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visão ativa - blog de Marlon

Uma sexta-feira comum em São Paulo - Parte I

por Marlon

Após uma semana desgastante me preparo para, em fim, ter algum descanso e tempo para diversão. Nada melhor do que a perspectiva de um relachante fim de semana.

Estou saindo do trabalho, no extremo sudoeste da cidade, na região do brooklin. Há um longo caminho até minha casa, do outro lado da cidade, mas saí cedo e, com sorte, não infrentarei o temido trânsito de São Paulo, que chega normalmente a uma média de 110 KM de congestionamento nos horários de pico.

Daqui são um ônibus, dois metrôs e outro ônibus. Apesar da longa viagem que me aguarda, e que me tem desgastado cada dia mais, estou de bom humor.

Parece mesmo que estou com sorte: o ônibus passa logo. Em uma situação normal o mais sensato seria pegar o trêm, mas a estação está do outro lado da marginal, uma via perigosa, movimentada com tráfego pesado e intenso e deserta, sem semáforos para a travessia. Quem enxerga se arrisca, eu tenho de me contentar com um percurso bem mais lento e desgastante.

No caminho mais surpresas: nem sequer o pequeno trânsito que pego normalmente nesse horário existe, a cidade parece estar em um fim de semana. Esfrego as mãos de contentamento, vou demorar apenas uma hora e 25 para chegar em casa. Em uma sexta-feira a tarde, em São Paulo, isso pode ser conciderado uma maravilha.

Não me queicho nem da distância, nem do desgaste, nem das condições desiguais. Se eu enxergasse pegaria o trêm, mas não posso arriscar. Se enxergasse poderia dirigir e, com sorte, levar pouco mais de um terso do tempo que gasto de ônibus e metrô, ou de trêm e metrô para chegar em casa. Se enxergasse não dependeria de ônibus sujos, muitas vezes velhos, mal cheirosos e com pessoas apostando corridas, atropelando e empurrando sem concideração alguma idosos, mulheres grávidas e portadores de deficiência, se ofendendo e causando todo tipo de problema.

Concluo que é melhor deixar de pensar em tudo isso, já que hoje estou com sorte, rumando para casa rapidamente e prestes a usufruir o meu ambiente, com uma roupa leve e uma companhia agradável. Abro um sorriso ... sim, não adianta pensar demasiadamente no caus que é São Paulo, para quem é deficiente visual ... e mesmo para quem não é.

Dou uma pequena cochilada, afinal dormir não é problema algum em um ônibus, ainda mais um que não está tão lotado e está andando em boa velocidade ...

Acordo quase chegando no ponto final. Estou com uns 35 minutos de viagem, cerca de quinze vinte minutos a menos do que seria o normal.

Ao chegar encontro um funcionário, pronto para me levar até o metrô. Diferentemente do pessoal da manhã, a equipe que trabalha no terminal na parte da tarde é muito organizada, eficiente e, posso dizer, depois de alguns anos ... três já ... que passo por aqui direto, eu fiz alguns amigos bem legais dentre os funcionários.

"Você é um cara legal", me dizem. "Tem cego aqui que ninguém merece, a gente corre e se desdobra para atendê-los o mais rápido possível, e eles nos xingam literalmente".

Faço um sinal de concordância com a cabeça. Começamos a caminhar até o metrô anhangabaú.

O percurso, de uns cem metros, inclui uma passarela, uma confusa rua suja e mal cheirosa, muitas barracas de vendedores ambulantes, som em elevadíssimo volume e muita gente, de todos os tipos, andando apressadamente. Se a polícia estiver por acaso tentando combater os ambulantes, a probabilidade de tiroteios ou ferimentos por pedras e paus almenta bastante. O caminho nunca pode ser exatamente o mesmo, já que os ambulantes não têm posição fixa e, de qualquer forma, minha bengala só detectaria as barracas quando eu já tivesse batido a cabeça. Este é um trecho em que só se for extremamente necessário eu ando sem estar acompanhado por normovisuais. O centro de São Paulo está se tornando, cada dia mais, uma porcaria decadente.

Enquanto completamos o caminho, lembro-me que, outro dia desses, eu mesmo notei uma cadeirante, acompanhada, que pediu uma informação a um funcionário. Este, olhando para seu acompanhante, tentava explicar o caminho:

- você vai até ali na frente, sobe aquela escada e ...

- Mas como é que eu vou subir a escada, carál...? - A cadeirante perguntou suavemente, quando era óbvio que, depois de terminar a explicação, o funcionário * um outro, já que aquele estava me acompanhando * a iria ajudar.

O convívio entre funcionários de terminais, metrôs e afins e deficientes sempre foi um pouco tenso. Quando você fica meia hora esperando para ser conduzido de uma plataforma do metrô até o seu destino,sua paciência vai abaixo. Sem enxergar fica difícil saber se os funcionários ao menos foram avisados que você está lá esperando, se eles negligentemente não vieram te buscar ou se simplesmente não tiveram tempo, já que o quadro é reduzido e há dias em que as coisas estão agitadas. De minha parte, apesar de ser por vezes difícil, tento ser o mais bem educado possível, o que me rendeu grande consideração da parte da maioria dos funcionários com quem eu convivo diariamente e fez com que eu ganhasse alguns amigos relativamente íntimos.

Quando um deles falou sobre a grosseria extrema de determinados deficientes, comecei a ponderar. É sempre mais fácil ir pelo caminho mais curto, não existem esforços ou, se os há, são poucos. Prefiro ir sempre que posso pelo caminho correto. Olhei para ele, e disse:

- Cara, se eu te falar tudo o que acontece por aí com quem não enxerga nessa por... de país você nem acredita, ou talvez até tenha uma leve noção. O que acontece é que as pessoas querem empurrar seus problemas em cima dos outros, que não tem nada que ver com o assunto. Elas não resolvem os seus problemas e ainda fazem os outros ficarem irritados e chateados. Se eu te dissesse tudo o que passo e passei, ou se eu pensasse em descontar em vocês os meus problemas, eu também provavelmente seria um estressadinho mal educado. Em vez disso, prefiro abrir um sorriso e cultivar as amisades.

Enquanto lembro de tudo isso vamos andando, eu e o funcionário, até o metrô. Converso com ele sobre assuntos banais, enquanto divago. Volto totalmente a realidade quando uma pessoa, vindo em sentido contrário, esbarra violentamente conosco, e eu para o funcionário:

- O cara (não sei de qual sexo era) estava vindo em sentido contrário, estava nos vendo , com a minha bengala aberta, meus um e oitenta e tralalá de autura e ainda você ... depois é a gente que tem de desvviar dele ... Mas que trocha!

E ele

- Bom ... isso aí, as pessoas estão cada vez mais totalmente egoístas e sem nossão das coisas.

Novamente começo a pensar em todo o descaso, o preconceito e a ignorância das pessoas ao meu redor, em todos os lugares por onde paço, como algo meio constante meio pesado e totalmente inverossímil, mas existente apesar de tudo. Não vou me irritar com isso, estou com sorte e está uma sexta-feira tranquila. Coloco um sorriso no rosto, mudo o assunto e me forço a esqecer das coisas que me afligem (se eu pudesse ter um carro já estaria quase chegando em casa).

Este texto continua no próximo post