultrapassado...