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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

Enem: nem Áudio-descrição, nem Acessibilidade para os Alunos com Deficiência Visual

por Francisco Lima

Prezados,

Depois de escrever a um amigo em particular, percebi que minha mensagem precisava ser mais difundida, dada importância do tema. Daí, aa transcrevo para cá, partilhando com vocês minhas preocupações de professor de educação inclusiva, de formador de áudio-descritores e de pai de pessoa com deficiência.
"Amigo,
São pouco mais de 4 horas da manhã aqui. Não conseguia dormir mais e tomei do computador para trabalhar. Deparei com o texto que abaixo eu transcrevo, escrito por Rosângela Gera, uma médica, mãe de uma garotinha cega, de nome Laura.
Pois bem, essa mãe, conheço via internet, já há vários anos e apenas há alguns, pessoalmente. Tenho acompanhado o desenvolvimento de sua filha Laura, desde a mais tenra idade e o envolvimento da Dra. Rosângela , em todo o desenvolvimento educacional da filha.
Foi, em grande parte por causa dessa mãe que resolvi fazer o Enades em Colatina, ES, onde mora a família Gera.
Eu próprio ainda não tive tempo para escrever a respeito das áudio-descrições feitas no Enem, mas das duas ou três que li, depois de pegar meu filho na prova, encontrei erro de grafia e erros básicos da técnica de tradução visual, o que demonstra a baixa qualidade da formação de quem fez as áudio-descrições e o despreparo de quem as aceitou.
Um desses erros remete à concisão, a qual, não tendo sido respeitada, tomou ainda maior tempo para a leitura da prova, e reduziu o tempo de resposta pelos estudantes com deficiência visual.
O mais grave disso é que os candidatos com deficiência que fizeram o Enem tiveram, na fala oficial, a acessibilidade, na prática, tiveram seu direito à acessibilidade denegado, a dignidade de pessoa humana aviltada e o descaso para sua educação, reiteradamente efetivado.
Ora, um aluno que prestou o Enem, ao ouvir que teve acessibilidade, quando efetivamente sente que não teve, em consonância com sua necessidade, no mínimo, fica com a sensação de que foi usurpado de seu direito à igualdade de condições e de oportunidade. Pode, ainda, achar-se inferior, pois mesmo com a “acessibilidade” ficou sem entender o que lhe era descrito. A baixa autoestima pode tomar-lhe o espírito. E, invariavelmente toma!
Amigo, quando vimos realizar o Encontro Nacional de Áudio-descrição em Estudo (www.enades.com.br), é porque entendemos que o ensino dessa área do conhecimento precisa ser mais bem cuidado, porque não aceitamos nos curvar perante o atual achismo técnico praticado por aventureiros da áudio-descrição, operários da indústria da deficiência que impera em certos espaços de nossa sociedade, os quais têm ganhado com uma pretensa oferta de acessibilidade às pessoas com deficiência.
Mas, melhor do que posso formular agora minhas impressões sobre o descalabro das áudio-descrições no Enem, deixo-o com a mensagem desta mãe, exemplar educadora:

“De: Rosangela Gera
Data: 11 de novembro de 2014 00:26:34 BRST
Para: Martinha Clarete Dutra dos Santos , Marlene Gotti , Claudia Maffini Griboski
Assunto: Enc.: [Inclusao] Enem acessibilidade

Prezadas Martinha Clarete , Marlene Gotti e Claudia Griboski
Boa noite !
Enviei e-mail as listas para saber como foi a prova do Enem no quesito acessibilidade para deficientes visuais, considerando as questões do uso do computador, as áudio-descrições , uso do soroban, etc , conforme as preocupações que ja havia demonstrado em e-mails anteriores ao Mec e ao Inep . Acabei de ler esse e-mail que envio abaixo , e não sei se conseguirei dormir .
Precisamos urgentemente dar aos nossos alunos e filhos com deficiência visual as mesmas condicoes de responder a essas provas que tem os seus colegas . Não ha mistério nisso, se o Mec desenvolveu o Mec Daisy com Audiodescrição , se os alunos estão utilizando os computadores para fazer provas em suas salas de aula, eles tem que se sentir confortáveis e a vontade para fazer a prova do Enem conforme os recursos que utilizam , é óbvio .

Como se sentiria um aluno que durante toda a sua vida escolar, escreve suas redações , estuda seus mapas e gráficos a sua maneira , se na hora da prova do seu vestibular, do enem, lhe tirassem a caneta , o computador e seus desenhos e lhes dissessem que teria que ditar sua redação ? Que teria que entender o desenho descrito, ele não estaria acessível na forma de desenho . Alguém ia aceitar ? porque as pessoas com deficiência visual tem que se calar ?

Gente , atendam ao apelo de uma mãe que vai a escola discutir o projeto pedagógico desde que sua filha chegou na Educação infantil, que insiste na capacitação dos professores , que nunca deixou que lhe dissessem que por ser deficiente visual sua filha aprenderia depois , nunca isso aconteceu, oportunidade era o que precisava para mostrar que podia chegar junto, na frente, seu desempenho nunca esteve atrelado a sua deficiência, mas poderia ter sido atrelado a deficiência do professor em ensiná-la e foi disso que eu tratei e tratarei ate quando Minha filha puder fazê-lo por si só.

Na minha cidade a coordenadora da educação inclusiva que é mãe de dois colegas ( gêmeos ) da sala da Laura me disse " Rosangela se eu não estivesse acompanhando o trabalho da Laura na escola, não ia acreditar que poderia fazer isso com meus alunos da rede municipal, o que vc mudou nessa escola, me inspirou e me fez ver que é possível o trabalho .

E eu pergunto aos senhores responsáveis pelas condições de acessibilidade das provas do Enem : " De que vai adiantar tudo isso se a mina filha tiver que ditar sua redação para um ledor copiá-la ? Se em uma prova de 180 questões , 102 tem gravuras? Todas realmente necessárias ? E se necessárias com audio-descrições adequadas ? "

Se não puderem me responder como profissionais, me respondam como mães que são, me digam a quem preciso recorrer para evitar que essas situações se sucedam nos próximos anos .
Não desistirei de buscar informações sobre essas provas , todas irei encaminhá-las , discuti-las, ate que consigamos equacionar essa questão , ate que alunos como a minha filha possam fazer a prova com a mesma tranquilidade com que fazem seus colegas . Não adianta discutir mais nada em termos de projeto pedagógico e inclusão escolar se esta situacao não estiver clara para quem formata as questões, professores que elaboram a prova têm que saber que alunos cegos também são publico delas e são concorrentes tanto quanto qualquer outro aluno, é para isso que temos lutado, para que as oportunidades dadas sejam transformadas em possibilidades reais .

A minha filha, assim como tantos outros alunos com e sem deficiência visual é particularmente uma excelente aluna, mas ela não é super-herói .

Vou encaminhar esse e-mail para a mãe da Carol que mora no Mato Grosso, para mãe da Nicole que mora em São Paulo, porque é para Laurinhas , Nicoles e Carois que essas provas estão sendo entregues e não para estatísticas que falam do numero de pessoas cegas ou alunos cegos que fizeram a prova do Enem em 2014 . Existem pessoas por trás dos números e os professores que elaboram essas provas precisam saber disso .Com a capacidade que temos hoje de nos comunicar , espero poder juntar também outras mães cujos filhos não tem deficiência visual , mas igualmente se importam com a qualidade de vida dos demais , para que possam fazer esse assunto ter a visibilidade que merece, porque se não pudermos salvar todos, vamos salvar as Laurinhas , as Carois e as Nicoles e quem vier depois delas .

Um abraço esperançoso , Rosangela Gera”

Cordialmente,
Francisco Lima