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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

A Correta Grafia de Áudio-descrição

por Francisco Lima

Prezados,

Trago-lhes, logo abaixo, um breve texto a respeito de assunto bem nosso divulgado neste blog e que faz parte dos estudos da áudio-descrição.
Este texto e muitos outros podem ser encontrados no site do Encontro Nacional de áudio-descrição em Estudo (www.enades.com.br, onde vídeos, podcasts, áudio-descrições de imagens estáticas e bibliografia abundante estão frequentemente sendo adicionadas.
No blog do site o leitor interessado terá a oportunidade de ler muitas dicas e excertos de diversos estudiosos da áudio-descrição, conhecer lições de importantes formadores e muito mais.
Não deixem de visitar www.enades.com.br e aproveitem para se inscrever no II Encontro Nacional de áudio-descrição em estudo, que ocorrerá de 2 a 7 de maio ,em Maceió, Alagoas.
Boa leitura,
Francisco Lima
A Correta Grafia de Áudio-descrição
Introdução
Constitui dificuldade frequente para leigos e não-leigos o real sentido do verbete “áudio-descrição”, tanto por ser um léxico novo (a áudio-descrição tem início com Gregory Frazier nos Estados Unidos, em meados da década de 1970), quanto por ser uma palavra que se originou na língua Inglesa (audio description) e por ter um sentido especializado desse vocábulo, o qual remete ao conceito de tradução visual.
No Brasil, a áudio-descrição é tão nova que ainda não contamos 18 anos de seu uso e, certamente, o estudo acadêmico/científico desse conceito data de ainda menos tempo.
Reflexo do desconhecimento sobre o que é áudio-descrição pode ser observado no decreto 5.296/04, cujo artigo 53 refere-se à áudio-descrição como sendo “narração em voz”, o que não é, posto que o conceito significa tradução visual, isto é, a áudio-descrição funda-se na descrição, não na narração.
No entanto, não é só no conceito que documentos oficiais e mesmo artigos científicos e/ou opinativos erram a respeito da áudio-descrição, eles também se equivocam quanto à grafia deste léxico, a qual é corriqueiramente difundida, replicada e mesmo ensinada como sendo "audiodescrição".
Nesse erro incorrem os professores de Língua Portuguesa quando respondem que a grafia “audiodescrição" está correta, ao serem indagados sobre a escrita certa desse termo técnico. São eles levados a tão comezinho erro ortográfico, porque os que perguntam, o fazem sem lhes explicar do que se trata o verbete, o conceito que ele encerra e a peculiaridade empoderativa que o envolve e que o distingue do tipo de redação definido como Descrição.
Então, os referidos professores erram na resposta, posto que não sabem o que significa ou do que se trata a áudio-descrição: desconhecem que a áudio-descrição é uma forma de tradução visual não uma mera descrição "narrada", tampouco é uma contação de história. Por não saberem nada disso, concluem que áudio-descrição é algum tipo de descrição em áudio ou, talvez, até mesmo, a descrição do som. Daí, dizerem que a grafia certa seria “audiodescrição”, o que, certamente, não é!
Já muitos autores que escrevem a respeito da áudio-descrição caem no erro de grafarem esse conceito especializado como ”audiodescrição”, seja por descuidarem do conceito ou conhecerem-no mal, seja por não dominarem o uso da gramática e as normas que regem a ortografia do registro padrão da Língua Portuguesa. De fato, o desconhecimento de como deve ser a grafia da composição de substantivos que juntos constroem uma nova unidade semântica (Base 15 do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa) justificaria a escrita incorreta da palavra áudio-descrição, e a rápida difusão desse erro propiciada pela internet explicaria o fato de ele ser cometido por tantos autores.
Nessa toada, os iniciantes na tradução visual acabam por seguir o erro comum, copiando o que veem escrito na internet: “audiodescrição”.
Mas, não é porque se acha assim escrito na rede, que se está correto, como sabemos. Nem porque muitos escrevem errado que o errado torna-se certo, obviamente.
Em outra via, não podem socorrer-se dos dicionários, aqueles que, cuidadosos com a Língua, buscam nesses valiosos instrumentos, a definição e grafia de áudio-descrição, uma vez que esse verbete, como dito, é novo em nosso idioma, não está dicionarizado, tem origem em idioma estrangeiro e tem sentido próprio, especializado. A saber, o de tradução visual.
Nessa esteira, comenta o excelso gramático Evanildo Bechara:
“...nada mais natural que assaltem dúvidas a revisores e redatores sobre como escrever compostos relativamente recentes no idioma, muitos deles ausentes em dicionários, criados entre nós ou aqui chegados de fora….”

Áudio-descrição se grafa com hífen
Com a entrada em vigor do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (decreto 6.583/08) o uso do hífen, que nunca foi assunto estranho às gramáticas, visto ser matéria de relevância para a boa escrita da Língua e sempre constituiu dificuldade para os estudantes e outros que escrevem em português, recebeu regras novas, as quais incluíram a retirada do traço de união, em casos em que este era empregado e a colocação dele onde antes não era aplicado. Contudo, a principal função do hífen na composição de substantivos justapostos permaneceu inalterada, quando se trata de elaborar, alterar ou dar novo sentido a termos constituídos de dois vocábulos que juntos adquirem significado distinto das palavras que os originaram.
A esse respeito, ensinava Said Ali:

“Acrescente-se a estas considerações que o composto representa uma ideia simples, porém caracterizada geralmente pela alteração ou especialização do sentido primitivo. ‘Guarda-roupa’ não é qualquer objeto onde a roupa se guarda, e sim certo móvel construído para tal fim.” Said Ali apud Evanildo Bechara

Parafraseando o autor, áudio-descrição não é qualquer descrição em áudio, falada ou narrada, e sim uma tradução visual cujo objetivo não é outro que empoderar a pessoa com deficiência na apreciação/compreensão do evento visual áudio-descrito.
Em outras palavras, a “áudio-descrição” se distingue de “áudiodescrição”. A primeira, grafada com traço de união toma, como vimos, o sentido de tradução visual, enquanto a segunda, aglutinadamente grafada, remete à descrição do áudio ou quando muito a descrição em áudio. A áudio-descrição nem é uma descrição falada, uma vez que segue diretrizes próprias da tradução visual, nem é definida exclusivamente pelo áudio, já que, pode estar escrita eletronicamente, em um site, por exemplo, em tinta, em um catálogo, pôster, etc., em relevo, por exemplo, em Braille, e mesmo sinalizada como em língua de sinais feita na mão de uma pessoa surdo-cega.
Que áudio-descrição é tradução visual é consenso entre os que escrevem “áudiodescrição” como se descrição narrada fosse, e os que entendem que áudio-descrição é uma elaboração dos léxicos áudio e descrição, os quais juntos compõem a tradução visual, isto é, arte e técnica de traduzir eventos visuais em palavras que empoderem a pessoa com deficiência visual a entender, a apreciar, a ver na mente, aquilo que os olhos do áudio-descritor “observaram” do evento visual.
Não obstante, mesmo sabendo que as palavras áudio e descrição, quando justapostas formam uma nova unidade semântica (tradução visual) há os que insistem em desconsiderar a Base 15 do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, sabe-se lá por qual razão gramatical, ortográfica ou academicamente sustentada.
Também há os que justificam o não uso do hífen ao escreverem "audiodescrição", pela similaridade gráfica deste, com o termo “audiovisual” que não é escrito com o traço de união. Aceitar essa justificativa seria o mesmo que aceitar que porto-alegrense deveria ser grafado “portoalegrense” porque sem hífen, grafa-se “aeroporto”. Ora, a única coisa que esses verbetes têm em comum é o fato de serem compostos por um mesmo vocábulo, em um dos termos que os compõem, neste caso, o vocábulo “porto”.
Querer negar a composição por justaposição do substantivo áudio-descrição, é desconsiderar que as palavras áudio e descrição se especializaram ao juntarem-se, formando o léxico tradução visual e, exatamente porque houve essa especialização, requer-se escrevê-lo com o traço de união. Querer negar a composição por justaposição do substantivo áudio-descrição, seria o mesmo que confundir, por exemplo, meio-dia (a décima segunda hora do dia) e meio dia (o adjetivo meio e o substantivo comum masculino dia, significando uma parte do dia, uma metade do dia); gentil-homem (um cavalheiro da casa do rei, nobre; distinto; fidalgo; cavalheiro) com gentil homem (homem gentil, prestimoso, educado); pão-duro (sovina, mão-de-vaca, que não dá ou empresta dinheiro) com pão duro (pão velho, envelhecido); abaixo-assinado (documento, requerimento, petição) com abaixo assinado (a indicação das assinaturas no texto), entre muitos outros exemplos:; conta-gotas e conta gotas; dedo-duro e dedo duro; mata-mosca e mata mosca; etc.
Em todos esses casos, a adição do hífen dá à composição do léxico um novo significado semântico. O hífen , alterou o sentido primitivo dos vocábulos que compõem cada palavra, como faz com os substantivos áudio e descrição que unidos em justaposição, pelo traço de união, formam a palavra áudio-descrição, cujo significado agora é o de tradução visual.
Ora, os exemplos anteriores não deixam dúvida de que a inserção do traço de união alterou o sentido original dos vocábulos constituintes de cada um dos compostos, ali elaborando sentido original (meio-dia e conta-gotas), lá construindo um sentido quase que completamente novo (gentil-homem, abaixo-assinado e pão-duro).
Nessa esteira e em consonância com a melhor aplicação da Base 15 do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, só se pode concluir que áudio-descrição deve ser grafada com traço de união, posto que assume um sentido quase que completamente novo, diferente de descrição em áudio ou descrição narrada: torna-se tradução visual.
Outra justificativa utilizada pelos que desconsideram a Base 15 do Novo Acordo Ortográfico e grafam “áudiodescrição” é ainda mais desprovida de razão, cientificidade ou base gramatical. Alega-se em defesa da grafia sem o hífen que o uso do traço de união separaria (afastaria) os usuários da áudio-descrição, os áudio-descritores, os consultores em áudio-descrição e mesmo os formadores de áudio-descritores, uns dos outros. Mas, será que tal argumento tem alguma sustentação plausível ou seria apenas o desejo de criar um neologismo em detrimento do vernáculo?
Obviamente aquele argumento é descabido e falacioso, além de ignorante do fato de que o traço chamado de hífen tem o significado de traço de união, traço que tem como função ligar palavras que, por exemplo, não tendo cabido em uma só linha, foi necessário grafá-las, parte em uma linha, parte em outra, como se separadas fossem, entre outras aplicações.
Mas, voltemos ao estudo gramatical/ortográfico, pois isto é o que realmente importa. Vejamos o que é o traço de união que conhecemos por hífen.

HÍFEN – do Gregohyphén, “em conjunto com”, pois serve para unir palavras que assumem um sentido diferente de quando estavam separadas.

Já pela etimologia da palavra hífen, percebemos porque ela é chamada de traço de união: o hífen, tem como importante função “unir palavras que assumem um sentido diferente de quando estavam separadas”. Exatamente o caso de áudio-descrição, substantivo composto das palavras áudio e descrição que, quando unidas pelo hífen, formam o conceito de tradução visual, daí ser obrigatória a grafia com hífen, segundo a Base 15 do Acordo Ortográfico.
Apenas para esclarecer, audioguia e audiovisual não são grafados com o traço de união porque não constituem novo vocábulo, diverso dos termos primitivos que os compõem: áudio é mero modificador do termo que o acompanha, e.g., audioguia não é mais do que um guia em áudio., enquanto áudio-descrição é tradução visual, termo elaborado, especializado, decorrente dos vocábulos áudio e descrição.
Outro argumento usado para justificar a omissão do hífen, e que de novo afronta a Base 15 do Acordo Ortográfico, é o de que há “documentos oficiais” que grafam “áudiodescrição” (e.g., Lei Federal 13.146/15, art.69) e não áudio-descrição. Aprofundar considerações a esse respeito seria uma perda de tempo para o articulista assim como para o leitor. Afinal, não é porque em uma portaria, norma ou lei, dada palavra foi grafada de uma forma, que necessariamente esta forma estaria correta ou passaria a ter valor de Norma Culta.
De qualquer modo, vejamos como áudio-descrição foi definida e grafada em documento “oficial”, 9 anos antes da referida Lei 13.146/15:

Portaria nº 310, de 27 de junho de 2006, do Ministério das Comunicações:
"Para os efeitos desta Norma, devem ser consideradas as seguintes definições:
...
3.3. Áudio-descrição: corresponde a uma locução, em língua portuguesa, sobreposta ao som original do programa, destinada a descrever imagens, sons, textos e demais informações que não poderiam ser percebidos ou compreendidos por pessoas com deficiência visual. (BRASIL, 2006b)”

Nos últimos anos, TCCs, dissertações e teses têm sido escritos a respeito da áudio-descrição, uns trabalhos grafam esse termo com hífen, outros sem o traço de união. Em geral, os que grafam em discordância com a Norma ortográfica, sequer destinam algum tempo para justificar a afronta ao Acordo Ortográfico, em sua Base 15.

E mesmo os que justificam fazer uso dessa grafia, em geral, não o fazem em conformidade com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Pelo contrário, sustentam sua escolha nos argumentos expendidos em dado blog, para o qual, se deve grafar “audiodescrição, porque escrever áudio-descrição (portanto com hífen) seria dificultar a vida das pessoas cegas que teriam de explicar o que é áudio-descrição e, também, explicar o uso do traço de união.

b) Ao fazer isso, não estaríamos obrigando as pessoas com deficiência, usuárias da audiodescrição, a dar mais uma de tantas explicações sobre um recurso ainda pouco conhecido da sociedade em geral?

c) Será que o fato da descrição de imagens para pessoas com deficiência possuir técnicas específicas e diferentes da descrição de imagens para quem enxerga seria motivo tão relevante a ponto de justificar a diferenciação ortográfica?;”

A resposta ao item B do questionamento do blogueiro é obviamente, na negativa, pois ninguém, ao fazer uso de um dispositivo, um serviço ou tecnologia assistiva, está obrigado a saber, menos ainda explicar a grafia do termo ou termos que denominam aquele dispositivo, serviço ou tecnologia assistiva.

Uma cozinheira que torra o pão duro, para fazer farinha de rosca, não precisa saber da grafia de pão duro", mas do ponto em que ela deve torrar o pão para fazer a farinha, e, mesmo não sabendo da grafia, certamente ela saberá, ao ouvir alguém ser chamado pão-duro, que não se trata do pão que ela torrou.

O vendedor de mata-moscas não precisa saber a ortografia do dispositivo que ele está vendendo em sua barraca. E o usuário da áudio-descrição não precisa saber explicar a Base 15 do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, nem mesmo saber que a áudio-descrição é reconhecidamente uma tradução visual, portanto diferente de uma descrição em áudio.

Quanto ao item C, a pergunta se responde: a áudio-descrição é conceito novo, portanto não se pode alegar que o vocábulo perdeu a noção dos termos que o compõem. Fosse o caso de essa noção ter-se perdido no tempo, aí justificaria o não uso do hífen. Mas, não é o caso! A áudio-descrição tem regras próprias e específicas, donde constitui uma elaboração dos termos primitivos, logo assumindo um novo significado semântico, quesitos que determinam a hifenização, conforme determina a Base 15 do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

O Blog também traz a alegação de que a áudio-descrição mantém uma íntima relação com audiovisual, portanto, devendo ser grafada sem hífen. Esse argumento tem o mesmo valor que dizer que salário-mínimo deveria ser grafado salário mínimo, só porque os termos mantêm “íntima relação entre si”. Essa regra não consta do Acordo Ortográfico. Além do que, esses termos definem coisas distintas, cuja grafia vem determinada por regras específicas do Acordo Ortográfico (Base 15).

Em audiovisual não houve uma especialização do termo, logo trata-se da Base 16. Áudio-descrição é tradução visual: o substantivo “áudio” e o substantivo “descrição” assumem nova unidade semântica, o que exige ser grafado com hífen, em respeito à já mencionada Base 15.

Considerações finais"
A grande questão sobre a grafia de áudio-descrição não reside, contudo, na ortografia em si, mas nos pressupostos dos argumentos oferecidos pelos que a grafam em desacordo com a Base 15 do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

A noção estereotipada de que o termo audiovisual “define” o conceito de áudio-descrição leva os menos avisados, e os iniciantes no campo da tradução visual, a equivocadamente concluírem que áudio-descrição é mera descrição em áudio, que audioguia é um guia com áudio-descrição etc.

Ora, com esses erros em mente, é fácil chegar à conclusão de que qualquer um pode descrever, ser um “audiodescritor”. E essa conclusão errada provavelmente é a razão de vermos em “audiodescrições" por aí, textos que revelam-se repletos de descrições subjetivas, de inferências, de opiniões, de explicações, coisas que não cabem em uma áudio-'descrição empoderativa, em uma tradução visual.

Grafado sem hífen, o termo áudio-descrição encerra o sentido de descrição do áudio e, talvez por isso, há os que fazem descrições do tipo: “o telefone toca”. E isso está em desacordo com as diretrizes da boa áudio-descrição “descreva o que você vê”, não o que você ouve, mesmo porque se o áudio-descritor ouviu, também o fez o espectador usuário da tradução visual.

Em suma, buscar escrever em concordância com o Acordo ortográfico de uma língua não é mero capricho, é respeito a ela e ao país que a fala; buscar oferecer áudio-descrições empoderativas não é mero capricho do tradutor visual, é sinal de profissionalismo e respeito ao cliente!

Francisco Lima

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