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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

A MONTANHA PARTURIENTE DA ÁUDIO-DESCRIÇÃO

por Francisco Lima

A MONTANHA PARTURIENTE DA ÁUDIO-DESCRIÇÃO

Lamentável, quando em lugar de a “montanha” da ciência gerar conhecimento a partir do conhecimento, a despeito do homem, gera um “rato”. Deplorável, quando com ela, ele atrai para si os que a ela se curvam; triste, quando os atraídos se deixam iludir ou não se valem do Bem da crítica, recurso intelectual tão generosamente doado pela natureza à espécie humana.

Prezados,

Causar-me-ia espécie ler a divulgação a respeito de uma dissertação sobre a áudio-descrição em que se defendesse o uso da nomenclatura fílmica em lugar de uma áudio-descrição empoderativa, fosse eu um leigo das produções brasileiras nessa área, ou desconhecesse obras áudio-descritas alhures. Não é o caso!
Não obstante, não fico menos pasmado em ver que ainda hoje, no ano de 2015 do calendário cristão, há áudio-descritores que não perceberam que a áudio-descrição é uma tradução visual que tem precipuamente o objetivo de fazer as imagens visuais chegar, por meio das palavras, à mente dos que não as veem.
Logo, foi com esse “espanto” esperado que li a divulgação de mais um documento de pós-graduação, com o tema da áudio-descrição, em cujo texto de divulgação do trabalho exprime a defesa da nomenclatura fílmica, nos termos que abaixo apresento e que ensejaram meus comentários.

"A dissertação de mestrado da audiodescritora Bell Machado" (http://www.blogdaaudiodescricao.com.br/2015/09/a-dissertacao-de-mestrado...)

"A sequência de imagens traz algumas das cenas mais fortes do cinema de Serguei Eisenstein: o massacre na escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin. O filme é exibido para uma plateia de cegos. Um audiodescritor narra o que acontece na tela. Como descrever as imagens do terror vivido por uma multidão sendo metralhada? Ou o desespero de uma mãe que vê o filho baleado? Só há uma maneira de ser fiel à proposta do russo Eisenstein: contemplar, na audiodescrição, (abreviada por AD) a linguagem cinematográfica."

Começa mal a autora, ao afirmar que "Um audiodescritor narra o que acontece na tela". O mais principiante dos principiantes nos estudos da áudio-descrição sabe que quem narra é um narrador ou locutor. O áudio-descritor, por seu turno, áudio-descreve. E, no caso de fazer a locução da tradução visual que fez, nesse momento é o locutor da áudio-descrição. O narrador narra uma história, um fato e até uma fábula ou um jogo de futebol.
A autora não estaria confundindo esses papéis, estaria?
Vejamos o que Saveria Arma (2011) diz a respeito da confusão entre o que vem a ser áudio-descrição e narração.
Além disso, a áudio-descrição, que é o termo mais utilizado entre os especialistas, é também muitas vezes referida como “narração em áudio". No entanto, vale ressaltar que há uma diferença marcante entre as palavras "áudio-descrição" e "narração em áudio", embora sejam muitas vezes utilizadas como sinônimos.
Como Pujol (2007) explica, a palavra "descrição" é muitas vezes usada em contraste com a palavra " narração ". De fato, a ação não representa uma característica crucial para a descrição, mas é da maior importância na narração (Pujol 2007).
Por esta razão, uma vez que a ação de áudio-descrever implica lidar não só com ações, a palavra " áudio-descrição" deve ser preferida a " narração em áudio". Além disso, o objetivo final da áudio-descrição não é contar uma história, mas mostrar e descrevê-la, isto é, ajudar a visualizar os elementos relevantes para a compreensão do enredo (definição, figurinos, gestos, aparência, movimentos e demais elementos relacionados). (...)
O ato de narrar também implica tomar um ponto de vista a partir do qual a história é revelada. No entanto, o ato de áudio-descrever deve ser o mais objetivo possível, isto é, deve-se rejeitar tomar partido nos eventos, mas encontrar as palavras certas para permitir que o usuário final possa imaginá-los. (...)
Finalmente, a partir de um ponto de vista mais linguístico, enquanto a narração, muitas vezes usa tanto de primeira e terceira pessoa para contar uma história e inclui vários modos e tempos verbais, a áudio-descrição quase sempre usa a terceira pessoa e o tempo presente." (Saveria Arma (2011) (grifo nosso). ARMA, Saveria. The Language of Filmic Audio Description: a Corpus-Based Analysis of Adjectives. Tese de doutorado, 2011. Disponível em http://www.fedoa.unina.it/8740/. Acessado em 12 de dezembro de 2013.

Distinguir narração de áudio-descrição é coisa que o tradutor visual deve saber, pois, confundindo tais papéis, não saberá instruir os profissionais da fala para fazer a narração do texto tradutório, isto é, do roteiro feito pelo áudio-descritor.
Ao tratar da narração, lemos nos estudos que dão conta da comparação de diretrizes para a áudio-descrição que o documento alemão aponta que não se mostrou viável contratar radialistas que não estivessem familiarizados com a narração do texto áudio-descritivo. Eles precisavam ser treinados primeiro. No original, assim se lê:
" At first, it did not prove very feasible to employ radio presenters who were unfamiliar with audio description as narrators. They had to be trained and to become conversant with an unfamiliar technology within a very short space of time (see also chapter IV point 6)." Disponível em: http://publish.cephis.uab.cat/node/638

Nessa mesma esteira, a AENOR (Asociación Española de Normalización y Certificación), em sua norma, UNE 153020:2005 (Audiodescripción para personas con discapacidad visual. Requisitos para la audiodescripción y elaboración de audioguías – http://www.aenor.es/aenor/normas/normas/fichanorma.asp?tipo=N&codigo=N00...) trata da narração da áudio-descrição em tópico distinto (4.3). Obviamente, porque narração da áudio-descrição não é o mesmo que áudio-descrição. Ela é locução. Por conseguinte, a narração é decorrência da áudio-descrição e não sinônimo desta.
Mas, voltando ao texto que já vai frio, tal defunto no necrotério, piora as coisas quando a autora afirma que "Só há uma maneira de ser fiel à proposta do russo Eisenstein: ..." e apresenta uma proposta que não é dele, porém dela!
Está bem, estou sendo "chato" demais aqui!
Apenas que o sinal de dois pontos indicaria a proposta do Diretor. No entanto, em lugar disso, a autora nos apresenta uma proposta para a produção da áudio-descrição que, nem é dele, nem do, por assim dizer, o pai da áudio-descrição, Gregory Frazier, que cunhou o termo áudio-descrição e a chamou de tradução visual (http://www.youtube.com/watch?v=0GsGfV2yUIU).
Em suma, o texto acima, além de introduzir um conceito errôneo a respeito da áudio-descrição (posto que destoa do que esse conceito implica, a saber, a tradução visual em palavras), abriga uma redação ambígua, coisa que frustra uma importante diretriz da áudio-descrição, qual seja, "seja claro".
E claro está que não é o "audiodescritor" que narra o que acontece na tela.
Então, sigamos, pois já aqui o leitor vai ficando cansado com a obviedade.

De encontro à áudio-descrição e ao vernáculo

"Assim, em vez de dizer: "O menino ferido tomba. A mãe continua descendo. O menino grita ‘mãe’ com o sangue escorrendo pela testa. Ela se vira. Abre a boca apavorada ao ver o filho no chão. Ele chora e desmaia. Ela leva as mãos à cabeça, arregala os olhos", o audiodescritor prefere: "O menino ferido tomba. A mãe continua descendo. O menino grita ‘mãe’ com o sangue escorrendo pela testa. Ela se vira. Abre a boca apavorada ao ver o filho no chão. Ele chora e desmaia. Ela leva as mãos à cabeça, arregala os olhos e vem de encontro à câmera. A multidão corre desenfreada. Foco de pés pisoteando o corpo e a mão do menino que se contrai. Seu corpo rola e o peito é pisoteado diante do olhar de pavor da mãe".

Mas, qual áudio-descritor prefere tal "audiodescrição"? Fez a autora algum inquérito a respeito dessa preferência de tradução visual, entre os áudio-descritores?
Bem, talvez tenha feito e quando da publicação do texto integral, nós descubramos em que amostra ela se baseou para fazer essa assertiva.
Por hora, assumimos que tanto um texto quanto o outro foi feito pela autora. E, sendo assim, em ambos, ela incorre em erros crassos: de áudio-descrição e de redação gramatical. A exemplo do que digo, é o uso errado da locução "de encontro a" de que serviu a "audiodescritora/autora", para inserir o jogo de câmera no roteiro que "pretendeu/desejou" que fosse o melhor entre os dois propostos por ela.
Vejamos o significado da locução "ao encontro de" e a comparemos com o que significa a locução "de encontro a", usada pela "audiodescritora". Daí, vejamos como a "audiodescrição" em comento vem de encontro ao idioma português.

"Para não haver mais imprecisão no uso das locuções em questão, devemos nos ater aos seus significados, mesmo porque possuem sentidos contrários. Vejamos:
Ao encontro de: tem significado de “estar de acordo com”, “em direção a”, “favorável a”, “para junto de”.
De encontro a: tem significado de “contra”, “em oposição a”, “para chocar-se com”.
VILARINHO, Sabrina. "Ao encontro de ou de encontro a? "; Brasil Escola. Disponível em http://www.brasilescola.com/gramatica/ao-encontro-ou-encontro-a.htm. Acesso em 24 de setembro de 2015.

Ora, o personagem vai na direção da câmera, aproxima-se da câmera, vai chegando junto à câmera... logo, a áudio-descrição deveria empregar a locução "vem ao encontro da câmera", o que estaria certo do ponto de vista do registro padrão de nossa língua vernácula, mas que continuaria estando errado na áudio-descrição, por fazer uso indevido da linguagem fílmica.
Além disso, fosse, de fato o personagem de encontro à câmera, teríamos visto o filme "tremer" com o choque do personagem contra a tal câmera.
Apenas nesse trecho, descumprem-se várias diretrizes basilares para a áudio-descrição (http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/article/...):
Descreva o que você vê; não descreva aquilo que você não vê: não há câmera para ser vista no filme, logo não se a insere na áudio-descrição.
Em outra diretriz: caso necessário, inclua a plateia – "... vem em nossa direção".
Não subestime o usuário da áudio-descrição: a pessoa com deficiência que estiver assistindo ao filme, certamente saberá que há uma câmera ou várias, gravando. Dizer dela na obra é um despautério que, nem respeita o filme, nem o espectador com deficiência.
Além de tudo, em nada agrega à produção de imagem por parte do espectador cego ou com baixa visão, saber que o personagem "vem de encontro à câmera", já que com essa "audiodescrição", o usuário não verá melhor a cena, coisa que o diretor quer, por isso usou tal técnica.
De novo, nem o usuário é respeitado com o uso dessa linguagem fílmica, nem a obra ou o diretor que a assina.
Dizer que o personagem "vem de encontro à câmera" é, pois, o mesmo que dizer que o "audiodescritor" vem de encontro à áudio-descrição, ao usuário dela e ao filme, levando no esbarrão, o diretor, o autor e o vernáculo. E isso sim choca!
E, que falar desta "audiodescrição"?
" Foco de pés pisoteando o corpo e a mão do menino que se contrai. Seu corpo rola..."
Bem, o leitor já sabe que fazer uso da linguagem fílmica em nada agrega para usuário a qualidade imagética da áudio-descrição, posto que não é áudio-descrição. Alguém viu a imagem "audiodescrita" com maior nitidez, depois que a "audiodescritora" prolongou o roteiro com a linguagem fílmica?
"Foco de pés"? Por que o diretor usa essa técnica? Certamente não é para que o espectador veja a descrição "foco de pés". Ele desejou mostrar a profusão de pés que pisoteavam... Mas, ao "audiodescrever" "foco de pés pisoteando..." quem pisoteou o filme e o usuário, foi a "audiodescritora".
Quanto ao uso do pronome possessivo "seu" e flexões de gênero e número, sabem os alunos de áudio-descrição que além de constituir um léxico a mais no texto descritivo, aquele pronome pode ensejar ambiguidade, o que, como diz outra das diretrizes basilares da áudio-descrição, não deve o áudio-descritor permitir: A áudio-descrição deve ser clara, concisa, objetiva.
Há, ainda, outras questões que vão de encontro às diretrizes basilares da tradução visual no trecho que nos serviu para análise da "audiodescrição" até agora. Mas, manter esse foco não dá pé, logo o leitor se enfadonha.
Então, prossigamos.

"Traduttore, Traditore"

"A plateia veria outro filme e, desse modo, a experiência do cinema, que já não é comum à pessoa com deficiência visual, seria ainda mais singular. Quando um audiodescritor de cinema conhece os movimentos de câmera e os artifícios da montagem, pode usar a linguagem cinematográfica para enriquecer o trabalho com o objetivo de ajudar a ampliar o repertório imagético dos cegos".

Neste trecho, o texto em comento diz de uma invenção que, embora nada criativa, não fica despercebida: " audiodescritor de cinema"?! Daqui a pouco, se vai cunhar o termo "audiodescritor" de cemitério", perdoem-me os leitores. O áudio-descritor é um tradutor visual e, sim, pode atuar no cinema, mas pode atuar também no hospital e no funeral. O que o tradutor visual não deve fazer é atuar no "enterro" do vernáculo. Diz a diretriz, a respeito do uso correto da língua em que a áudio-descrição é feita, que o áudio-descritor deve conhecer a gramática da língua e respeitá-la no registro padrão, em conformidade com a obra.
O áudio-descritor atua em toda a situação em que haja um evento visual e dele dependa uma pessoa com deficiência visual ou que nele esteja envolvida uma pessoa com deficiência visual, seja como protagonista, seja como espectador ou por mera "presença", assim para o trabalho, como para o estudo, lazer.
A expressão "A plateia veria outro filme..." diz muito e diz o que o usuário da áudio-descrição não quer: não quer ver outro filme, e sim o que está na tela!
O áudio-descritor, ensina Margaret Pfanstiehl, matriarca da áudio-descrição, deve ser os olhos de quem não vê. O tradutor visual deve verter em palavras aquilo que lhe entra pela lente dos olhos, sem inferir, interferir ou deturpar o que a obra mostra (http://www.audiodescribe.com/links/ADI-CONF95.doc). Dizer que o personagem "vem de encontro à câmera" é inserir um objeto que não existe para a visão dos que enxergam e estão assistindo ao filme. Logo, é interferir com a obra, é deturpá-la. Em outras palavras, o áudio-descritor deve descrever a obra como ela se apresenta, de sorte que a pessoa com deficiência visual a assista, e não de maneira que veja outra obra.
Ao inserir a linguagem fílmica não se está agregando constructo imagético ao banco de imagens cerebral da pessoa com deficiência, uma vez que em nada essa inserção descreve objetivamente o evento visto pelo áudio-descritor. Tomemos, como exemplo, a "audiodescrição" que, segundo a proposta do trabalho em tela, viria "ampliar o repertório imagético dos cegos":

A câmera sobe. A câmera desce. Agora a câmera gira em torno da "audiodescritora". Close no rosto da "audiodescritora". A câmera afasta e vemos a "audiodescritora. Ela vem de encontro à câmera. Foco no cabelo da "audiodescritora. Detalhe dos lábios da "audiodescritora. Filmaço, diria Sara Bentes (http://www.youtube.com/watch?v=slTpJu3stZE).

E, o que tudo isso agregou ao banco de imagens da pessoa com deficiência? Nada, pois dizer de jogo de câmera é o mesmo que fazer uma tradução que, em nada traduz, ainda que na língua de chegada.
Poderá dizer o menos avisado que as "audiodescrições", acima "narradas", traduziram o evento visual fílmico. Todavia, o que ocorreu, de fato, foi que nessa "audiodescrição" traiu-se a obra, que deixou de ser vista, e o usuário, que foi impedido de vê-la. O tradutor foi, propositadamente, traidor.

Consideração final
Muito mais se poderia dizer a partir do texto em comento, como a ingenuidade de se pensar que se pode relacionar um pedaço de algodão branco ao conceito de nuvem, ao ensinar uma pessoa cega congênita ou como é cientificamente extemporâneo valer-se da "Carta sobre os cegos para uso dos que vêem", de Denis Diderot, 1713-1784, (http://www.deficienciavisual.pt/r-CartaSbCegos-Diderot.htm), para compreender o universo de enxergar o mundo sem a experiência visual.
Um estudante médio saberia, por exemplo, que em nada traz de similar, o toque em um algodão, com a imagem de uma nuvem. E, desculpe-me os leitores de ter de dizer isso (não quero lhes agredir a inteligência), mas o tato háptico, ou outro, não pode ver a cor branca do algodão, nem a cor vermelha, a azul ou o furta-cor dele, caso assim ele fosse hapticamente examinado. O algodão seria o mesmo material que se deforma perante a pressão do toque e que, em nada tem que ver com uma nuvem branca no céu da imaginação de quem não sabe o que é o mundo da representação mental (Lima, 1998).
Então, posto que este comentário já vai longo e o leitor já está deveras cansado, se não aborrecido, deixo para comentar outro dia, o documento científico original, pois, afinal, sempre se pode culpar o articulista pelos erros cometidos pelo entrevistado.
E, antes que eu seja tido como mal educado pelos comentários didáticos que aqui apresentei e que representam um ponto de vista científico deste professor, não de crítica pessoal à autora, quero parabenizar a Mestre Isabel e seu orientador pelo trabalho que desenvolveram e que certamente entra para a história científica da áudio-descrição no Brasil.
Aos meus leitores, agradeço estarem comigo até aqui, esperando que nos encontremos em outras postagens e em comentários que são bem-vindos a postar abaixo desta escritura.
Em tempo, o leitor que assim desejar, pode ler "A montanha parturiente" em:
https://archive.org/stream/TraducaoDasFabulasDeFedroPorNicolauFirmino/Fb...

Cordialmente,
Francisco Lima