Por José Adelino Guerra
1 - Introdução
Com o aparecimento do Sistema Braille, o acesso à informação por parte dos deficientes visuais difundiu-se por toda a parte numa escala sem precedentes.
Todavia, reconhecendo sempre as virtualidades e potencialidades do código descoberto por Louis Braille, não podemos ignorar algumas das dificuldades que esse sistema levanta. Daí o aparecimento de suportes complementares ao código Braille, entre os quais relevam as gravações sonoras, as quais também têm limitações próprias. Procurou-se, portanto, superar as insuficiências dum sistema por outro que à partida também está marcado por dificuldades.
Deste modo, o acesso ao texto digital surge para os deficientes visuais não apenas como um imperativo do tempo actual, mas também como uma necessidade que decorre dos limites dos suportes tradicionais (Braille impresso e registos sonoros), habitualmente utilizados.
E, partindo desta ideia de utilidade acrescida e com base nos direitos fundamentais à informação e à educação, que iremos sugerir algumas soluções que facilitem
o acesso dos deficientes visuais ao texto digital, considerando a necessidade de encontrar mecanismos que salvaguardem outros interesses também legalmente protegidos, como sejam os direitos de autor e da propriedade intelectual.
2 - O direito à dducação e à informação
No Estado de Direito moderno, são inquestionáveis Direitos Fundamentais como o princípio da igualdade (Art.º 13º da CRP) , o direito de todos os cidadãos à educação e à cultura (Art.º 72º da CRP) , bem assim o dever de solidariedade com grupos sociais mais desfavorecidos, nomeadamente os cidadãos deficientes (Art.º 71º da CRP).
Ora, em face do que afirmámos na parte introdutória deste texto, parece-nos que a disponibilização atempada de texto digital, como suporte alternativo ao que se vai publicando impresso em papel, pode ser um contributo importante na efectivação dos preceitos constitucionais acima referidos, pelo menos no que concerne aos deficientes visuais, ainda que presentemente seja restrito o número dos que têm acesso às tecnologias indispensáveis à fruição da informação digitalizada.
Sucede porém, que a criação científica, literária e artística tem a tutela de normas que visam proteger os direitos dos autores e editores, normas essas que resultam quer de leis nacionais (Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos), quer de tratados internacionais a que o Estado português se vinculou ( Convenção de Berna e Convenção Universal sobre o Direito de Autor assinada em Genebra em 1952).
Daí a nossa convicção de que qualquer solução passa sempre pelo envolvimento dos detentores dos direitos autorais; pensar uma resposta meramente legislativa que não tenha sido previamente consensualizada com as entidades representativas dos autores (SPA) e dos editores (APEL), é avançar para uma medida absolutamente inócua; será melhor que um sistema funcione em termos praticáveis do que, porque excessivamente ambicioso e dissociado dos condicionalismos existentes nunca alcance sair do rol das boas intenções!
O nosso objectivo será, portanto, apenas o de tentar enquadrar o problema, colocando, em termos gerais algumas questões que nos parecem relevantes e tentando sugerir soluções possíveis, atendendo aos interesses em jogo.
3 - Obras multimédia
Abordaremos em primeiro lugar as designadas obras multimedia. Na essência constituem uma combinação de texto, imagens e sons digitais, através de um programa de computador que permite interactividade. No momento presente as criações multimédia geralmente são incorporadas em discos digitais, na maior parte dos casos CD-ROM e, infelizmente, quase sempre de consulta impossível ou muito deficiente através dos nossos leitores de ecrã.
A solução para este impedimento é eminentemente técnica, pois decerto será possível encontrar soluções que nos facultem o acesso a estas obras sem pôr em causa a sua eficácia e efeito estético.
Para introduzir normas de acessibilidade neste domínio é indispensável a colaboração dos editores, demonstrando-lhes que tal não trará qualquer prejuízo para a utilização da obra, antes pelo contrário aumentará o potencial de utilizadores e adquirentes da mesma.
Assim, e em primeiro lugar, e a exemplo do que se está a fazer no que concerne à acessibilidade à Internet, no seguimento da Resolução do Conselho de Ministros n.º 97/99, deve ser constituído um grupo de trabalho que estude e apresente as melhores soluções técnicas para efeitos de acessibilidade das obras multimedia; depois, devem os editores ser incentivados ao o acolhimento dessas regras, nomeadamente através de apoios estatais à edição.
4- Obras impressas em papel
Atentemos agora no caso da produção livreira comum, dada à estampa no formato do livro impresso. Como é do conhecimento público, só um número muito escasso das obras publicadas são transcritas para Braille ou registo sonográfico. Sucede ainda que muitas das obras transcritas em Braille ou gravadas em registo sonoro, a maioria das vezes só o são decorrido muito tempo após a sua impressão a tinta.
Actualmente é possível a utilização de equipamento e software de digitalização pessoais, mas também é pertinente perguntar se é razoável exigir este esforço suplementar aos deficientes visuais quando, quase sempre, a fase de impressão foi precedida de uma fase de digitalização. Importa ainda acrescentar que o grande obstáculo que os deficientes visuais enfrentam, não está no processo digitalização pelo scaner, mas sobretudo na correcção do texto obtido pelo programa de reconhecimento de caracteres (ocr), tarefa que em princípio só pode ser razoavelmente superada com a colaboração de terceiros.
A cópia DE TEXTOS POR PROCESSOS electrónicos, MESMO QUE DE TEXTOS LEGALMENTE PROTEGIDOS, ESTÁ autorizada (Art.º 80º do Código dos Direitos de Autor), "contando que essa reprodução ou utilização não obedeça a intuito Lucrativo".
Esta interpretação é partilhada pela Sociedade Portuguesa de Autores, conforme parecer que anteriormente solicitámos. Regressemos à questão fundamental, isto é, como disponibilizar para utilização dos deficientes visuais cópia do texto digital que serviu de matriz à impressão a tinta, mantendo protegidos os direitos autorais.
A cedência do texto digital não deve dispensar a aquisição da obra colocada à venda. Por um lado, o objectivo desta proposta não é obter um benefício de natureza económica, mas estabelecer uma medida de acessibilidade à informação; por outro lado, o acesso ao texto em formato digital nem sempre dispensa a consulta do texto impresso, nomeadamente quando se trata de fazer citações em trabalhos académicos e científicos.
Também não nos parece muito viável que todas as obras impressas estejam, em todos os locais de venda, acompanhadas por um suporte digital. Este, como alternativa, apenas interessa aos deficientes visuais; para o público em geral representaria um complemento, habitualmente desnecessário, que deve ser o editor a decidir da sua inclusão e da sua repercussão no preço.
Postas as coisas nestes termos, entendemos que tem de ser entregue a um serviço com idoneidade, provavelmente um serviço público, a tarefa de receber em depósito cópias dos textos digitais, a serem cedidas pelos editores, sendo este serviço o responsável pelo fornecimento em concreto ao deficiente visual, o qual teria direito a uma cópia digital mediante comprovativo da aquisição da obra.
Acresce ainda que os arquivos informáticos dos editores estão, em regra, em formatos não compatíveis com os nossos equipamentos e programas, e que o processo de conversão exige conhecimentos técnicos que estão para além do utilizador de informática médio. Este serviço, para além de depositário, teria também competências técnicas para proceder a estas alterações, melhorando a acessibilidade do texto, podendo estabelecer-se formas de encriptação, (caso se mostrassem necessárias) cuja chave apenas seria conhecida por este serviço e pelo adquirente.
Em resumo, o que propomos é, no fundo, uma alteração ao regime do Depósito legal, previsto e regulado no DL 74/82, que tem como objectivos, entre outros, a defesa e preservação dos valores da língua e cultura portuguesas, Constituição e conservação de uma bibliografia nacional (todas as publicações editadas no País), e Enriquecimento de bibliotecas dos principais centros culturais do País. Os livros obrigatoriamente depositados são em número de 14 exemplares, cabendo a responsabilidade da sua entrega nos serviços do Depósito Legal, que funcionam na Biblioteca Nacional.
Assim, para além dos exemplares hoje exigidos passaria a haver a obrigação legal de depositar o suporte informático e, no elenco dos objectivos do Depósito Legal constaria também a prossecução dum valor fundamental, como é o do direito à cultura e informação de todos os cidadãos.
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