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A escola de Camila e Lua

por Lerparaver

Sofia da Palma Rodrigues

Como em todos os dias de trabalho, Augusto ia apanhar o comboio. “Busca o comboio, Camila”, “avança”. “Para a frente”, “avança”. Mas nada. Camila insistia em não cumprir a ordem e continuava imóvel. “Avança, para a frente.” Augusto teimava em dar um passo à frente, um passo em falso. Acabaram por cair por cair na linha, aquele não era o caminho que habitualmente percorriam.

Augusto Hortas é cego e Camila foi o primeiro cão-guia treinado em Portugal. O acidente na linha de comboio não passou de um susto. “A culpa foi toda minha, eu é que insisti com ela”, reconhece Augusto. “Estes cães são dotados de uma desobediência inteligente que faz com que não aceitem as nossas ordens se isso nos colocar em perigo.” Hoje, ao fim de mais de sete anos, Augusto já sabe como reagir: “Quando a cadela não quer avançar, vou calmamente com a bengala ver o que se passa. Acredito nela porque tem quase sempre razão.”

Camila devolveu a Augusto a identidade que havia perdido aos 16 anos quando um descolamento de retina lhe trocou as voltas. “quando entrava em qualquer espaço as pessoas tinham uma atitude de comiseração: “Coitadinho do ceguinho.” Ajudavam a sentar-me mas nem sequer me dirigiam uma palavra, era como se eu fosse um ser sem alma”. Desabafa. Com um cão-guia, Augusto começou a sentir que o diálogo se estabelecia naturalmente, sem pena ou acções forçadas. “Interpelam-me na rua, falam comigo, fazem-me perguntas: “Tão giro, posso fazer uma festinha”, “o cão nunca se engana? Não tem medo de andar sozinho?”.”

Com Camila, que foi a sua primeira cadela e morreu no ano passado, Augusto teve de enfrentar os entraves de quem dá os primeiros passos num caminho agreste. “A Camila foi-me entregue em Janeiro de 1999 e só em Julho do mesmo ano saiu o decreto-lei sobre a utilização de cães-guia.” Sem protecção legal, Augusto viu-se muitas vezes impedido de entrar em locais públicos. Com Lua, a sua nova guia, já não tem esse tipo de problemas. “Ando com ela de avião, vou ao restaurante, posso entrar em qualquer estabelecimento público. A minha cadela tem todos os direitos perante a lei. Se a Lua põe as patas no chão, as pessoas também põem os sapatos. Ela é limpa, escovada, tratada, por isso, pode entrar em qualquer lado.”

Augusto é técnico superior no Centro de Formação Profissional de Alverca. Depois do inconformismo, resolveu reaprender a viver. “Tinha que me considerar cego para o resto da vida e lutei para conseguir os meus objectivos”, conta. Formou-se em Filosofia e casou. Os mais de 30 anos de cegueira atenuaram-lhe a revolta e a dor.

Lua acompanha-o de casa, em Vila Franca de Xira, até ao trabalho. Os sentidos da cadela-guia vêm apurados ao máximo durante todo o percurso, por isso, quando chegam tem direito ao merecido descanso. Os raios de sol reflectem na janela e a labrador beje está enroscada num dos cantos do escritório, aos pés da cadeira do dono. Ouve-se o barulho de quem está prestes a dormir a sesta. Sacode-se e volta a ressonar. “Está com preguiça”?, pergunta Augusto. Lua desperta de imediato, “ela é uma cadela muito alegre e divertida”, descreve.

Foi na Escola de Cães-guia de Mortágua, a única em Portugal, que Camila e Lua foram treinadas. Esta escola, criada em 1999, já entregou 50 cães-guia. Recebe do Estado cerca de 60 por cento do seu financiamento, o resto do orçamento é conseguido através de doações de empresas e de festas e sorteios de rifas organizados pela própria escola. “Temos falta de ajudas financeiras que nos possibilitem aumentar o número de educadores e consequentemente formar mais cães”, diz Filipa Paiva, a veterinária da escola.

Com três educadores, forma anualmente 12 guias e tem uma lista de espera de cem pessoas – o tempo previsto para a entrega de um cão é de quatro anos. “A situação começa a complicar-se”, queixa-se Filipa Paiva. “Os primeiros cães que entregámos estão a morrer e damos sempre prioridade às pessoas que já tiveram um cão-guia.”

Segundo os Censos de 2001, existirão em Portugal mais de 150 mil deficientes visuais – nem todos podem ter um destes guias por não reunirem as condições necessárias; outros não se candidatam a ter um pois desconhecem a existência da escola.

Lola é uma labrador preta e olhos e pêlo brilhantes. Há dois anos foi a escolhida para ser treinada de entre uma ninhada com 12 cães. “Escolhemos os mais sociáveis, que não têm medos e são menos irrequietos. Damos também preferência às fêmeas porque adquirem mais cedo capacidade de trabalho e são menos dominadoras”, explica Filipa Paiva. Depois de ter estado um ano numa família de acolhimento em fase de socialização, para se habituar às rotinas diárias, Lola voltou à escola para o treino técnico. Faltava-lhe ainda um ano para poder substituir os olhos de alguém.

É com as quatro patas assentes no chão e o focinho erguido, em “posição de trabalho” que Lola inicia o treino do dia. “Busca o passeio!”, “as escadas, onde estão as as escadas?”, “avança, avança em frente, à esquerda”. Lola segue com rigor as regras que lhe são dadas. Compreende tudo o que lhe dizem, parece conhecer de cor as ruas de Mortágua. Pára em cada degrau. Desvia-se das poças e de todos os obstáculos que surgem. Identifica a passadeira, o banco ou o café.

Uma hora e meia por dia, cinco dias por semana, é o tempo que Marta Ferreira, uma das educadoras da escola, e a labrador preta passam a treinar. Marta não é cega mas faz como se fosse. Pé ante pé, tenta imitar os gestos habituais daqueles que não conseguem enxergar o mundo. Quando Lola pára, antecipando a existência de um degrau, Marta estica a perna e sente com a sola do sapato a altura do mesmo. “Tenho de ter um comportamento o mais semelhante possível ao de um cego, quem não vê e vai sempre confirmar se a informação que o cão lhe está a dar é correcta.” Entre Marta e Lola existe uma química evidente. Sempre que a cadela identifica um local ou pára diante de um obstáculo, Marta congratula-a: “Bom trabalho, Lola.” Palavras meigas seguidas de festas e palmadinhas no dorso fazem com que Lola abane a cauda e enrugue os olhos num gesto de agradecimento. “É muito importante que eles percebam quando estão a fazer bem”, explica Marta para justificar o motivo de tanta bajulação.

Por serem cães meigos, maleáveis e sociáveis é que todos os guias que existem em Portugal são labradores. “As pessoas têm reservas mentais contra determinadas raças. Se visse um cego com um pitbull ou um rotteweiler aproximava-se?”, questiona Sabina Teixeira, outra das educadoras. Todos os cães e cadelas guias foram capados para não reagirem a determinados instintos.

Para Sabina, é evidente que estes cães têm um lado emocional muito forte: “Quando ralhamos mais alto, não gostam e vão-se esconder. Quando fogem é porque estão amuados.” Apesar de serem cães de trabalho, à semelhança do que acontece com as pessoas, gostam de mimo e brincadeira. “Quem trabalha o cão também tem de ter com ele momentos de lazer, fazer-lhe festas, escová-lo. Se não for o utilizador a mimá-lo, acabará por ter preferência pelos outros membros da família”, alerta Sabina. No fundo são animais iguais aos outros, a única diferença é que são treinados desde que nasceram. Aprendem por repetição e trabalho diário e acabam por se tornar o melhor amigo do seu utilizador. “Muitos cães são os filhos que nunca tiveram. [Com ele] o cego passa a ter acção. Para além da mobilidade, devolveram-lhe a identidade”, acrescenta Sabina.

Judite Martins tem 57 anos e cegou há quatro. Enviou a papelada necessária há mais de meio ano, mas ainda nem a chamaram para a entrevista. Tal como Augusto, sofreu um descolamento de retina. “Quando soube que iria ficar cega para sempre pensei logo em ter um cão-guia. Na altura o meu cão, de há 17 anos, morreu e optei por tentar adquirir um animal que me pudesse ajudar nesta nova fase.” A aquisição de um cão-guia é totalmente gratuita. A escola cede o usufruto do animal mas este será sempre sua propriedade.

Judite preenche os requisitos básicos impostos pela escola de cães-guia, tem noções de mobilidade e condições financeirasque lhe permitam tratar do cão (cerca de 150 euros mensais), pretende exercer uma actividade que a obrigue a sair diariamente de casa. “E até tem um quintal, pequenino, mas que dá para ele brincar.” Com um cão, “sairia muito mais, não estaria dependente de nada nem de ninguém.” Judite tem saudades de sair sem dar explicações. Sair porque lhe apetece. Fazer aquilo que dantes era simples e agora já não pode.

Apesar de a estimativa apontar para uma espera de quatro anos, Judite não desiste. “Algum dia hei-de ter um bichinho destes.” Depois de ter preenchido “um autêntico livro de questões”, acredita que o mais difícil já passou.

Mas não. A escola tem dois tipos de lista de espera. A dos que se candidatam a cães-guia (e podem nunca vir a ser chamados) e a dos que já foram seleccionados como futuros utilizadores, após uma entrevista. Judite Martins ainda está na primeira. Mas nem isso a demove: “Não desisto. É o meu sonho. E os cegos sonham sempre a cores, sabia?”

Fonte: “Pública”