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Leitura pelo tato

por Lerparaver

É como um laboratório de revelação de fotografias: uma sala pequena – um metro e meio por dois, talvez. Completamente escura. Primeiro, ele recebe a radiografia dentro de uma caixa metálica, à prova de luz. Retira a radiografia do box, cola nela uma etiqueta de identificação do paciente no canto superior esquerdo. Só então ele vai para a máquina reveledora. Esse é o trabalho de um auxiliar de radiologia.

A maior dificuldade para os iniciantes é acostumar-se com a escuridão. Estágio que Durval Gomes, 45 anos, deficiente visual, tirou de letra. Acostumado a usar o tato, ele trabalha no CHM (Centro Hospitalar Municipal) de Santo André, há 15 anos.

É curioso, mas não incomum. Até os anos 90, muitos deficientes visuais exerciam a profissão, justamente pela facilidade em trabalhar no escuro. Mas, com o processo de digitalização das radiografias, que elimina a revelação dos filmes, a função está por acabar.

A adaptação à perda da visão, essa sim, foi difícil para Durval, que ficou cego aos 25 anos. Ele sofre de retinose pigmentar, doença degenerativa que afeta a retina. Não tem cura.

“Até os 22 anos, eu tinha limitações, não andava na rua sozinho à noite, por exemplo. Mas conseguia ler, estudar e ter uma vida como a de qualquer outra pessoa”, conta.

Nos três anos seguintes, porém, o problema se agravou. “Era como ver através de um véu branco. E o véu a cada dia ficava mais grosso. Até chegar ao ponto de não enxergar mais nada, como se estivesse em meio a um nevoeiro que nunca passa.”

Mesmo consciente desde a adolescência de que um dia isso poderia acontecer a qualquer momento, o impacto da perda da visão foi grande.

“A sensação era de estar perdido. Não conhecia nenhum cego, não sabia que eles podiam trabalhar, ter uma vida. Meu maior medo era meus pais morrerem e eu não ter minha independência”, relembra.

Para que isso não acontecesse, ele foi buscar ajuda. “Como há 20 anos não existia curso de rabilitação para adultos aqui no Grande ABC, fui para São Paulo.”

Na Capital, ele passou por acompanhamento psicológico, aprendeu a ler em braile e usar a bengala. “Após o curso de reabilitação, minha primeira providência foi procurar emprego.”

Foi então que ele prestou concurso para servidor público na Prefeitura de Santo André. A primeira função que exerceu foi de jardineiro. No entanto, o trabalho não era o bastante. Fez vários cursos, entre eles, de auxiliar de radiologia. Fez novo concurso após dois anos e assumiu o emprego no CHM.

Mas não parou por aí. Prevendo o fim da profissão, por causa da digitalização dos laboratórios, ele se prepara para recomeçar. “Tenho faculdade de pedagogia, especialização em educação ambiental, metodologia do ensino de história e sou técnico e reabilitação de deficientes. Enquanto conseguir ficar aqui no hospital, vou exercendo outras atividades voluntariamente. Mas, se for preciso, estarei preparado para outra profissão.”

A fome de conhecimento vem desde cedo. Com uma infância marcada pelas limitações visuais, desenvolveu o gosto pela leitura. “Nunca pude jogar bola, brincar na rua, como meus amigos e meus irmãos. Criado dentro de casa, comecei a ler muito cedo. Hoje, com tantos livros gravados em fita, ‘leio’ com os ouvidos, até enquanto estou trabalhando.”

Fonte: http://setecidades.dgabc.com.br/materia.asp?materia=558742

Nota: contribuição, via e-mail, de Pedro Afonso.