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Escola de Cães-guia de Mortágua

por Lerparaver

Reportagem da Semana: Escola de Cães-guia de Mortágua

Cães-guia são formados em Coimbra e Mortágua

Benedita Oliveira

São ternurentos e dedicados. Inteligentes e perspicazes. Os atributos dos cães da raça Labrador Retriever são muitos, mas os exemplares de uma IPSS de Mortágua são ainda mais especiais. Respondem a cerca de 25 ordens e têm a capacidade de antecipar percursos, conduzindo o seu utilizador ao local solicitado. Mais que um fiel amigo, os animais da Escola de Cães-guia de Mortágua distinguem-se dos restantes sobretudo por serem os olhos de quem não tem a faculdade da visão.

De olhos suplicantes e agitados, todos parecem disputar as atenções das educadoras. Sempre que a carrinha pára na margem esquerda do Rio Mondego, os ocupantes, instalados em divisões individuais, manifestam invariável e efusivamente o seu entusiasmo. A ansiedade é muita e todos querem mostrar o seu valor. “É sempre assim”, garante Sabina Teixeira, formadora da Escola de Cães-guia de Mortágua. Com curtos e repetidos latidos, os oito cachorros, que com o seu contentamento abanam inclusivamente a carrinha, denunciam o quanto são apaparicados. Mas a postura muda assim que lhes é colocado o arnês. O que para algumas pessoas pode parecer um objecto estranho, para os cães-guia é sinal de trabalho, responsabilidade. E basta um gesto para que iniciem, determinados, a missão: conduzir o seu par, neste caso o educador, pela “selva urbana”, driblando obstáculos.

Compenetradas e muito “senhoras do seu nariz”, Li e Kiami avançam indiferentes ao bulício citadino em direcção à Ponte de Santa Clara, supervisionadas por Sabina Teixeira e Marta Salomé respectivamente. O objectivo das jovens cadelas de raça Labrador Retriever é só um: guiar em segurança o seu parceiro até ao destino, seja ele qual for.

Uma cadela muito especial

Quase a trote, a cadela de cor clara toma o comando, imprimindo um ritmo algo apressado a uma das últimas jornadas de aprendizagem da sua formação. “A Li é uma cadela muito especial, porque vai substituir uma outra que faleceu há cerca de quatro meses de morte súbita mesmo aos pés da sua utilizadora”, confidencia Sabina, sublinhando que nestas situações o utilizador tem prioridade sobre os restantes candidatos. “É muito penoso para um invisual ver-se privado do seu cão-guia, uma vez que perde não só a sua independência como um amigo até então imprescindível. Aliás, normalmente, os cães-guias são tratados como filhos” explica, adiantando que a Li vai conhecer a sua utilizadora já na próxima segunda-feira. “E se tudo correr bem, como esperamos, a Li fica em Portugal até Janeiro e depois vai para Itália, dado que a sua utilizadora vai fazer um estágio lá”.

Destemida e confiante, Li vai pé ante pé ultrapassando os transeuntes, que tal qual os automobilistas lançam um olhar de curiosidade, quando não de dó pela dupla, até que pára perante a passadeira de acesso ao Largo da Portagem. Em frente tem três faixas de rodagem, mas Li não vacila momento algum. Depois de a educadora sentir o degrau, com o pé, e de abrir o sinal, ela avança para o outro lado da estrada. Sem perda de tempo ou hesitações. Tanto Li como Kiami (cuja formação termina no início de Janeiro) desfilam, então, pela movimentada Rua Ferreira Borges, contornando pessoas e todo o tipo de obstáculos, ao mesmo tempo que atraem as atenções. “A altura do Natal é excelente para formar cães-guia, as ruas estão apinhadas de gente. O maior problema é quando as pessoas param de repente no meio do passeio para conversar”, comenta, por sua vez, a Marta, que acompanha a Kiami. Imperturbável, a jovem cadela de pêlo negro parece igualmente alheia à azáfama da cidade, levantando apenas momentaneamente as orelhas quando passa por uma criança a chorar. O que pode realmente ser um problema para os cães-guia são os “encontros imediatos” com cães vadios, mas mais uma vez ambas cadelas, que se cruzam com um mesmo à porta da Câmara de Coimbra, ignoram o rafeiro, demonstrando o peso da responsabilidade de usar um arnês. “É sempre extremamente desagradável encontrar cães vadios, porque podem incomodar os nossos que, regra geral, não lhes ligam”, frisa a educadora Sabina, que enveredou por esta profissão por estar desiludida com a carreira de docente.

“Olha o cão da telenovela”

“As pessoas já começam a saber o que é o cão-guia, sobretudo nas cidades onde trabalhamos mais frequentemente, como Coimbra e Viseu, mas ainda há bastante desconhecimento e, por vezes, até incompreensão por entrarmos com um animal num dado espaço”, refere a Marta, explicando que os cães-guia, como acompanhantes de deficientes visuais, têm direito a aceder aos locais, transportes e estabelecimentos públicos, assim como os animais em formação. Um dos locais em que os educadores da IPSS, única entidade no país a formar cães-guia, sentiram maior resistência à entrada destes cães foi o Mercado D. Pedro V, ao ponto de as autoridades terem sido chamadas a intervir. “No início foi difícil, mas agora as vendedoras já nos toleram. Além disso, como o ambiente é complicado (tem muita gente, ruído e cheiros variados), eles próprios tentam fugir pelo percurso mais fácil, menos congestionado”, conta a ex-professora, que não deixa de recordar o tempo, penoso, em que não havia legislação específica. “Se ainda hoje é complicado entrar em alguns sítios, imagine como era na altura”, desabafa.

Para esta mudança de mentalidade, afirmam, contribuiu mais recentemente a telenovela brasileira “América”, que aborda com sensibilidade o problema da cegueira e do cão-guia com a dupla Jotobar e Quartis. “As pessoas estão mais receptivas e parecem perceber melhor o que é o cão-guia. Às vezes, vamos na rua e dizem, apontando: ‘olha o cão da telenovela’. Ela está de facto a facilitar bastante o nosso trabalho e creio que no Brasil também vai ajudar bastante a escola de cães-guia que está a arrancar agora”. “A abordagem que se faz a esta problemática faz toda a diferença”, garante Sabina, dando como exemplo uma novela portuguesa que tinha como personagem principal uma deficiente visual. “A certa altura retrataram o cão-guia como um animal agressivo, o que é completamente impossível. Porque para este tipo de trabalho são escolhidas as melhores linhagens, que nos garantem determinadas características de temperamento, e passam sempre por um grande processo de socialização. Foi uma batalha, porque podíamos ter tido problemas por causa daquela imagem que estavam a transmitir”, diz num tom que denota ainda alguma revolta.

Dedicação paga com carinho

A solicitação de miminhos por parte da Li, já durante a fase de “descanso do guerreiro”, “desarmaria” qualquer pessoa, quanto mais a educadora, que, já esquecida do malfadado episódio, retribui com carinho a dedicação da cachorra de dois anos. “Nesta profissão temos de gostar realmente de animais e em especial de cães, até porque temos de os educar pela recompensa positiva. Eles têm de ter prazer naquilo que fazem, senão não colaboram e não fazemos nada deles. Eles têm de ter vontade de trabalhar e sei que quando abro a carrinha, os que estão lá estão histéricos, querem vir trabalhar, gostam do que fazem e isso dá-nos força para continuar a fazer os percursos à chuva e ao sol, com frio ou calor, educando-os para um dia virem a ser cães-guia de uma pessoa portadora de deficiência visual. Essa é a maior recompensa que podemos ter”, conclui.

Iniciativa inédita no país visa apoiar formação de cães-guia

Instituto Educativo de Souselas apadrinha cadela Lua

A Lua ganhou novos amigos. Desde o passado dia 18, a jovem cadela da Escola de Cães-guia de Mortágua conta com uma nova e grande “torcida” para que a sua missão seja coroada ainda de maior sucesso. Em formação desde há três meses, a Lua foi apadrinhada pelo Instituto Educativo de Souselas. A iniciativa, inédita em Portugal – embora bastante vulgar no estrangeiro –, visa criar laços afectivos entre a comunidade escolar e a cadela actualmente com um pouco mais de um ano de idade, sendo que em troca os alunos deverão promover acções para angariar fundos para ajudar a financiar a alimentação do futuro cão-guia.

“No exterior as pessoas estão mais sensibilizadas para ajudar na formação dos cães-guia, apadrinhando um cachorro, mas também fazendo donativos, fazendo-se sócio da instituição e até incluindo em testamento instituições deste tipo”, diz a director técnica da Escola Filipa Paiva, que adiantou que a cerimónia da entrega simbólica da Lua ao seu utilizador deverá ser em Maio nas instalações do próprio estabelecimento de ensino de Souselas. “Vamos fazer uma festa em sinal de agradecimento deste apadrinhamento, até porque dependemos muito da boa-vontade da sociedade”.

“O director pedagógico do Instituto está sempre receptivo a todo o tipo de eventos que dinamizem e que contribuam para uma melhor integração social do alunos, por isso anuiu de imediato a esta ideia”, conta, por sua vez, a professora Ana Pereira, salientando que a acção partiu da iniciativa de um grupo de alunos do curso de Apoio à Família e Comunidade, no âmbito da disciplina Gestão de Comportamentos, na qual os formandos têm de lidar com clientes em situações especiais. “Uma das alunas ouviu falar nesta escola e propôs aos colegas, tendo a ideia sido muito bem aceite, até porque o próprio Instituto tem diversos alunos portadores de deficiências”, refere, sublinhando que o estabelecimento procura ser um exemplo na área da inclusão social.

Contribuir para a integração social do invisual é, aliás, uma das razões de ser da instituição especializada na formação de cães-guia que são entregues aos seus utilizadores a título gratuito. “Além de assegurarem a segurança dos cegos, desviando-os de obstáculos, evitando que batam em coisas ou sinalizando passadeiras, que diga-se que não é nada fácil porque as cidades portuguesas são caóticas – graceja o educador Victor Costa –, os cães-guia aumentam a auto-estima dos invisuais até porque o próprio animal faz com que as outras pessoas se aproximem deles”.

Outra forma de apoiar a instituição de solidariedade social, explica Rui Lucas, passa por associarem-se à Escola como família de acolhimento de futuros cães-guia. O jovem, que testemunhou na primeira pessoa o que é ser família de acolhimento dos cachorros da raça Labrador, frisa que é difícil separarem-se do animal que viram crescer até ao ano de idade (altura em que os cachorros entram em formação específica na Escola), mas também sublinhou que essa “perda” é sempre compensada “com um outro cão que tem o condão de nos pôr bem dispostos mesmo quando o dia corre mal”. Após a acção informativa, que contou com a presença de três alunas que padecem de doenças degenerativas que culminarão em cegueira, os estudantes do Instituto assistiram a uma demonstração prática com a cadela Ginja, cuja docilidade arrebatou por completo a audiência de palmo e meio.

Fonte: http://www.campeaoprovincias.com/noticias.asp?id=4049