Prezados,
A áudio-descrição é uma forma de tradução, porém, não lingual. É diferente desta por aquela ser visual. Outrossim, é diferente da descrição, mesmo quando esta é falada, narrada, locucionada. E o é, por ela ter o objetivo do empoderamento da pessoa com deficiência, mormente as com deficiência visual, pessoas cegas ou com baixa visão.
Certamente a áudio-descrição tem um papel muito importante na inclusão da pessoa com deficiência no lazer e na cultura, tendo, de fato, surgido primeiro e com mais força no teatro,na televisão e no cinema.
Não obstante, é na educação que a áudio-descrição se fará mais empoderativa, levando às crianças, jovens e adultos a igualdade de condições e de oportunidades, não só de lazer e cultural propriamente dito, mas, acima de tudo, educacional.
Um professor que não é despertado para a importância da áudio-descrição no ensino de um estudante cego ou com baixa visão não terá sucesso na inclusão plena de seus alunos.
Afinal, o mundo é o mundo das imagens e nele estão as pessoas com deficiência visual.
No artigo abaixo damos justificativas jurídicas e educacionais para que seja ofertada a áudio-descrição na escola, nos livros didáticos, na vida estudantil!
Em maio próximo estaremos juntos no II Encontro Nacional de áudio-descrição em Estudo (Enades 2016, www.enades.com.br), um lugar em que professores podem capacitar-se no uso da tradução visual, podendo, assim, ampliar sua capacidade docente no ensino de estudantes cegos ou com baixa visão.
Então, convido aos colegas professores, de todos os níveis educacionais, que venham participar conosco de uma semana de estudo da a-d; que venham e tragam seus colegas, que solicitem aos seus empregadores, sejam prefeituras, Governos Estaduais ou proprietários de escolas particulares que lhes propiciem as condições de formarem-se, prepararem-se para seus alunos com deficiência.
Ademais, os estudantes não podem sofrer com nossa pouca oportunidade de formação inclusiva.
Fiquem com o artigo, abaixo de minha assinatura.
Cordialmente,
Francisco Lima
O DIREITO DAS CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL À ÁUDIO-DESCRIÇÃO
Francisco José de Lima
Rosângela A. F. Lima
Resumo
Este artigo apresenta, em primeiro momento, robusta sustentação jurídica para o direito de as pessoas com deficiência visual ter acesso à áudio-descrição, defendendo que a não provisão desse recurso assistivo constitui, tanto negligência para com a educação da criança com deficiência visual, quanto discriminação por razão de deficiência. De um lado, esteia essa defesa em documentos internacionais de defesa das crianças, os quais as salvaguardam de maus tratos, da discriminação e da afronta à sua dignidade de criança e pessoa humana. De outro, sustenta o direito à áudio-descrição, na Constituição Brasileira, a qual define a educação como direito indisponível e garante esse direito a todas as crianças, com igualdade de condições, independentemente de suas características fenotípicas, sociais ou genéticas. Em um segundo momento, este artigo sustenta a defesa pela oferta da áudio-descrição, devido aos benefícios que este recurso assistivo pode trazer para a inclusão cultural e educacional da pessoa com deficiência visual, uma vez que, enquanto técnica de tradução visual, ela permite o acesso às imagens, por intermédio das palavras a serem ouvidas, lidas e/ou faladas, natural ou eletronicamente. Trata, também, de como as visões tradicionalistas sobre a capacidade de a pessoa cega fazer uso das imagens, produzindo-as e/ou as compreendendo, têm levado à negação de direitos, ao prejuízo educacional, e em última instância ao preconceito para com as pessoas cegas. Conclui, fazendo a assertiva de que não se trata de perguntar quando se vai oferecer a áudio-descrição, mas de se buscar as condições para melhor formar os áudio-descritores; melhor prover o serviço de áudio-descrição e melhor aparelhar o público alvo para a recepção desse serviço, começando com a criança pequena, lá na escolinha, até o adulto na universidade ou em outro locus social.
Palavras-chaves: áudio-descrição, direito inclusivo, criança com deficiência visual
Abstract
This article presents robust arguments for the provision of audio description for children with vision disability in Brazil. It supports its point of view on national and international laws and conventions that protect children from all forms of harm and discrimination. Audio description is considered an assistive technology capable of given children access to education, culture and leisure by providing visual information of things and events that originally were not available to blind people. It concludes that it is necessary to invest on training audio describers, improve audio description services and educate blind people about receiving and profiting from audio description accessibility.
Keywords: audio description, people with visual disability, accessibility, attitudinal barriers.
1- Introdução
As pessoas com deficiência não mais aceitam ser discriminadas ou vistas com base em uma de suas características. Por isso, fazem ouvir a sua voz nos mais diversos âmbitos sociais, reivindicando os seus espaços e consolidando as suas conquistas, fundamentando-se numa base justa e ética de igualdade de direitos e oportunidades.
A consciência crítica de uma sociedade que se transforma para a inclusão vem emergindo e se reflete no que está registrado em vários documentos internacionais sobre direitos humanos, que afirmam os direitos dos alunos com deficiência à participação em escolas comuns ou regulares, impedindo que modelos tradicionalistas coloquem a escola a serviço de uma manutenção da exclusão por razão de deficiência.
2- Do direito e garantias ao acesso comunicacional das crianças com deficiência
O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, consagra o princípio da igualdade de direitos entre os homens: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”
A propagação desses direitos dar-se-á tipicamente no âmbito do sistema educacional como afirma o artigo 26 dessa mesma declaração:
I) Todo o homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
II) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
III) Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 26, grifo nosso).
A seu turno, o texto da Declaração Universal dos Direitos do Deficiente traz no item no. 10: “As pessoas deficientes deverão ser protegidas contra toda exploração, todos os regulamentos e tratamento de natureza discriminatória, abusiva ou degradante” (Declaração Universal dos Direitos das Pessoas Deficientes, 1975, item 10).
Já a Constituição da República Federativa do Brasil, no seu artigo 5 o., determina: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)” E no artigo 206, a Carta Magna de 1988 afirma: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola(...)” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 206, item II).
Reforçando esse conjunto de documentos legais que versam sobre igualdade de oportunidades sociais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069) é bastante enfático no que tange a garantia de direitos fundamentais da criança, afastando-a de toda forma de negligência, inclusive a da não oferta de acessibilidade a informação/comunicação.
Artigo 5o. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990).
Em consonância com o ordenamento jurídico supracitado, a Assembléia Geral da ONU aprovou o documento “Normas sobre a Equiparação de Oportunidades para Pessoas com Deficiência” (1996), que diz:
As autoridades da educação comum são responsáveis pela educação de pessoas com deficiência em ambientes inclusivos. Elas devem garantir que a educação de pessoas com deficiência seja uma parte integrante do planejamento educacional nacional, do desenvolvimento de currículo e da organização escolar.
A educação em escolas comuns pressupõe a provisão de intérprete e outros serviços de apoio adequados. Serviços adequados de acessibilidade e de apoio, projetados para atender às necessidades de pessoas com diferentes deficiências, devem ser prestados.
Essa Declaração estampa, com clareza solar, que dentre os “serviços adequados de acessibilidade e de apoio” à pessoa com deficiência estão a acessibilidade à informação/comunicação, sem o que os alunos com deficiência não têm equiparadas as condições que lhes permitirão galgar os níveis mais superiores da educação.
Na esteira do entendimento de que é devido às crianças às condições que lhes permitam aprender em mesmo ambiente com seus pares, em pé de igualdade, a Declaração de Salamanca traz no seu item no. 2:
d) (...) Aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades.
e) Escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas provêem uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional.” (Declaração de Salamanca, 1994, item no. 2).
Mais recentemente, consolidando o que aqui já foi exposto, a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada dia 9 de julho de 2008, afirma, em seu Artigo 24, que “As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem.”
Essa previsão legal corrobora a anterior, lei maior da educação brasileira, a LDB que assim reza:
Art. 5º O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
CAPÍTULO V
DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.
§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial.
§ 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular.
§ 3º A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil.
Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais:
I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;
Sobre o alicerce legal, hora construído, resta claro que as crianças têm direito a receber a educação condizente com suas necessidades educacionais, em ambientes inclusivos, com a equiparação das condições de aprendizagem; que é dever do Estado prover os recursos para que as crianças possam desfrutar do direito à educação, possibilitando o acesso à comunicação, à informação e ao conhecimento, conforme suas necessidades e potencialidades.
Como podemos depreender, fica evidente que as crianças são dotadas do direito à informação/educação desde o zero anos, direito esse devido a todas as pessoas.
Negligenciar, pois, a oferta de recursos assistivos, tais como a comunicação facilitada, para pessoas com autismo, a interpretação em Libras, para as pessoas surdas, e a áudio-descrição para as pessoas com deficiência visual constitui flagrante afronta a nossa Carta Maior, bem como clara discriminação por razão de deficiência (lei 3956/2001). Simplesmente porque essa negligência leva a criança com deficiência a uma situação de incapacidade para o aprender; limite para o seu lazer e impedimento ao conhecimento de forma geral.
3- As imagens, a pessoa com deficiência visual e a áudio-descrição
Psicólogos, educadores, família, cuidadores das crianças, de há muito perceberam a importância das imagens na educação das crianças pequenas. É por intermédio da observação de configurações bidimensionais planas, desenhos, fotos etc., que se pode trazer um mundo intangível, invisível e mesmo inaudível às crianças pequenas.
Com as imagens se pode mostrar a neve à criança, mesmo ela estando à beira da praia no nordeste brasileiro, assim como se pode, por imagem computadorizada, mostrar um bebê na barriga da mãe, revelando se ele é menino ou menina. Também são pelas imagens saídas do pincel de um artista, que se pode ter acesso a um mundo construído (não necessariamente real), pela capacidade humana de produzir representações mentais, sejam originárias da imaginação, propriamente dita, da optificação, ou originárias de representações mentais (Lima,1998) feitas pelas pessoas cegas congênitas totais , por exemplo.
Segundo Revesz (1950), a optificação é a capacidade de construir imagem originária do toque em algo quando não se tem a informação visual do objeto. A imaginação, por sua vez, é a capacidade de produzir imagem, pela experiência visual e/ou mediação visual, estando ou não presente o objeto imaginado.
De acordo com Lima (1998), a representação mental independe da experiência visual e é encontrada principalmente nas pessoas cegas congênitas totais.
Sob essa condição, aquilo que é produzido na mente como representação do objeto real externo, ou mesmo pela criação do ser cognoscente, não terá da mediação da visão dependência e nem necessitará de experiência visual prévia para uma construção de um banco imagético na memória.
Assim, as três linhas divergentes a respeito da capacidade de a pessoa cega congênita total compreender as imagens e delas fazer bom uso, beneficiando-se dos ganhos linguísticos (da aquisição lexical), ganhos lúdicos (a possibilidade de brincar com desenho, desenhar ou pintar etc.) e ganhos sociais (participando, em pé de igualdade, de eventos eminentemente visuais como a leitura de uma história em quadrinhos, um passeio turístico pelo museu etc), dão lugar a uma só compreensão: as pessoas são capazes e os limites que têm são superáveis (Lima, 2000 e 2008).
Na área das imagens, os indivíduos com deficiência visual são capazes de entendê-las. Os limites podem ser superados com, por exemplo, a provisão da áudio-descrição dos eventos visuais.
Contrário a isso, para os que acreditam na preeminência da visão, defendendo que só ela é capaz de julgar com perfeição __ entendimento aristotélico (Aquinas, 1995)__ as crianças cegas não se beneficiariam do mundo das imagens, logo, devendo este ser denegado à criança com deficiência visual. Tal visão, ainda hoje partilhada por muitos, limitam, por vezes incapacitam aquelas pessoas do acesso à cultura, à educação e ao lazer de que a imagem faz parte.
Para o segundo grupo, que acredita na limitação imposta pela falta de experiência visual aos indivíduos cegos congênitos totais, a compreensão do mundo visual pelas pessoas cegas só pode se dar, e em parte, pela experiência tátil, que ao entender desse grupo, é limitada, por vezes, imprecisa e de baixa resolução.
Sob essa égide, apenas as pessoas que ficaram cegas, após cinco ou mais anos de vida, manteriam a capacidade da imaginação, conforme definida anteriormente, e só os “cegos adventícios” teriam a capacidade de compreender eventos visuais, dentre os quais fotos, filmes, pinturas etc.
Sendo o número de pessoas com deficiência congênita significativamente menor que os “cegos adventícios”, essa compreensão equivocada, e mesmo preconceituosa, tem muita aceitação inclusive entre as próprias pessoas com deficiência visual adventícia (deficiência advinda de acidentes, doenças ou da longevidade, fatores de grande causa de deficiência visual ).
Para o terceiro grupo, a mediação da visão ou experiência visual não é determinante para que uma pessoa seja capaz de produzir, reconhecer, representar configurações visuais (Lima, 2000b). Neste caso, a limitação imposta pela ausência da visão será suprida por recursos internos, tanto quanto recursos externos como as tecnologias assistivas, aí englobando também, os serviços assistivos (Lima e Soares, 2007).
Acordes com esse grupo, a oferta de informações hápticas, por exemplo na forma de desenhos ou mapas em relevo, bem como na forma oral, como na oferta da áudio-descrição às pessoas cegas ou com baixa visão, levará essas pessoas ao uso ótimo de suas capacidades cognitivas para compreender eventos visuais, os quais a pessoa vidente pode achar impossível de se alcançar.
No embate dessas três linhas de compreensão sobre a capacidade da pessoa cega beneficiar-se do mundo imagético (Kitchin et al, 1997), ao imperar o primeiro entendimento, a pessoa com deficiência visual será excluída do mundo social, visual e terá seu direito à informação/comunicação sumariamente denegado.
Ao predominar a compreensão do segundo grupo, apenas alguns eventos visuais terão formatos acessíveis às pessoas com deficiência visual, porém, e provavelmente, pelo crivo (escolha) de terceiros, a respeito do que vai ou não vai “ser visto” por essas pessoas. Isso implicará, como de fato vem acontecendo, na limitação da independência das pessoas com deficiência visual, com a consequente usurpação de seu empoderamento.
Ao prevalecer a compreensão de que a experiência visual ou a mediação visual não é determinante para a compreensão imagética, a busca de recursos assistivos, garantidoras da acessibilidade à informação visual, ganhará “maiores reforços” e contribuirá, certamente, para a inclusão social das pessoas com deficiência, no sentido mais amplo.
Neste contexto, os investimentos na pesquisa com a produção háptica e na pesquisa e provisão de serviços como o da áudio-descrição deixarão de ser vistos como gastos para serem tratados como serviços essenciais, prioritários e indispensáveis para o acesso à informação, cultura, educação, lazer e também saúde das pessoas com deficiência visual.
Ao se entender, na medida exata, as imbricações do que expusemos acima, a tomada de consciência a respeito da importância do mundo imagético para as pessoas cegas, tornado acessível por meio de recursos de tradução háptica ou oral, será uma conseqüência e não se protelará mais o ensino de configurações visuais às crianças, desde a mais tenra idade, conforme defendido por Lima (2001).
A seguir serão discutidos alguns aspectos da áudio-descrição (tradução oral). Quanto à tradução háptica, sugere-se a leitura dos estudos de Lima (1998, 2001), de Lima e Da Silva (1997, 2000 e 2008), aprofundados mormente quando tratou da recodificação da captura háptica para a transcrição pictórica (Lima, Heller e Da Silva, 1998).
A técnica tradutória da áudio-descrição, recurso assistivo de incontestável relevância para inclusão da pessoa com deficiência visual é um gênero textual, cujas diretrizes incluem procedimentos desde a sua produção até a oferta do serviço ao público cliente. Essas diretrizes versam a respeito de como lidar com o público com deficiência visual, do atendimento a ele devido; da atenção para com suas necessidades de pessoa com deficiência; do respeito à idiossincrasia de cada um dos clientes etc (Lima et al, 2010).
Enquanto tradução visual, a áudio-descrição não é áudio, embora mantenha relação semântica com este, e não é descrição, embora traga da descrição constructos que servirão para essa técnica tradutória.
Na união da descrição com o áudio, na áudio-descrição, o visual descrito/narrado, é significativamente diferenciado da descrição, tanto pela intenção comunicativa, como pela natureza eminentemente garantidora de direito à informação e/ou comunicação às pessoas com deficiência visual.
A áudio-descrição traduz as imagens e outros eventos visuais intangíveis, inaudíveis, inodoros à percepção da pessoa com deficiência visual, em palavras a serem ouvidas diretamente pela fala de um locutor; pela leitura sintetizada de um leitor de telas; pela comunicação oral de um professor que lê, ao seu aluno, a áudio-descrição contida num livro; pela própria leitura do estudante que tiver a áudio-descrição em Braille, em seu livro; pelo aluno com deficiência visual da áudio-descrição, escrita em Braille; ou mesmo pela leitura do próprio áudio-descritor que, em um cinema, por exemplo, pode ler as legendas de um filme em língua estrangeira etc.
Assim, não está no suporte a definição do que vem a ser a áudio-descrição, nem mesmo na similaridade que ela tem com uma descrição verbalizada por alguém, gravada ou simultaneamente falada.
Outra característica importante e definidora da áudio-descrição é o fato de ela traduzir as imagens sem, contudo, ser o tradutor do evento visual, um interpretador da mensagem, o que significa dizer que um áudio-descritor não pode dizer de sua opinião do que está sendo visto. Ele é a ponte entre aquele evento e o sujeito cliente do serviço, devendo dar a este os subsídios necessários e pertinentes à compreensão do evento.
Em outras palavras, um áudio-descritor não diz o que ele acha, não oferece suas inferências, mas diz o que ele vê, oferecendo ao cliente as ferramentas que permitirão a este tirar suas próprias conclusões do que está sendo apresentado, com igualdade equiparada de condições disponíveis aos assistentes do evento visual.
O empoderamento do sujeito com deficiência visual é meta na áudio-descrição, e não uma mera descrição ou narração do evento.
A áudio-descrição é nova no Brasil, e sua produção, oferta e recepção resultam de esforços de valorosos áudio-descritores. Entretanto, são incipientes, em nosso país, os estudos a respeito de sua produção, provisão e implicação educacional, no sentido mais estrito; e social, num sentido lato.
As pesquisas a respeito de como as pessoas com deficiência visual compreendem os eventos visuais, de como as representações linguisticas melhor traduzem as imagens etc. precisam ser levadas em consideração, embora muito pouca literatura esteja disponível em língua portuguesa, o que requererá esforços, mormente de apoio à pesquisa para que esses estudos sejam produzidos e divulgados, no Brasil, junto à comunidade educacional, entre os professores, entre o público alvo (as próprias pessoas com deficiência visual têm muito pouco acesso à informação de como as imagens são processadas, de como podem valer-se das convenções visuais para uma interação social com os videntes etc).
Todos esses aspectos estão, de uma forma ou de outra, imbricados na produção das áudio-descrições, isso sem dizer das barreira atitudinais, que podem interferir no ato tradutório, como demonstra Lima (2010), em trabalho ainda não publicado, ao examinar algumas áudio-descrições brasileiras.
Nesse trabalho inédito, mostra como a barreira atitudinal levou o áudio-descritor a dizer: "apesar de cego...corre pela quadra". Ora, regra básica da áudio-descrição é traduzir o que se vê e, não se vê "apesar"... (Lima 2010).
Então, o que levou a se traduzir dessa forma? Certamente não foi desconhecimento das diretrizes tradutórias ou falta de experiência com a tradução visual da áudio-descrição, podendo, portanto, ser a influência de uma construção histórica a respeito da pessoa com deficiência que a entende como incapaz para algumas atividades, por exemplo, a de ela correr desacompanhada numa quadra de esportes.
Na meta mor da áudio-descrição, oferecer aos indivíduos cegos as condições de, independentemente, chegarem às suas próprias conclusões a respeito do evento visual, isto é, a provisão da acessibilidade comunicacional, informacional, com igualdade de condições, sem paternalismos ou outras formas de barreiras atitudinais, o áudio-descritor não se deixará cair nessa "cilada tradutória".
O empoderamento da pessoa com deficiência, a partir da áudio-descrição, portanto, faz parte dos atributos que distinguem a descrição da áudio-descrição, ainda que esta possa apresentar-se na forma de texto, num livro, ou na descrição de uma imagem, num software ou página da internet.
Como mencionado, a baixa expectativa quanto à capacidade de a pessoa cega fazer uso ótimo das imagens, dos eventos visuais, tem levado a uma situação de negação do direito à informação, ao conhecimento. Essa exclusão vem ser quebrada quando há a oferta da áudio-descrição, posto que é o empoderamento da pessoa que se busca, não o mero relato daquilo que se está vendo, ou que alguém acha que deve ser contado ao indivíduo cego ou com baixa visão.
Prover a áudio-descrição é oferecer a descrição do que é visto, do que é observado, cabendo ao cliente descartar as informações que não considerar relevantes para seu próprio uso.
Assim, o áudio-descritor não vai oferecer a informação de que uma dada pintura retrata “um dia belo”, mas a informação de que “o dia está ensolarado, e que pipas grandes e pequenas colorem o céu azul”. Se o cliente achar isso belo, bem, será a conclusão dele e não a do áudio-descritor, que considera a cena bela.
A áudio-descrição, em última instância, é tradução visual que passa pelo crivo do tradutor, mas que não pode ser censurada por este, com base na deficiência visual de seu cliente, embora a técnica possa necessitar de filtro em função de limites temporais (como no caso de uma tradução simultânea ou gravada), ou espaciais (como numa tradução escrita, impressa ou eletronicamente oferecida numa página na internet).
Conclusão
Em nosso país, é crime negligenciar as crianças, negando-lhes a educação, a qual deve ser oferecida com qualidade e igualdade de acesso a todas, desde zero ano.
Nossa Constituição define o lazer como um dos direitos da pessoa, sendo vedado discriminar a quem quer que seja, sob qualquer argumento, ao acesso desse direito ou de qualquer outro. Internacionalmente, a criança é protegida por Convenções as quais o Brasil está obrigado a obedecer, como por exemplo a Convenção sobre os direitos da pessoa com Deficiência, que passou a vigorar no país como Emenda Constitucional, em julho de 2008.
As crianças são dotadas de todos os direitos e estão, portanto, protegidas de toda forma de negligência ou afronta à sua dignidade.
Garantir às crianças com deficiência visual o direito à informação, à educação e ao lazer são preceitos constitucionais que a sociedade deve observar, sendo o Estado responsável e devendo ser responsabilizado, caso não respeite tais direitos.
A áudio-descrição é uma das formas de oferecer acessibilidade comunicacional, acesso à informação, à educação, à cultura e ao lazer à pessoa com deficiência visual, seja ela adulta ou criança.
Essa técnica de tradução visual requer atenta preocupação do áudio-descritor para que, ao oferecê-la, não reproduza barreiras atitudinais que, inclusive, venham desqualificar seu próprio trabalho.
O ato tradutório do áudio-descritor deve primar pela busca do empoderamento da pessoa com deficiência, colaborando para sua inclusão social, cultural, de lazer e educacional. Jamais deve, o áudio-descritor, ser censor moral daquilo que descreve, devendo, pois, ser honesto com a fonte imagética, com o destinatário da mensagem visual, e com aquilo que vê.
Em suma, pelo que sustenta este artigo, não se trata de perguntar quando se vai oferecer a áudio-descrição (ela é devida à pessoa com deficiência, logo tem de ser ofertada agora), mas de se buscar as condições para melhor formar os áudio-descritores; melhor prover o serviço de áudio-descrição e melhor aparelhar o público alvo para a recepção desse serviço, começando com a criança pequena, lá na escolinha, até o adulto na universidade ou em outro lócus social.
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