A excessiva protecção das famílias é uma das principais barreiras a superar pelos cegos para alcançarem a sua autonomia, revelou à Lusa a directora do Centro de Reabilitação de Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa.
"Os utentes saem daqui preparados para fazer tudo, mas as famílias são muito protectoras o que é nocivo. Se aquilo que é aprendido não é estimulado e treinado, as capacidades perdem-se", disse Conceição Luís, que dirige aquele centro da Segurança Social, único no país na reabilitação de pessoas com cegueira adquirida.
A protecção excessiva das famílias foi apontada à Lusa por vários técnicos do centro como um entrave frequente ao trabalho que desenvolvem para a autonomia da pessoa com cegueira.
Este é um dos temas abordados pela telenovela em exibição na SIC "América", em que é estabelecido o contraste entre um personagem que cegou em adulto (interpretada pelo actor Marcos Frota), e recuperou a sua autonomia, e uma criança com cegueira congénita, a quem os pais negam qualquer actividade que envolva sair de casa.
"A protecção dos pais bloqueia o nosso trabalho", desabafa a professora de artesanato Ana Henriques, explicando que alguns pais impedem os alunos de praticar os trabalhos em casa e outros nem acreditam que estes consigam de facto realizá-los.
A professora tornou-se espectadora assídua da telenovela da SIC por reconhecer na atitude dos pais da menina semelhanças com a de muitas famílias dos seus alunos.
"É muito importante que levem o primeiro trabalho para casa, porque, mesmo assim, a família muitas vezes não acredita", disse Alberto Encarnação, professor das oficinas do centro há 15 anos. Com recurso a moldes de segurança elaborados pelo próprio professor, que determinam a posição dos dedos dos alunos, em máquinas de serrar, fresar ou perfurar, fazem-se guarda-jóias, bancos, candeeiros, molduras ou tabuleiros de xadrez em madeira.
Para o professor, o melhor produto final é, contudo, aprender a "saber lidar com os medos" com que os alunos chegam a primeira vez à oficina.
A capacidade de mobilidade é crucial para a autonomia e também nesta área da reabilitação a família é, às vezes, quem mais resistência demonstra à utilização da bengala branca, conforme revelaram à Lusa as técnicas Elsa Perdigão e Diana Mourão.
"Quando há resistência é fundamental trabalhar com a família, que deve ser um aliado na reabilitação", disse Diana Mourão.
Ler pela voz
Cátia Silvério tem 29 anos, cegou devido ao descolamento da retina, quando caiu acidentalmente de uma varanda.
Quando fala à mãe em viver sozinha, "ela não gosta muito da ideia".
Ao acordar no hospital, há dois anos, depois de um coma de três dias e de três semanas em repouso, ainda com visão residual no olho esquerdo, achou que "tinha partido para o outro mundo".
Não estava noutro mundo, mas estava num que teria de voltar a conhecer, onde teria de reaprender a viver, sobretudo quando cegou totalmente.
Cátia esteve um ano e meio fechada em casa até concluir que "tinha de fazer alguma coisa da vida", e seguiu o conselho da assistente social do hospital e dirigiu-se ao Centro de Nossa Senhora dos Anjos, onde está a meio do estágio. Na aula de técnicas de informação e comunicação, Cátia recapitula a matéria: abrir e fechar documentos no Word.
No computador onde pratica está instalado o programa JAWS, através do qual uma voz guia os passos dos utilizadores cegos, que têm um domínio exímio do teclado.
Além de ser um guia para as tarefas a executar no computador, o programa também lê os documentos.
Na aula do professor Arménio Nunes, aprendem-se técnicas mais avançadas, que incluem a utilização da Internet e o acesso a obras literárias, que são lidas pelo programa.
"Para quem cega aos 50 anos e tenha hábitos de leitura, a velocidade com que lê em braille é muito lenta, o que é desmotivador, além de existirem muito poucos títulos", explica.
Arménio Nunes escolhe "A Cidade e as Serras" de Eça de Queiroz, um dos 7200 títulos que tem na sua biblioteca digital, para explicar como é possível fazer uma utilização muito semelhante à do livro, com formas de retomar a "leitura" na exacta palavra onde se havia parado.
"É só preciso habituar-se à voz do programa de computador", advertiu. No caso de Cátia, a voz com pronúncia brasileira "recita" o poema "Gnoma", da banda Mão Morta, liderada por Adolfo Luxúria Canibal, uma das suas referências musicais.
Depois de cegar, Cátia ainda não foi a um concerto mas as recentes actuações em Portugal de Lou Reed, Iggy Pop e New Order, reacenderam a vontade.
"O psicólogo diz-me para eu ir, mas agora acho que já não teria tanta piada. Talvez vá com o meu irmão, quando ele não estiver a trabalhar longe, porque com a minha mãe era esquisito", contou.
Cátia continua a assistir a filmes, apesar da dificuldade de entender a velocidade a que é falado o inglês da maioria dos filmes que gosta.
No seu filme de eleição, "As asas do desejo" de Wim Wenders, a barreira linguística é maior porque o filme é falado em inglês, francês e alemão.
Os cabelos lisos que se estendem pelas costas de Cátia condizem com o preto integral das calças e da blusa que veste, num "look" que quer preservar e lhe está a dificultar a escolha de um relógio.
Não quer um relógio falante, "porque ninguém tem de ouvir", e os relógios de braille são, regra geral, de uma linha muita clássica, com mostradores de um dourado proibitivo para Cátia.
Antes do acidente, Cátia trabalhava como secretária, depois do estágio no centro vai receber formação profissional para desempenhar funções de recepcionista/telefonista.
A formação profissional é pouco variada, admite a directora do centro: telefonista, massagista ou o artesanato na área dos têxteis resumem o leque de opções.
Mas se a inserção profissional tem sido "relativamente baixa", de acordo com Conceição Luís, "na reconversão profissional o sucesso tem sido superior".
A directora dá o exemplo de uma auxiliar de acção educativa que está a terminar o estágio e será convertida em telefonista na mesma escola. "As entidades patronais privadas têm benesses para empregar deficientes, mas não há grande abertura, embora achem muita piada às medalhas paralímpicas que são ganhas", afirma Conceição Luís.
Luís Real tem 49 anos, acordou cego há três anos, quando sofreu uma trombose durante a noite.
Depois de um internamento de três meses, mergulhou numa depressão que o levou a diversas tentativas de suicídio.
Ao vencer o medo que o impedia de sair de casa, reuniu também a coragem para pedir ajuda, esteve um ano à espera de vaga no centro, mas quando foi à entrevista, o motorista de pesados entusiasmou-se logo com o programa de reabilitação que agora termina.
Ao fim de três meses já tinha aprendido as técnicas de mobilidade que lhe permitiram passar a viajar sozinho de comboio, entre Alhandra e Santa Apolónia, que fica a 15 minutos a pé do centro.
Hoje, vai sozinho à farmácia e ao supermercado.
Luís quer encontrar um lar de idosos onde possa ensinar o artesanato e a carpintaria que aprendeu no centro.
"Sou um bom conversador e gosto muito de idosos, até porque tratei da minha mãe que esteve acamada oito anos, por isso, acho que estarei entre os meus", conta.
Até alcançar a autonomia de Luís Real, é necessário percorrer um caminho que começa na orientação dentro de casa. Na rua, também com a ajuda de técnicos, os utentes começam em trajectos perto de centro e depois fazem o reconhecimento de percursos na sua área de residência.
De acordo com as técnicas Elsa Perdigão e Diana Mourão, a dificultar a mobilidade destes cidadãos está uma longa lista de obstáculos. Obras, carros, sinais de trânsito e "outdoors" em cima de passeios juntam-se à falta de civismo dos automobilistas que muitas vezes não param nas passadeiras.
A ausência de sinais sonoros nos semáforos é outra das dificuldades.
Apesar do comboio e do metro ter já informação audível, num autocarro um cego está sempre dependente do motorista ou dos passageiros para saber em que paragem deve sair.
A boa vontade de quem se cruza com um cego muitas vezes não chega para o ajudar, há regras específicas para o guiar, que as técnicas do centro ensinam aos familiares.
O erro mais comum é tentar guiar um cego colocando-se atrás da pessoa, quando é exactamente o contrário que se deve fazer: o guia vai um passo à frente e o cego apoia-se no seu cotovelo, explicaram à Lusa as técnicas. Atrás do seu guia, o cego apercebe-se do sentido e do movimento que deve seguir, à frente fica desamparado.
Para ter a ajuda de cães-guia as listas de espera são "enormes", revelou a directora do centro.
Conceição Luís esclareceu que além da bengala que é oferecida pelo centro, cuja frequência é gratuita, a Segurança Social também atribui computadores adaptados a quem se candidate.
As causas mais frequentes da cegueira adquirida são diabetes, glaucoma, HIV e os acidentes, segundo a directora do centro. O Centro de Nossa Senhora dos Anjos recebe uma média anual de 60 utentes, para estágios que variam entre os quatro e seis meses, naquele que é um processo de ensino extremamente individualizado.
Naquele edifício do século XVII, classificado como património nacional, readquirem-se os hábitos que a cegueira interrompeu, até cozinhar e desempenhar outras tarefas domésticas.
"As pessoas vêem aqui aprender a ser felizes, só aí a nossa função está completa", conclui a directora Conceição Luís.
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