José Esteves Correia tem 55 anos e é cego desde os 30. A perda da visão levou-o a três depressões profundas. Hoje é presidente da Acapo, onde luta pela autonomia de quem tem deficiência visual. E a autonomia pode começar em coisas tão simples como aprender a fazer a barba ou a andar na rua. Mas sempre com a noção do limite "um cego não poderá conduzir", exemplifica. Mas poderá um dia - e este é o objectivo presente - ir ao hiperpermercado sozinho quando "aquelas superfícies disponibilizarem alguém para os acompanhar".
Diálogos, tidos com quem pode decidir, que são travados diariamente, para melhorar a vida dos 163 mil e 500 cegos em Portugal, segundos os últimos censos. "Neste momento, estamos em negociação contactos com o Modelo- Continente, com o Jumbo, com a feira-Nova e Pingo-Doce no sentido de disponibilizarem um funcionário que possa acompanhar o cego. Nós fazemos a formação desse funcionário".
Caso contrário será impossível um cego poder deslocar-se naquelas superfícies. "Colocar um cartaz em braille a indicar os produtos que estão em cada corredor é inviável, porque se uma folha A4 de texto normal se converte em quatro páginas de braille, imagine um cartaz desses". Resumindo, os cegos não vão sozinhos aos hipermercados, "vão à mercearia de bairro ou ficam à espera que alguém da família ou amigos se disponibilizem a ir com eles à grande superfície".
Internet como alternativa
Maria da Luz, na casa dos 30 anos, cega desde o berço, tem uma alternativa, a Internet. Navega pelo site do hipermercado e - através de um programa informático que converte a informação escrita em audível - vai percebendo o que quer comprar, para depois telefonar a pedir a entrega dos produtos que escolheu."O Jumbo tem entrega gratuita. É confortável para as grandes compras, que se fazem de dois em dois meses. É claro que não se pode cheirar um aroma, mas...", interrompe.
O problema desta alternativa, lembra o presidente da Acapo, é que "de um universo de 163 mil e 500 cegos, apenas sete mil, para ser optimista, tem autonomia e, destes, apenas metade saberão lidar com um computador ou com a Internet". De qualquer forma, para estes utilizadores ou para quem faz a encomenda via telefone, a Acapo já conquistou a redução do preço mínimo para a entrega ao domicílio. "Enquanto que as pessoas sem deficiência têm que fazer uma despesa mínima de 90 euros para que o Continente lhe leve as compras, um cego só tem que fazer uma despesa de 75 euros", informa José Esteves Correia.
As dificuldades não acabam, contudo, na mobilidade. Maria da Luz alerta para a parca tradução em braille nos produtos. "O problema", exemplifica, "não é só o acto da compra, mas em casa, na organização da despensa". "Obviamente", reitera, "distingue-se uma caixa de detergente de outro produto. O pior é distinguir, por exemplo, uma lata de ananás de uma de pêssego". Quando apetece ananás, pensa "seja o que Deus quiser, se sair pêssego, paciência", gargalha.
É certo que alguns dos hipermercados, designadamente o Jumbo e os restantes do mesmo grupo económico, têm rótulos em braille, mas ainda há caminho a percorrer. "Deveriam estar acauteladas em braille estas coisas que podem gerar confusão, mas também deveriam estar melhor assinalados os preços e as promoções", remata.
Mas antes- e paralelamente a este objectivo mais recente- "é preciso continuar a tirar as pessoas com deficiência visual de casa", alerta o presidente da Acapo. "E não falemos apenas das grandes cidades, imagine as que estão no Interior fechadas entre quatro paredes. Obviamente, não têm qualquer capacidade de irem, por exemplo, a um supermercado", remata.
Só em Lisboa há cerca de 35 mil cegos e no Porto haverá cerca de 15 mil. "Você consegue vê-los na rua? Pois não", remata.
Em suma, eles é que são cegos, mas nós é que não os vemos....
Fonte: http://jn.sapo.pt/2006/07/10/sociedade_e_vida/eles_cegos_e_nao_vemos.html
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Comentários
Parece-me bem que se trate
Parece-me bem que se trate deste problema da acessibilidade dos consumidores deficientes visuais.
Todos temos direito a comprar, a aceder a proposta de venda e a aceitá-la ou não consoante nos interesse ou nem por isso.
Penso, portanto, que se deve falar com todos os supermercados que estejam disponíveis, mas, igualmente, com o Ministério competente, já que devia constituir um claro dever destas superfícies, grandes e pequenas, informar e colaborar na escolha dos produtos (alguns relativos a necessidades básicas) dos consumidores com necessidades especiais.
É que se a ACAPO tenciona dar formação aos trabalhadores que tomariam conta desse sector de ajuda e interacção com cidadãos com deficiência visual, verdade é que se os supermercados e outros não entenderem que é um dever deles colaborar com estes consumidores, não me parece que isso possa servir de muito. Hoje em dia, os funcionários entram e saiem de forma altamente rotativa, facilmente o trabalhador já formado deixaria de trabalhar na área e teriam sido tempo e dinheiro perdidos.
Portanto, ir por aíí, sim, mas não só. Para bem dos consumidores cegos e amblíopes.
Mariana Rocha.