Por José Adelino Guerra
Artigo publicado na revista "POLIEDRO" em Janeiro de 2003
Os cidadãos com deficiência representam na União Europeia uma população de aproximadamente 38 milhões de pessoas, calculando-se que em Portugal vivam cerca de um milhão de cidadãos com algum tipo de deficiência (valores apurados pelo projecto Quanti do SNRIPD entre 1993/95 e concordantes com os dados da OMS).
Recentemente, foram publicados os resultados do censo nacional à população portuguesa efectuado em 2001,que revelou um número significativamente inferior ao apurado pelo projecto Quanti: o número de pessoas com deficiência recenseadas em 12 de Março de 2001 cifrou-se em 634 408, representando 6,1% da população residente. No entanto, a fiabilidade destes resultados já foi posta em causa, porque, como o próprio INE (Instituto Nacional de Estatística) adverte as respostas sobre a deficiência e grau de incapacidade obtidas nos Censos 2001 resultam sobretudo da autoavaliação de cada respondente em relação aos tipos de deficiência inscritos nos respectivos questionários. Mesmo nas situações em que as respostas dos questionários foram preenchidas pelos recenseadores na sequência de entrevista directa e não de autopreenchimento dos questionários pelos respondentes, a resposta baseia-se na autopercepção que cada pessoa tinha em relação às suas características individuais ou dos membros da família em relação aos quais estava a prestar informações, havendo, portanto, presumimos nós, a possibilidade séria de muitos cidadãos deficientes ou suas famílias não terem preenchido ou respondido às questões relacionadas com a sua situação de deficiência, já que em Portugal ainda há algum pudor em aceitar essa realidade, sobretudo quando ela mora em nossa casa.
A etiologia das deficiências em Portugal, não é significativamente diferente da dos restantes países europeus, havendo algumas variações nas taxas de incidência, mormente, no que ao nosso país diz respeito, um agravamento naquelas que têm origem em acidentes de viação e acidentes de trabalho. Persiste uma significativa taxa de deficientes militares, resultado das frentes de batalha que Portugal manteve em África ao longo dos anos sessenta até meados da década de setenta.
Seria interessante verificar o modo como ao longo dos tempos a sociedade tem lidado com a deficiência, já que muito do preconceito relativo à deficiência que ainda hoje subsiste mergulha raízes em crenças e superstições de antanho. Não cabendo porém neste espaço mais que o enquadramento mínimo da realidade que estamos a tratar, talvez se possa afirmar que a sociedade tem encarado a deficiência, pelo menos no que respeita a épocas mais recentes, nas seguintes perspectivas: (A) perspectiva proteccionista ou assistencialista - predominante até à década de 60, caracterizada por uma atitude de prestação de serviços de apoio ao deficiente. As políticas de protecção social geradas no âmbito desta perspectiva, têm por base a incapacidade do sujeito, a quem, consequentemente, importa proteger, dada a sua fragilidade. Protege-se o deficiente da sociedade e simultaneamente a sociedade do deficiente, que tem dificuldade em dar outras respostas para além das instituições totais, que agrupavam os indivíduos (sobretudo as deficiências mais severas), em estabelecimentos de ensino especial e unidades de emprego protegido;
(B) perspectiva da integração ou da preparação do deficiente - surge nos finais dos anos sessenta, início da década de 70, coincidindo em Portugal com o aparecimento dos deficientes militares oriundos das guerras coloniais. Nesta perspectiva, ao cidadão deficiente é reconhecido o direito a estar na sociedade, são incrementadas políticas de integração escolar e laboral, mas exige-se ao deficiente que se adapte aos padrões de normalidade vigentes na sociedade. Enfim, o cidadão deficiente é aceite como integrante da sociedade, mas cabe-lhe principalmente a ele o ónus da adaptação, por outras palavras, o esforço de superação da diferença;
(C) perspectiva da inclusão - trata-se da abordagem mais recente, não apenas da problemática da deficiência, mas de todos os grupos susceptíveis de maior risco de exclusão social. Nesta perspectiva, a sociedade reconhece o direito à integração social dos deficientes, mas para além disso, reconhece que lhe compete a ela (sociedade) criar as condições indispensáveis à plena participação de todos os seus membros, independentemente das suas diferenças.
Estreitamente relacionado com as perspectivas acima referidas, está o entendimento acerca do processo de reabilitação. O processo de reabilitação começou por assentar no modelo médico, que via na deficiência uma limitação funcional, um problema do indivíduo, sem atentar que é o meio envolvente (físico e social) que impõe as limitações. O modelo social, permitiu perceber que os cidadãos deficientes lidam fundamentalmente com limitações que lhes são extrínsecas.
Sendo assim, a resposta à pergunta no título deste artigo passa, em nossa opinião, pelos seguintes dados: em primeiro lugar, porque somos muitos (38 milhões no espaço da União) e não é só de agora que a pressão dos números favorece a decisão política; em segundo lugar, porque apesar de vivermos na Europa, chão da liberdade, da fraternidade e da igualdade, à generalidade das pessoas com deficiência não lhes é reconhecida mais que uma cidadania bastarda, sempre aquém no acesso às oportunidades de participação; em terceiro lugar porque, talvez, quem sabe, seja indispensável um acto formal, uma data e um nome oficial, para, de uma vez por todas, surgir um genuíno empenho político na construção da sociedade inclusiva, tarefa que afinal deveria ser de todos os dias e de todos os anos.
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