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"Nenhum pessimista jamais descobriu os segredos das estrelas, nem velejou a uma terra inexplorada, nem abriu um novo céu para o espírito." (Helen Keller) - blog de Marco Poeta

André, um Jon Juan

por Marco Poeta

André, um Don Juan

Eu e o André temos a mesma idade, somos altos, esbeltos e e morenos. Mas temos uma diferença: ele é surdocego congénito e eu adquirido. Bem sei que tenho mais sorte do que ele, que é surdocego desde criança.

Quando o conheci, no Centro de Educação e Desenvolvimento António Aurélio da Costa Ferreira, ele revelava ser uma pessoa extremamente tímida e introvertida. Senti que vivia num mundo só seu, mergulhado nas sombras imutáveis e de um silêncio gigantesco.

As pessoas surdocegas são pessoas muito sós, porque a impossibilidade de comunicarem com os outros resulta no seu isolamento. O André sentia-se encurralado num beco sem saída, porque era muito difícil comunicar com ele e vice-versa.

Ele tinha alguns resíduos auditivos mas a sua audição era muito deficitária e não raro ele compreendia uma coisa completamente diferente da informação original. Além disso, não falava com muita clareza porque não ouvia e tinha mais dificuldades em repetir as palavras.

E se não fosse a sua reduzida capacidade de ouvir estaria completamente isolado do mundo, porque, quando o conheci ele ainda não sabia língua gestual e a escrita na palma da mão.

Com a minha simpatia irresistível, a pouco e pouco o André foi saindo do seu mutismo e da sua timidez. Meia hora depois já falava pelos cotovelos, alegre e com um sorrisso malandro. Descobri que gostava de raparigas e que tinha uma namorada nova todas as semanas.

Contudo, as suas namoradas eram fantasias de homem rejeitado pelo simples facto de ser diferente.

Mas que culpa tem um ser humano que teve a infelicidade de nascer com uma doença congénita? A sociedade só olha para os corpos perfeitos e saudáveis, mas esquece que todos somos imperfeitos e suscetíveis de contrair doenças.

Em toda a História da humanidade, as pessoas com deficiência eram mortas, abandonadas, temidas, desprezadas, segregadas em hospícios, queimadas na Inquisição, entre outras crueldades inomináveis.

Ainda hoje são marginalizadas com métodos refinados, institucionalizadas, e rejeitadas por terem uma deficiência da qual não têm absolutamente culpa.

Mas voltemos ao André.

Durante o meu estágio no Centro de novas Oportunidades da Casa Pia, observei algumas coisas que me preocuparam.

O André era completamente posto de lado pelos colegas. Existiam os grupinhos dos surdos, dos cegos e não existia o grupinho dos surdocegos. Essa coisa dos grupos é altamente estigmatizante para alguém que não possui visão ou audição. Além disso, quando um grupo é monolingue, todas as formas possíveis de comunicação são negligenciadas...

Na minha opinião, todos devíamos aprender língua gestual e a escrita na palma da mão para que ninguém fique de fora.

Outra coisa que me deixou preocupado foi que o André precisava muito de aulas de orientação e mobilidade, o que em breve iria aprender e ser mais autónomo.

Além disso, fazemos sempre uma ideia errada da pessoa que temos à nossa frente, porque esperamos encontrar uma pessoa menos capaz do que nós. No fundo, projetamos nos outros as nossas próprias limitações, os nossos próprios preconceitos, as nossas próprias dúvidas e os nossos próprios medos.

O André tinha pouca sorte no amor. Com 25 anos já pensava num namoro sério. Em vez de fazer amizade com as colegas, queria arranjar logo uma namorada. Eu bem sabia da solidão em que ele vivia e também sabia que ele não tinha amigos. Estivera sempre no ensino especial onde pouco evoluíra.

Bem que a sociedade gostaria que as pessoas com deficiência não tivessem sexualidade, porque, segundo ela, elas não podem namorar ou formar família.

Mas eu sou contra esse puritanismo, porque todos temos direito a amar e a sermos amados, porque somos feitos da mesma essência e ninguém tem o direito de privar alguém do melhor que a Natureza tem.

Quando penso no André sinto uma profunda tristeza por nós, surdocegos, sermos sempre os últimos e não podermos ser felizes como os outros. Acaso seremos menos do que os animais? Os animais ainda são mais felizes do que nós pela simples razão de não terem preconceitos e não haver discriminação entre eles.

E os cães, muitas vezes, superam-nos no amor. Uma vez uma professora da faculdade contou aos meus colegas que a sua cadela teve um cãozinho deficiente que se parecia com um rato muito feio. Contudo, a cadela aceitou-o e acarinhou-o como um filho do coração. E, quando ele morreu de doença, deu-lhe banho e não saiu de ao pé dele até ser enterrado.

Rio Maior, 5 de junho de 2013