Prezados,
Em que pese o artigo abaixo carecer de áudio-descrições e equivocar-se ao dizer "...ainda em 1974, cria o primeiro selo de acessibilidade nas comunicações de natureza postal, em Braille - linguagem escrita de pessoas cegas;", uma vez que a escrita em Braille não é o que podemos dizer, uma "linguagem", o tema que ele aborda é bem chamativo e requer atenção dos interessados pela áudio-descrição, principalmente se o tradutor visual estiver preocupado com a áudio-descrição empoderativa. As conclusões do artigo são bem significativas e provocam o leitor a pensar a inclusão, não como uma continuidade do que fora antes a integração, visto que não é, e provocam o leitor a entender os danos da integração.
Boa leitura,
Francisco Lima
Disponível em:
http://www.uece.br/uece/dmdocuments/ARTIGO%20SELO%20ALEX%20GENY%20LUSTOS...
A IMAGEM DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NOS SELOS: UM RETRATO (MAL) FORMADO?
Francisca Geny Lustosa
Professora da Universidade Federal do Ceará - UFC; mestra e doutora em Educação.
Email: Franciscageny@yahoo.com.br
José Alex Soares Santos
Professor da Universidade Estadual do Ceará/FACEDI; Mestre em Educação; Coordenador do Laboratório Universitário de Educação Popular, Trabalho e Movimentos Sociais/LUTEMOS.
Email: jalexsantos@yahoo.com.br
Pedistes selos? Pois selos tereis os que apetecerdes, Encarnados, amarelos, azuis, roxos e verdes;
tê-lo-eis grandes, pequenos, a farta postos à escolha, uns melhores, outros menos, uns velhos, outros em folha.
Tê-los-eis dos mais legítimos [...]
Tê-los-eis com vários bustos [...] Tê-los-eis de vários anos [...], Tê-los-eis de vários gostos Firmados em línguas várias [...]. (Aluísio de Azevedo, Poesia Filatélica).
INTRODUÇÃO
Neste ensaio, objetivamos discutir a temática da visibilidade social das pessoas com deficiência, com aporte na filatelia, ou seja, baseada na análise de como os selos retrataram esses sujeitos e sua condição histórica, mormente em função da pertinência atual do debate sobre a inclusão dessas pessoas na sociedade contemporânea.
A perspectiva inclusiva no âmbito da conjuntura social, política e cultural é uma luta recente e em ebulição, mas o balanço histórico permite afirmar que a sociedade, em geral, ainda não incorporou as conquistas resultantes de tal luta. Essa não incorporação resulta da compreensão ingênua da inclusão como ideal utópico e estéril, ao contrário do indicado por seus postulados, em que esta é concebida como projeto ambicioso de
mudança cultural, expressa numa nova atuação social dos sujeitos em suas interações e formas de apropriação do mundo.
Tal compreensão requer a ideia de pensarmos o mundo e todas as manifestações da diversidade, culturais, étnicas, intelectuais, religiosas, artísticas, dentre outras, sob novos pontos de vista, o que implica, para tanto, rever práticas sociais, valores, concepções e crenças, individuais e coletivas.
Desse modo, não obstante a legitimidade dos movimentos que perspectivam a inclusão social das pessoas com deficiência no âmbito da conjuntura social, política e cultural, como luta recente e em construção, é preciso demarcar o fosso ainda existente entre o texto das leis (cartas e acordos internacionais) e a realidade configurada, de forma a enfrentar os fatores que obstaculizam a implementação de tal proposta.
Em face do exposto e ciente do significado que têm as concepções em relação às pessoas com deficiência para o tipo e a qualidade de ações/interações empreendidas a elas, buscamos, por meio da análise das imagens, como as que se apresentam nos selos, apreender as representações estabelecidas no quadro desse problema histórico.
No intuito de alcançarmos êxito nos objetivos propostos, realizamos pesquisa, categorização e análise dos selos de alguns países, encetando uma reflexão a respeito das compreensões acerca das pessoas com deficiência no contexto societário atual, cenário contemporâneo, no qual se defende a perspectiva da inclusão social de todas as pessoas, independentemente de suas diferenças.
Comungamos das ideias de autores (MARQUES, 2001; 1999; 1997; MAZZOTTA, 1999; 1982) que discutem sobre a representação social das pessoas com deficiência, quando asseveram que as noções construídas na atualidade, sobre esses sujeitos, são vitalizadas pelo que a história escreveu sobre elas, considerando a ideia de elaboração histórica e sociocultural. Ariès (1978), por sua vez, fortalece essa compreensão quando estabelece que todo modelo novo de interpretação dos fatos, fenômenos e eventos sociais é constituído também com o auxílio dos dados do passado.
Anunciamos, doravante, que compreender a retratação das pessoas com deficiência, ponderando as implicações e desdobramentos possíveis pela filatelia, fez parte de atividade nova, deveras instigante e prazerosa, não perspectivada antes em nossa trajetória acadêmico-profissional, já consolidada na área da Educação Especial/Educação Inclusiva. Singularmente, fomos compreendendo as possibilidades que possuem as imagens presentes nesses pequenos materiais, à medida que a pesquisa para este ensaio avançava, situando-os na complexidade e importância dos estudos
iconográficos. Desses objetos cognoscíveis de caráter tão peculiar, notadamente, sobressaem-se ideias e concepções que dão “pistas” sobre como foram (e ainda são) percebidas socialmente as pessoas com deficiência.
Nesse sentido, os selos podem revelar informações interessantes ao debate, uma vez que, explicitamente ou de forma velada, apontam indícios de ideias, opiniões, concepções formadas (ou pré-formadas) sobre esses sujeitos no conjunto das representações sociais, o que faz da análise das concepções expressas por eles uma contraposição interessante ao estabelecimento do conceito a respeito das pessoas com deficiência: deficiente? Diferente? Estigmatizado? Socialmente inferior? Sujeito-alvo de comiseração e/ou de caridade?
Por outro, buscarmos respostas para questões como: quem é a pessoa com deficiência que se posiciona na especificidade da comunicação postal produzida historicamente pela filatelia? Qual a posição que ocupa esse sujeito na trama das relações sociais retratada nos selos?
Seguindo esse viés, interessamo-nos, em particular, por conhecer o que aproximam e distanciam os selos, em termos de representação dessas pessoas com deficiência: poderiam ser agrupados em uma tentativa de categorização e análise de suas representações? Que aspectos em comum ou dessemelhantes apresentariam? Qual potencial de análise em termos de concepções sociais poderiam encerrar?
A resposta é sutil: a análise dessas imagens guarda importante potencial iconográfico, uma vez que a prática de transmissão de ideias visuais marca a história da humanidade, e, necessariamente, envolve o uso de diversas inteligências: pictográfica, visual/espacial, corporal/cinestésica, estética, ética/moral, política etc. Com sua diversidade, os selos em seus signos, símbolos, ideias representam a expressão do pensamento de uma época, uma vez que permeiam e marcam, sendo também capazes de anunciar, em certa medida, o futuro; comunicam, - de maneira visual, sucinta, certas ideias para o público. Eles são, em parte, repertório da maioria das representações discursivas coletivas circundantes na sociedade.
A categoria de análise adotada para leitura e interpretação das cenas/ilustrações presentes nos selos busca entender as práticas discursivas que perpassam os repertórios interpretativos utilizados, visto que compreende “a produção de sentidos também como um fenômeno sociolinguístico”. (SPINK, 1999, p. 153).
1. O Lugar Social e a Imagem das Pessoas com Deficiência Retratadas pela Filatelia
No que diz respeito, em particular, à questão de selos vinculados à temática das pessoas com deficiência, objeto de interesse da incursão pela filatelia nesse momento, dedicamo-nos a análise da emissão de selos referentes ao “Ano Internacional da Pessoa Deficiente” (A.I.P.D.), ocorrida em 1981, em busca de perceber o que a informação visual, presente nesses selos, sinaliza sobre a representação das potencialidades e possibilidades de atuação social desses sujeitos.
O lançamento, pela Organização das Nações Unidas, de um ano dedicado às discussões sobre pessoas com deficiência, marca a ampliação do debate sobre os direitos sociais desses sujeitos em escala mundial, constituídas na década de 1980.
A ONU solicita, pois, a cooperação dos correios no sentido de emitir selos sobre o assunto, na intenção de produzir filiações temáticas ligadas ao campo dos direitos sociais dessas pessoas, tais como serviços médicos, trabalho, desporto e educação. A recomendação se fazia inscrita sob o lema “participação total e equidade”, confere ao slogan um abundante material produzido nos diversos países que aderiram à solicitação, aliado a outras iniciativas da entidade internacional que marcavam o intitulado à época “Ano Internacional da Pessoa Deficiente.” (A.I.P.D.).
Interessante se faz, portanto, proceder a leituras destas emissões, no sentido de perceber como a filatelia das mais distintas regiões do mundo utilizou-se da “arte em selos” para comunicar representações coletivas: quais as imagens-discursos utilizadas para retratar a pessoa com deficiência, no caso particular, da explícita intenção em atender aos propósitos da organização internacional, que era fomentar novas concepções sociais sobre esses sujeitos?
Assim, no período, grande número de selos foi emitido em busca de explicitar artisticamente o tema e apresentar à sociedade, em pequenos retângulos, imagens que expressassem novas configurações sobre a problemática. Alguns países fizeram circular apenas um selo de propagação em território nacional; outros produziram séries, de quantitativos distintos, às vezes, complementados com blocos e carimbos ilustrados.
O símbolo internacional da ONU para caracterizar o A.I.P.D. mostra, de forma estilizada, duas pessoas dando-se as mãos em sinal de solidariedade e em sentido de equidade. O emblema instituído pela ONU para o “ano do deficiente”, disposto a seguir,
foi adotado também como imagem para os selos por alguns países, além de se apresentar como ícone alusivo a todas as emissões, identificando a série comemorativa.
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Mesmo sob a inspiração paradigmática da imagem-símbolo da ONU, permeada de um conteúdo interpretativo que aponta para questões de abrangência maior, como olhar para a diversidade humana, em suas manifestações de diferenças e pluralidades, grande número de selos mencionou, tão-só, a problematização das fragilidades físicas ou sensoriais dos sujeitos. São retratadas, em sua maioria, pessoas com alguma deficiência nos membros superiores ou somente a mão (deficiência física), incluindo pintores sem mão, fazendo uso de pincel na boca ou por entre os dedos dos pés, operários/trabalhadores realizando atividades laborais com mãos artificiais/mecânicas, órteses e próteses, como exemplos. Outros ícones, nessa categoria, foram cadeira de rodas e muletas utilizadas para assinalar a marca da deficiência, sob o símbolo das limitações de ordem motora, incluindo amputados e principalmente as vítimas da poliomielite, além do destaque ao paraesporte, em suas várias modalidades, sendo privilegiados atletas com deficiência física praticando arco e flecha, bola ao cesto etc.
Outras representações incluíram personalidades ilustres, nos mais diversos campos de atividades humanas (política, arte, ciência), que tinham alguma deficiência, como Franklin Roosevelt (pela poliomielite que adquiriu), os artistas Sarah Bernardt e Henri Toulose-Lautrec (amputada de um dos membros e deficiente físico, respectivamente).
A surdez foi também tema de vários selos. Nesse caso, aparece com frequência o desenho de mãos representando o sinal manual, correspondente a letras do alfabeto, em língua de sinais e/ou aparelhos eletrônicos para ampliação do som utilizado, em geral, por pessoas com deficiência auditiva. Entre as personalidades retratadas figuram, em grande escala, o músico alemão Beethoven (deficiência auditiva).
A cegueira constituiu um dos temas de uma grande parte dos selos emitidos para difundir a data-marco internacional. Nessa categoria de deficiência, percebemos, em particular, um significativo número de tiragens, retratando personalidades ilustres, como
Louis Braille (Cego, criador do alfabeto Braille), Helen Keller (surdocega, que fez curso universitário, escreveu livros e foi um exemplo para o mundo da possibilidade de superação das limitações sensoriais), Anne Sulivan Macy (cega, professora de Helen Keller), dentre outras personagens. Aparece também, recorrentemente, um grande número de selos que exibem ícones e ilustrações em torno do alfabeto Braille: em detalhe e em foco ilustrações de mãos lendo ou escrevendo em Braille, páginas e livros com caracteres Braille etc.
Outra representação para a cegueira pode ser encontrada nos selos que trazem ilustrações centradas no cão-guia para cego, tais como nos selos de Uganda, Inglaterra, Togo e outros. Ainda, em mesma proporção, a bengala branca e os óculos escuros, símbolos da deficiência visual em todo o mundo, e que possibilitavam caracterizar trabalhadores cegos, como operários nas mais variadas atividades (datilógrafos, telefonistas, tecelões, cesteiros, vassoureiros, músicos cegos, etc.). Distintos trabalhos artísticos apoderaram-se desses ícones-exemplos da deficiência para ilustrar seus selos e comunicar suas mensagens.
A deficiência intelectual, por seu turno, foi a representação de menor destaque, provavelmente, pela dificuldade de materializar em uma ilustração e de dar concretude a uma deficiência de ordem intelectual/cognitiva.
A seguir, apresentamos, a título de ilustração, alguns dos selos e a moeda portuguesa (100 escudos), emitidos para referendar a temática do “Ano Internacional da Pessoa com Deficiência - ONU, 1981”, em distintas localidades do mundo.
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http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3b/PRT029.JPG
O Brasil, em função de atender a solicitação da ONU, produziu um selo estilizado, que disponibilizamos a seguir para apreciação, no qual traz retratada a simbologia de uma flor caída entre outras duas1.
1 Selo brasileiro “Ano Internacional das Pessoas Deficientes”. Picotagem: 11½. Tiragem: 2.000.000 selos. Impressão: Ofsete. Papel: Cuchê gomado. Yvert: 1495. Scott: 1759. Michel: 1845. RHM: C-1217.
http://www.girafamania.com.br/index/brasil1981rhmC1217.jpg
Salientamos que, apesar da bela imagem artística em suas cores e vivacidade, no aspecto conceitual, a ilustração não retrata as pessoas com deficiência sob a dimensão positiva de suas possibilidades de atuação social ante suas singularidades, assinaladas pela marca da deficiência.
No selo, a imagem de “uma única flor diferente entre duas iguais”, situa a deficiência de frente a um obstáculo social real, num abismo que afasta e separa esses sujeitos dos demais indivíduos considerados normais, como se a presença da deficiência fosse o único aspecto que marcasse a diferença entre os semelhantes, negando o fato de que somos todos diferentes em nossa diversidade. A retratação traz à tona, provavelmente, mesmo sem se dar conta, a marca do preconceito, do estigma, da diferença como negatividade, quando o intuito propagado pela ONU era exatamente o oposto.
Imagens como essa não colaboram para eliminar e/ou superar barreiras sociais. Lúcido seria o reconhecimento de que todos nós somos diferentes, como vanguarda da intenção de um desenho novo de representação social, em que as diferenças e as semelhanças humanas são possíveis.
Esse fato, pouco visível a leitores desatentos ou desavisados, pode revelar, também, a reificação do entendimento secular da baixa ou inexistente capacidade de desenvolvimento dessas pessoas encerradas na própria deficiência. Subjacente, pode
existir uma percepção de deficiência que converge para a ideia de déficit, debilidade, incapacidade como inerente ao indivíduo com deficiência, como dado determinante e imutável de sua constituição e de suas possibilidades.
Tal compreensão conduz a outras reflexões, imprescindíveis à discussão dos pressupostos que ainda legitimam ações sociais destinadas a esses sujeitos. É lícito que essas noções se entremeiem e se relacionem, dando sustentação ao entendimento da deficiência no espaço social como falta de condições para evolução, a qual impossibilita o indivíduo que manifesta qualquer tipo de assimilação e de desenvolvimento humano e, consequentemente, social. Com efeito, a deficiência ainda é vista, por alguns, via construto pejorativo da noção de desvio, anormalidade.
Historicamente a atitude de rejeição à diferença, ainda manifestada em relação às pessoas com deficiência encerra, a princípio, a idéia de indivíduo padrão, criado para diferenciar o “normal” do “anormal”. Esse foi o mecanismo para identificar e classificar os indivíduos desviantes desse modelo de homem “ideal”; uma “invenção” da modernidade que traz o ranço da segregação: produz-se, então, a institucionalização da diferença! (Foucault, 1999).
Destacamos que a compreensão do discurso sobre a deficiência, historicamente, se edificou, em particular, no aspecto caracterizado na divergência, no “desvio” percebido em relação a um padrão social de suposta normalidade. Autores como Marques (1997; 1999; 2001), Silva (2000), Vayer e Roncin (1992), Lustosa (2002; 2009), dentre outros, atribuem que esse status encerra a dificuldade coletiva em lidar com a deficiência, ou seja, são resquícios da mentalidade coletiva de uma sociedade historicamente sectária, segregante e opressora.
Queremos fazer menção aqui a três formações ideológicas2, em particular, que se expressam para o entendimento social sobre a deficiência. Uma delas, e a que particularmente interessa fazer aproximação nesse caso, é a fundada no paradigma da exclusão. Como evoca Marques (1999), a sociedade atribui as pessoas com deficiência à condição de incapazes, defeituosos ou doentes.
2 As outras duas formações ideológicas identificadas por Marques (2001) caracterizam-se: uma é aquela cuja particularidade é o confronto entre o discurso dominante da exclusão e o construído a partir da voz dos próprios sujeitos com deficiência e/ou de pessoas com eles envolvidas na luta pelo reconhecimento da diferença como condição existencial possível; e a outra, sucede pelo princípio da inclusão, que tem como característica maior a diversidade da existência humana. É interessante relembrar o fato de ser nessa formação discursiva paradigmática da inclusão que está situado o objeto de análise deste estudo e em torno do qual circundam todas as demais questões discutidas nesse texto.
O conceito de estigma de Goffman (1988) também pode apoiar a reflexão, quando pensado que a marca da deficiência (ainda!) deturpa as configurações imaginárias, tornando visíveis as deformações nos entendimentos (como fazia referência originariamente o termo desde a Grécia, onde os sinais ou evidências corporais depreciavam quem os apresentava).
Em contribuição ao debate da formação de outras concepções e paradigmas sobre as pessoas com deficiência, como sujeito de direitos e de potencialidades, é preciso atentar para as formas de produção dos discursos sociais. Por isso, uma referência importante nesse momento é a recorrência aos princípios que regem o mundo dos discursos3 descritos por Foucault (1996), com o intuito de desvelarmos o que está subjacente a eles, bem como aquilo que os ultrapassa. Dentre os princípios que regem a dinâmica destes, em especial, aqui se faz enunciar o princípio da descontinuidade, ao compreender que “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”. (FOUCAULT, 1996, p.52).
3 Foucault (1996) confere aos discursos alguns princípios que o regem. São eles: inversão, descontinuidade, especificidade e exterioridade.
É na lógica desse engendramento discursivo que amparamos a perspectiva ontológica e dialética de se analisar esse lugar de sujeito, que foi e é socialmente construído e que se transforma a cada dia, em um processo de implicações mútuas da relação do homem com o mundo, na construção do real (KOSIK, 2002).
Nesse sentido, perspectivando a possibilidade de reconfiguração do conceito social das pessoas com deficiência, destacamos que, no Brasil, a temática não figurou mais na filatelia, após o ano de 1981, voltando mais recentemente (2001), ainda em retratação de símbolos sensoriais estilizados, como pode ser conferido pela imagem do selo que dispomos a seguir.
Seguidamente, em 2012, temos o lançamento de outro selo que contempla as questões das pessoas com deficiência. Dessa vez, ocorre o lançamento de um selo que se enquadra na categoria personalidades ilustres: selo de Emissão Especial "Fundação Dorina Nowill para Cegos/SP”.
O selo, disposto a seguir, foi produzido em duas peças, com uma técnica de relevo que possibilita a identificação do semblante do rosto de Dorina Nowill, por meio de contato tátil4,· aliado a outra ilustração que traz a imagem de um menino com deficiência visual, fazendo uso de bengala.
4 Quanto às linguagens acessíveis em selos, o Brasil figura exponencialmente na filatelia mundial: ainda em 1974, cria o primeiro selo de acessibilidade nas comunicações de natureza postal, em Braille - linguagem escrita de pessoas cegas; seguidamente, no ano de 1979, lança seu segundo selo em Braille, desta vez, em comemoração aos 150 anos de criação dessa linguagem, em selo comemorativo que traz a figura do Loius Braile, pesquisador e criador do alfabeto para cegos.
5 Vários documentos nacionais como a Constituição Nacional (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), Estatuto da Criança e do Adolescente (1997), Política Nacional da educação especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), garantem a inclusão social da pessoa com deficiência e, notadamente, determinam que a educação deve se organizar na perspectiva inclusiva, ocorrendo na escola regular dos sistemas de ensino.
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Apesar de assinalarmos que esse selo se enquadra na categoria personalidades ilustres, concordamos que se refere a uma pioneira no trabalho de inclusão social e educacional de pessoas cegas, acreditando em suas potencialidades e capacidades de protagonismo. Referido selo chega à sociedade brasileira no momento em que vivenciamos o empreendimento de uma expressiva e efervescente luta social para sua efetivação da garantia da inclusão educacional das pessoas com deficiência, pelo acesso e permanência com êxito na aprendizagem - só possível de ser compreendido atualmente na perspectiva inclusiva, paradigma contemporâneo de escolarização desses sujeitos, assegurado em lei e que deve ocorrer na escola comum dos sistemas de ensino5.
É preciso assinalar que os selos produzidos, até então, ainda não socializaram emblemas diretamente ligados à defesa específica da causa da “Educação Inclusiva”. A filatelia ainda não privilegiou, ou, pelo menos, não identificamos na pesquisa realizada, nenhuma emissão de selos que contribua para a difusão explícita desse lema. O selo de Dorina Nowil, no Brasil, pode ser o embrião, primeiro de uma série, aguardada e bem-vinda.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um balanço histórico, consideramos, portanto, que as representações presentes nos selos, em particular, no recorte analisado nesse artigo, chamam a atenção da sociedade para as pessoas com deficiência, porém, ainda se limitam a retratá-las na própria deficiência e/ou símbolos que a identifiquem, em um não atendimento a contento da difusão das noções de direito, cidadania e participação dos sujeitos em uma sociedade equiname e democrática. Tal circunstância pode ser justificada, provavelmente, no fato de à época analisadas nos selos, ano de 1981, a defesa dos direitos das pessoas com deficiência se encontrar sediada na noção de integração (marco histórico das décadas de 1960 a 1980), suplantada, posteriormente, pelo paradigma da inclusão (década de 1990 e início do século XXI6). A esse respeito, convém destacar, que o movimento integracionista consistiu em uma forma de organização dos sistemas sociais que previa uma participação concedida de maneira parcial, em que o sujeito “integrado” teria de se adaptar, em uma espécie de adequação individual às condições sociais, físicas, culturais e pedagógicas dos ambientes. Já a perspectiva inclusiva pressupõe a participação plena dos sujeitos em que uma cultura de valores e práticas redefinidos considera as características, necessidades e potencialidades de todos os participantes.
6 Como esclarecimento, destacamos que equivocadamente o movimento de inclusão foi, por muitos, compreendido como “evolução” do sistema integrativo; em função de ter se desenvolvido cronologicamente após o movimento de integração, muitos tendem a pensar que é um novo termo para designar proposta semelhante. Ao contrário, o movimento de defesa da inclusão apresentou-se em ruptura e negação a ética da integração. No entanto, a integração não mexeu nos valores da escola, não rompeu com a segregação, muito menos produziu novas compreensões e modos de atuação social. A noção integrativa criou os contextos da escola especial, por exemplo, que separa os alunos em categorias muito claras: os “normais” e os “deficientes”, condicionando o lugar e o papel do aluno, além das expectativas de sua aprendizagem e de seu desenvolvimento. A educação inclusiva é sediada, portanto, em uma nova lógica e outra ética que cumpre à plena participação de todos os alunos.
Pertinente se faz a indagação: será que os símbolos concebidos à luz do paradigma da integração, ainda, permanecem resistentes à perspectiva da inclusão? Terão os selos, condições de materializar o avanço teórico demandado às representações que se urgem fomentar/redimensionar sob a inspiração do paradigma da inclusão?
É plausível acentuar que o paradigma dos direitos das pessoas com deficiência, como expressão discursiva, presente nos selos, é merecedor de reflexão, pois eles se legitimam, nesse sentido, nos espaços do dizer de uma sociedade em determinada época histórica, em suas permanências e rupturas imanentes e possíveis, circunscritos em suas possibilidades históricas, todavia, também, em parte, cerceados pelos limites de seu tempo.
A filatelia referenda-se como espaço discursivo-imagético de poder. O selo postal assumiu, nomeadamente nos últimos anos, o debate de temas específicos necessitados da atenção da sociedade democrática, sendo estandarte de problematizações ecoambientais, problemas sociopolíticos, de saúde pública e bem- estar da coletividade, dentre outros de relevância local e mundial.
Desprende-se desta análise, ademais do que foi tratado neste texto, a noção de que as concepções de diferença, diversidade e deficiência são ideações que precisam ser reeditadas pelo e no discurso social, a fim de que se processe uma atualização de suas representações. Quem sabe se não estão a surgir, mesmo que de forma gradativa, espaços outros para a produção de uma noção mais positiva da inclusão, das diferenças e do reconhecimento da diversidade humana no pensamento coletivo? A filatelia pode ser um espaço profícuo de colaboração para formar outras mentalidades, subsídio para compreender a deficiência sob renovadas perspectivas, a priori.
Se o selo pode assumir uma força política importante na formação da consciência coletiva, ao tempo em que sua análise possibilita interpretar as representações que se circunscrevem na sociedade, podemos inferir que existe uma lacuna em potencial ainda não preenchida pela filatelia, o que nos incita a referendá-lo e coptá-lo como locus de luta que pode ser apropriado por profissionais e pela sociedade civil anteocupada com a formação de massas e com sensibilização coletiva quanto à defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
Os movimentos sociais organizados aguardam que a filatelia possa se estabelecer, nos próximos selos, como espaços de pressão para o deslocamento do princípio do preconceito para um novo jogo de efeito dos discursos, e que, como resultado, mostrem a nova dança do conceito da diferença, no discurso social
contemporâneo, assentado no acolhimento, respeito e valorização da diversidade: do estigma e da segregação para o paradigma democrático da inclusão.
No momento, salientamos que, em termos de iniciativas que concorrem para a constituição de uma sociedade inclusiva, na qual o triunfo seja a edificação de uma sociedade mais equilibrada, de relações harmônicas e justas, gestadas por homens e mulheres, todo esforço de reflexão e de conscientização coletiva é benéfico. Que a filatelia contemporânea nos brinde com mais selos distintos, diversos, “firmados em línguas várias”, assim como nos anuncia o poema-epígrafe!
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