Ainda não acabei de ler, está quase, quase, mas acho que já posso dizer antecipadamente que foi um dos melhores livros que já alguma vez li! Decidi por isso partilhá-lo também por aqui, espero que possa ser do vosso agrado:)
Lista dos personagens
A família Cerullo (família do sapateiro):
Fernando Cerullo, sapateiro.
Nunzia Cerullo, mãe de Lila.
Raffaella Cerullo, chamada Lina por todos, de Lila só por Elena.
Rino Cerullo, irmão mais velho de Lila, também sapateiro.
Rino também se chamará o filho de Lila.
A família Greco (família do contínuo):
Elena Greco, chamada Lenuccia ou Lenu. A primogênita, depois dela
Peppe, Gianni e Elisa.
O pai trabalha como contínuo na prefeitura.
A mãe, dona de casa.
A família Carracci (família de dom Achille):
Dom Achille Carracci, o ogro das fábulas.
Maria Carracci, mulher de dom Achille.
Stefano Carracci, filho de dom Achille, salsicheiro na charcutaria da família.
Pinuccia e Alfonso Carracci, os outros dois filhos de dom Achille.
A família Peluso (família do marceneiro):
Alfredo Peluso, marceneiro.
Giuseppina Peluso, mulher de Alfredo.
Pasquale Peluso, filho de Alfredo e Giuseppina, pedreiro.
Carmela Peluso, também conhecida como Carmen, irmã de Pasquale, vendedora em um
armarinho.
Outros filhos.
A família Cappuccio (família da viúva louca):
Melina, prima da mãe de Lila, viúva louca.
O marido de Melina, que descarregava caixas no mercado de hortifrúti.
Ada Cappuccio, filha de Melina.
Antonio Cappuccio, irmão dela, mecânico.
Outros filhos.
A família Sarratore (família do ferroviário-poeta):
Donato Sarratore, fiscal de trem.
Lidia Sarratore, mulher de Donato.
Nino Sarratore, o mais velho dos quatro filhos do casal.
Marisa Sarratore, filha de Donato e Lidia.
Pino, Clelia e Gianni Sarratore, os filhos mais novos do casal.
A família Scanno (família do verdureiro):
Nicola Scanno, verdureiro.
Assunta Scanno, mulher de Nicola.
Enzo Scanno, filho de Nicola e Assunta, também verdureiro.
A família Solara (família do dono do bar-confeitaria de mesmo nome):
Silvio Solara, proprietário do bar-confeitaria.
Manuela Solara, mulher de Silvio.
Marcello e Michele Solara, filhos de Silvio e Manuela.
A família Spagnuolo (família do confeiteiro):
Seu Spagnuolo, confeiteiro do bar-confeitaria Solara.
Rosa Spagnuolo, mulher do confeiteiro.
Gigliola Spagnuolo, filha do confeiteiro.
Outros filhos.
Gino, o filho do farmacêutico.
Os professores:
Ferraro, docente e bibliotecário.
Oliviero, professora.
Gerace, professor do ginásio.
Galiani, professora do liceu.
Nella Incardo, prima da professora Oliviero, de Ischia.
PRÓLOGO
Apagar os vestígios
1.
Hoje de manhã Rino me ligou, pensei que ele quisesse mais dinheiro e me preparei para
negar. No entanto o motivo da chamada era outro: a mãe dele tinha desaparecido.
“Desde quando?”
“Faz duas semanas.”
“E só agora você me liga?”
O tom deve ter parecido hostil, embora eu não estivesse chateada ou indignada, era
apenas uma ponta de sarcasmo. Ele tentou contestar, mas de modo confuso, embaraçado,
misturando o dialeto com o italiano. Disse que tinha certeza de que a mãe estava
passeando em Nápoles, como de costume.
“Inclusive à noite?”
“Você sabe como ela é.”
“Eu sei, mas você acha normal duas semanas de ausência?”
“Acho. Faz muito tempo que você não a vê, ela deu uma piorada: nunca dorme,
entra, sai, faz o que bem entende.”
O fato é que agora ele estava preocupado. Perguntara a todo mundo, passara por
todos os hospitais, estivera até na polícia. Nada, a mãe não estava em lugar nenhum. Que
bom filho: um homem grande, de seus quarenta anos, que nunca trabalhou na vida, apenas
transações e gastanças. Imaginei com quanto cuidado ele fez suas buscas. Nenhum. Não
tinha cabeça, e em seu coração só havia ele.
“Por acaso ela está com você?”, indagou de repente.
Sua mãe? Aqui em Turim? Ele bem sabia como iam as coisas, perguntava só por
perguntar. Ele, sim, é que era um viajante, viera à minha casa pelo menos umas dez
vezes, e sem ser convidado. Quanto à mãe dele, eu a teria acolhido de bom grado: ela
nunca saíra de Nápoles na vida. Respondi:
“Não, ela não está comigo.”
“Tem certeza?”
“Rino, por favor: já lhe disse que não está.”
“Mas para onde ela foi?”
Então começou a chorar, e eu o deixei fazer sua cena de desespero, soluços que
começavam fingidos e prosseguiam verdadeiros. Quando terminou, disse a ele:
“Por favor, pelo menos uma vez, comporte-se como ela gostaria: não a procure.”
“O que você disse?”
“Disse isso mesmo. É inútil. Aprenda a viver por sua própria conta, e também não
me procure.”
Desliguei.
2.
A mãe de Rino se chama Raffaella Cerullo, mas todos sempre a chamaram de Lina. Eu,
não, nunca usei nem o primeiro nem o segundo nome. Há quase sessenta anos, para mim
ela é Lila. Se a chamasse de Lina ou de Raffaella, assim, de repente, ela acharia que
nossa amizade acabou.
Faz pelo menos trinta anos que ela me diz que quer sumir sem deixar rastro, e só eu
sei o que isso quer dizer. Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o
sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio, incomodada com a
ideia de que Rino tivesse de lidar com seu corpo, cuidar dele. Seu objetivo sempre foi
outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse
o menor vestígio seu. E, como a conheço bem – ou pelo menos acho que conheço –, tenho
certeza de que encontrou o meio de não deixar sequer um fio de cabelo neste mundo, em
lugar nenhum.
3.
Os dias passaram. Chequei o correio eletrônico, a correspondência em papel, mas sem
esperança. Escrevi muitas vezes a ela; ela quase nunca respondeu: este sempre foi o
costume. Preferia o telefone ou as longas noites de conversa quando eu ia a Nápoles.
Abri minhas gavetas, as caixas de metal onde guardava coisas de todo tipo. Poucas.
Tinha jogado fora muita coisa, especialmente o que dizia respeito a ela, e ela sabia disso.
Descobri que não tenho nada dela, nem uma imagem, um bilhete, uma lembrancinha. Eu
mesma fiquei surpresa. Será possível que em todos esses anos ela não me tenha deixado
nada de seu ou, pior, que eu não tenha querido guardar nada dela? É possível.
Desta vez fui eu que liguei para Rino, e o fiz a contragosto. Não respondia nem no
fixo, nem no celular. À noite ele me ligou, sem pressa. A voz era de quem buscava
estimular um sentimento de pena.
“Vi que você ligou. Tem notícias?”
“Não. E você?”
“Nenhuma.”
Me disse coisas sem sentido. Queria ir à TV, um programa que trata de gente
desaparecida, fazer um apelo, pedir perdão à mãe por tudo, implorar que voltasse.
Fiquei ouvindo pacientemente e então perguntei:
“Você olhou no armário dela?”
“Para quê?”
Naturalmente nunca lhe ocorrera a coisa mais óbvia.
“Vá lá ver.”
Ele foi e se deu conta de que não havia nada lá, nenhuma das roupas da mãe, nem de
verão nem de inverno, apenas velhos cabides. Depois o mandei procurar pela casa. Os
sapatos tinham sumido. Sumiram os poucos livros. Sumiram todas as fotos, e também os
filmes caseiros. Sumiram o computador e até os velhos disquetes que se usavam
antigamente, tudo, cada detalhe de sua vida de bruxa eletrônica, que começara a
exercitar-se com calculadoras já no fim dos anos 1960, na época das fichas perfuradas.
Rino estava espantado. Então eu disse a ele:
“Tome o tempo que quiser, mas depois ligue e me diga se achou alguma coisa dela,
nem que seja um alfinete.”
Ele me ligou no dia seguinte, muito agitado.
“Não encontrei nada.”
“Nada de nada?”
“Não. Recortou todas as fotos em que aparecíamos juntos, até as de quando eu era
menino.”
“Você procurou bem?”
“A casa toda.”
“Inclusive no porão?”
“A casa toda, já disse. Até a caixa de documentos sumiu: certidões de nascimento
velhas, contratos telefônicos, boletos. O que significa isso? Alguém roubou tudo? O que
estão procurando? O que querem de minha mãe e de mim?”
Tratei de acalmá-lo, disse que ficasse tranquilo. Era pouco provável que alguém
quisesse alguma coisa, especialmente dele.”
“Posso passar um tempo em sua casa?”
“Não.”
“Por favor, não estou conseguindo dormir.”
“Vire-se, Rino, não posso ajudar.”
Desliguei e, quando ele tornou a chamar, não atendi. Fui me sentar à escrivaninha.
Como sempre Lila exagerou, pensei.
Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também
apagar toda a vida que deixara para trás.
Fiquei muito irritada.
Vamos ver quem ganha desta vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e
comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória.
INFÂNCIA
História de dom Achille
INFÂNCIA
História de dom Achille
1.
Foi quando Lila e eu decidimos subir pela escada escura que levava, degrau a degrau,
patamar a patamar, até a porta do apartamento de dom Achille que nossa amizade
começou.
Recordo a luz violeta do pátio, os cheiros de uma tardinha tépida de primavera. As
mães estavam preparando o jantar, era hora de voltar para casa, mas a gente se atrasava,
submetendo-se por desafio, sem dizer uma palavra, a provas de coragem. Há algum
tempo, dentro e fora da escola, não fazíamos outra coisa. Lila enfiava a mão e todo o
braço na boca escura de um bueiro, e eu fazia o mesmo logo em seguida, com o coração
aos pulos, esperando que as baratas não corressem por minha pele e os ratos não me
mordessem. Lila trepava na janela térrea de dona Spagnuolo, se pendurava na barra de
ferro onde passava o fio de estender panos, se balançava e então deixava o corpo cair na
calçada, e eu logo fazia a mesma coisa, mesmo temendo cair de mau jeito e me
machucar. Lila enfiava sob a pele a agulha enferrujada que achara na rua não sei quando,
mas que trazia sempre no bolso como se fosse o presente de uma fada; eu observava a
ponta de metal escavando um túnel esbranquiçado em sua palma e, depois, quando ela a
extraía e passava para mim, eu fazia o mesmo.
A certa altura me lançou um de seus olhares, firme, com os olhos apertados, e rumou
para o prédio onde dom Achille morava. Fiquei gelada de medo. Dom Achille era o ogro
das fábulas, e eu estava terminantemente proibida de me aproximar dele, falar com ele,
olhá-lo, espiá-lo: devia agir como se ele e sua família não existissem. Em minha casa,
mas não só, havia em relação a sua figura um temor e um ódio que eu não sabia de onde
vinham. Meu pai o mencionava de um modo que o imaginei enorme, cheio de bexigas
roxas, furioso apesar do “dom”, que me sugeria uma autoridade plácida. Era um ser feito
de não sei que material, ferro, vidro, urtiga, mas vivo, vivo e com uma respiração
quentíssima que lhe saía do nariz e da boca. Acreditava que bastaria avistá-lo de longe
para que me lançasse nos olhos algo pungente e escaldante. E, se eu fizesse a loucura de
passar perto da porta de sua casa, ele me mataria.
Esperei um pouco para ver se Lila pensava melhor e desistia daquilo. Eu sabia o que
ela pretendia fazer, esperei inutilmente que ela se esquecesse, mas não. As luminárias
ainda estavam apagadas, assim como a luz das escadas. Das casas chegavam vozes
nervosas. Para segui-la eu precisava deixar o azulado do pátio e entrar no escuro do
portão. Quando finalmente me decidi, no início não vi mais nada, só senti um cheiro de
coisa velha e de DDT. Depois me habituei ao escuro e notei Lila sentada no primeiro
degrau do primeiro lance. Ela se levantou, e começamos a subir.
Avançamos coladas à parede, ela dois degraus à frente, eu, dois degraus atrás e
indecisa entre encurtar a distância ou deixá-la aumentar. Ficou-me a impressão do ombro
que raspava contra o muro descascado e a ideia de que os degraus eram muito altos, mais
altos que os do prédio onde eu morava. Eu tremia. Cada rumor de passos, cada voz, era
dom Achille que vinha às nossas costas ou nos afrontava com uma longa faca, daquelas de
degolar galinhas. Havia um odor de alho frito. Maria, a mulher de dom Achille, me
meteria na panela com óleo fervente, os filhos me comeriam, ele me chuparia a cabeça
como meu pai fazia com as trilhas.
Paramos várias vezes, e em todas elas esperei que Lila resolvesse voltar atrás. Eu
estava muito suada, ela, não. De vez em quando olhava para o alto, mas eu não entendia
para que, via-se apenas o cinza dos janelões a cada patamar. As luzes se acenderam de
repente, mas tênues, embaçadas, deixando amplas zonas de sombra cheias de perigos.
Esperamos para entender se foi dom Achille que girou o interruptor, mas não ouvimos
nada, nem passos nem porta abrindo ou fechando. Depois Lila prosseguiu, e eu, atrás.
Ela considerava estar fazendo uma coisa justa e necessária, eu me esquecera de
qualquer boa razão e certamente só estava ali porque ela também estava. Subimos
lentamente rumo ao pior de nossos terrores de então, íamos nos expor ao medo e
interrogá-lo.
No quarto lance, Lila comportou-se de modo inesperado. Parou, esperou que eu me
aproximasse e, quando a alcancei, me deu a mão. Esse gesto mudou tudo entre nós, para
sempre.
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