2006-04-16 - 00:00:00
Rede nacional de histórias
Sou surdocego - e escrevo poemas
Tiago Sousa Dias
José Pedro Amaral na sua casa de Alcochete, rodeado dos apetrechos tecnológicos que o ajudam a comunicar com o mundo
José Pedro Amaral vive rodeado de tecnologia. Sem qualquer audição natural e não mais de cinco por cento de visão num olho e dez por cento no outro, caminha pela rua como um cego comum, mas lê através de sistemas de ampliação e ouve com recurso a um implante coclear. Teve dificuldades de integração na escola e demorou a solidificar uma carreira profissional. Hoje, porém, é funcionário público, dirigente associativo, amplo conhecedor das novas tecnologias - e poeta. Outra força da natureza.
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." É sob o signo desta epígrafe de José Saramago, inscrita em 'Ensaio Sobre a Cegueira' (1995), que José Pedro Amaral vem fazendo o seu percurso de vida. Desprovido simultaneamente da visão e da audição, dois sentidos fulcrais para a comunicação com o outro, José Pedro celebra cada vitória sobre as suas limitações com a definição de um novo objectivo. Hoje, aos 47 anos, é funcionário público, dirigente associativo, conhecedor profundo das novas tecnologias e poeta.
Grande parte da sua vida tem sido feita de um combate pela identificação das 'capacidades' dos surdocegos, mais até do que pela defesa dos seus direitos. Uma das lutas é contra o preconceito urbano de tocar carne alheia, uma das primeiras formas de comunicar nestes casos. "Tu que vês, tu que ouves/ Mostra como és, basta que me toques", diz um dos seus poemas.
Permanecem ainda por esclarecer, para José Pedro Amaral, as razões que levaram à degeneração de dois dos seus cinco sentidos. Nascido sem problemas aparentes, José Pedro começou por acusar problemas de audição aos três anos e meio, em 1962. Consultados os médicos, foi-lhe então receitada uma prótese retro-auricular, que lhe resolveu o problema durante anos. Com a visão, os problemas surgiram mais tarde, por alturas da segunda classe. Em dificuldades no momento de olhar para o quadro da escola, José Pedro Amaral passou então a usar óculos. Só muito recentemente, porém, os médicos estabeleceram uma relação entre as duas patologias. Primeiro apostavam no diagnóstico do Sindroma de Staghart, que explicava a cegueira progressiva, mas não a perda do ouvido. Entretanto, começaram a admitir a existência do Sindroma de Usher, que pode justificar duas degenerações paralelas.
"O problema é que isto só se sabe com exames genéticos. E, embora eu tenha sido associado da Associação Portuguesa de Retinopatia, à qual cabia fazer esses exames, a verdade é que nunca me chamaram para os fazer. Tem sido uma luta imensa", conta. "Entretanto, um outro dado veio baralhar estas ideias todas. Quando a minha mãe morreu, há três anos, a nossa médica de família disse-me que ela lhe teria confessado a sua suspeita de que tudo começara com o sarampo, que eu tive aos três anos. E, infelizmente, não sei o que pensar."
Diminuído, mas não vencido, José Pedro Amaral foi crescendo. Com dificuldades de integração na escola, em resultado da falta de esclarecimento que reinava sobretudo antes do 25 de Abril, trocou várias vezes de colégio e apenas terminou o 9.º ano aos 18, nove anos após ter mudado com os pais e os quatro irmãos do Porto para Lisboa. Inscreveu-se depois na Escola António Arroio, num curso de Imagem e Audiovisual, mas teve de desistir porque as aulas eram em horário pós-laboral e, com a diminuição progressiva da visão, encontrava crescentes dificuldades em caminhar pela cidade de noite.
Até que, aos 28 anos, os problemas começaram a agravar-se seriamente. Primeiro, os olhos: a degeneração acelerou e atingiu o estado actual algum tempo depois, aos 33 anos - cinco por cento de visão num olho e dez por cento no outro. "Eu já via muito mal. Mas, se a visão central era desfocada, a lateral era razoável. Só que, depois, perdi isso também." Finalmente, a audição desapareceu. Em absoluto. "Em 1993, perdi-a totalmente durante seis meses, mas depois recuperei-a um pouco. Em 1997, com 37 anos, perdi-a por completo."
Hoje, José Pedro Amaral contorna o problema sobretudo com recurso à tecnologia. Ouve pelo cérebro, não pelo ouvido: tem um implante e, basicamente, escuta através de 'chips' electromagnéticos que operam sobre a cóclea, que transmite informações ao nervo auditivo. Ver é ainda mais difícil, mas pode ser parcialmente solucionado. De bengala e pala para reduzir a incidência da luz, José Pedro caminha como um cego comum. Em casa e no trabalho, contudo, recorre a um CCTV (Curto-Circuito de Televisão) para ler, ampliando os livros e as revistas, e usa um mega projector de TV para ver os telejornais e os filmes.
O seu dia-a-dia é passado entre o trabalho e o lazer. É um utilizador compulsivo da internet, cultivando amigos um pouco por todo o mundo, fala ao telemóvel, embora com uma ligeira dificuldade nos 'r' e nos 'l', e escreve mensagens com abreviaturas de adolescente. A caminho do trabalho, da Alcochete onde vive agora até à Lisboa de que se fartou, ouve música clássica através do telemóvel - para estimular o nervo auditivo.
É nestas viagens que surgem alguns dos poemas a que dedica parte do seu tempo. Com uma gata por única companhia, José Pedro faz questão de dizer que gostaria de voltar a apaixonar-se, como lhe aconteceu já por duas vezes, ambas depois dos 40 anos. "Mas tinha de ser uma mulher com um coração e dois ombros ", explica. No T2 de Alcochete, tem mulher a dias uma vez por semana, refeições trazidas diariamente (a preços reduzidos) pela Santa Casa da Misericórdia e roupa lavada que vai buscar à lavandaria. "Não é uma vida barata. E, em Portugal, muito poucas coisas são subsidiadas " Computadores (com sistema ZoomText e Windows munido de voz), aparelhagem, 'scanner', impressora, bengala electrónica - o equipamento é completo e utilizado até à exaustão.
O trabalho é que foi mais difícil. Abandonada a escola, José Pedro viveu bastante tempo em regime precário, dedicando-se primeiro ao voluntariado e subsistindo depois através de contratos temporários ou avenças a recibo verde. Nos anos 80 esteve numa empresa de venda de betoneiras, após um apelo publicado por vários amigos num jornal, e depois ainda trabalhou quatro anos na Central Térmica do Barreiro, em ambos os casos como assistente administrativo. Entretanto, foi para a administração pública. Colocado na Escola de Pesca e da Marinha de Comércio, esteve mais sete anos a recibo verde, até que a Lei obrigou a função pública a admiti-lo em concurso. Perdida a audição e drasticamente diminuída a visão, porém, viu-se votado ao desprezo. "Puseram-me a ler com o CCTV, que até era meu, e não me deixavam fazer nada. Não concebiam que eu pudesse fazer algo. Desperdiçavam as minhas capacidades", lamenta.
Entretanto, passou a colaborar com o Ministério da Educação. Trabalha num centro de recursos de materiais adaptados a pessoas com deficiência visual, digitalizando folhas de livros que mais tarde virão a ser impressos em Braille. No total, conhece apenas outros quatro adultos portugueses surdocegos. "Uso a palavra junta, sem hífen, porque encaro isto como condição única. Não sou surdo e cego, sou surdocego. O que coloca toda uma série de desafios", diz.
A SEGUNDA VIDA DE IGOR
Dirigente associativo, José Pedro Amaral é chamado a contar a sua história em diversas conferências e colóquios. Numa delas, realizada em Alagoínhas (Brasil) pela Comunidade de Taizé, veio a conhecer Igor, uma criança surdocega de sete anos. "Estava deitada numa cama, sem fazer nada. As pessoas não sabiam que podia desenvolver-se", conta. "Eu interagi com ele. Isto foi há dois anos e o prior da Comunidade, com quem mantenho contacto, garante-me que ele se tem desenvolvido imenso." Irmão de uma terapeuta da fala, José Pedro mantém a rede de contactos activa. No seu espaço de internet, acessível em www.lerparaver.com, conta-se por exemplo a história de Hellen Keller, a pedagoga americana, cega, surda e muda com quem Ann Sullivan desenvolveu a técnica da escrita nas palmas das mãos.
FICHEIRO RNH Nº8
Nome: José Pedro Amaral
Idade:47 anos
Naturalidade: Porto
Profissão: Assistente administrativo
Fonte: Presslivre, S.A. , uma empresa Cofina Media - Grupo Cofina.
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Comentários
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Meu comentário é apenas para mandar um abraço para o meu amigo José Pedro, que aliás, já faz muito tempo que não falo com ele.
Para mim ele é um exemplo de vida, de luta, e esperança.
Esperança no ser HUMANO chamado José Pedro Amaral, um exemplo do que pode uma pessoa com boa vontade chegar, e ele chegou.
Meu caro amigo, receba meu abração, Jackson
Interesse em contato.
Olá. Parabéns, um homem dedicado e esforçado, mas que saber se poderiamos trocar algumas informações, pois estou " Super Interessada " no assunto surdocegueira. Se não for encomodo gostaria de deixar o meu email para que possamos trocar informação, estou no segundo periodo de pedagogia, e quero atender a area de educação especial, e manter contato com pessoas que venceram a guerra, como você, seria gratificante e eu aprenderia muito. Parabéns mais uma vez. vitofitas@terra.com.br
Grata
Paula Azevedo